quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Calça Literária)


É assíduo leitor de blusas, camisas, saias, calças estampadas. Não lhe escapa um exemplar  novo. Parece desligado, e observa tudo. Segundo ele, as peças de indumentária, masculina e feminina, ostentando símbolos e nomes de universidades americanas, manchetes, páginas de jornal, retratos de Pelé e Jimi Hendrix, apelos ao amor que não à guerra, etc., há muito deixaram de ser originais.  Constituem invólucros rotineiros de pessoas de qualquer idade. A gente estranha é uma camisa inteiramente nua de dizeres ou figuras, a roupa que não diz nada, só roupa. Hoje, lê-se mais nos tecidos do que nos livros, e não é ler apenas, é ver cinema e televisão, pois os corpos, ao se moverem, dinamizam as figuras estampadas. O que, de um modo ou de outro, contribui para a cultura de massas. Informa:

-  Estou pensando em aproveitar esse material para fins especificamente didáticos. Através dele, ensinar Geografia, História, Matemática, Medicina de Urgência, Imposto de Renda, Ortografia Desmistificada, essas coisas. O indivíduo cobre-se e vai distribuindo ciência. Ou aprendendo. Vinte minutos no busque aula! Classes ao ar livre, na feira, na fila. Escola dinâmica.

- Você sozinho é um Mobral 1971.

- Ontem eu li uma calça comprida, de mulher, que à primeira vista não tinha nada de especial. Estava escrita como tantas outras. Mas o texto (não confundir com textura) me chamou a atenção. Geralmente, calças e blusas não são literárias. Trazem notícias, anúncios,  slogans, mas versos, ainda não tinha visto. Pois essa tinha poemas em  português, de Camões ao Vinícius.

- Tomou nota?

- Claro. Aliás, a usuária foi muito gentil. Percebendo que  eu mirava a parte  inferior  do  seu  revestimento,  gratificou-me  com  um sorriso que eu traduzi assim: "Pode mirar mais". E eu mirei. Aí, puxei da caneta, e ela sorriu outra vez, como quem diz: "Pode copiar  também". Copiei.

- Tudo?

- Tudo, não. A dona da calça estava sentada na sala de espera do cinema. Só o que era visível. Depois se levantou, foi ao bebedouro, deu tempo para eu colher mais alguma coisa, no ir e vir. Não tive coragem de pedir-lhe que desse umas voltas. Você compreende: sou tímido.

- Estou vendo.

- Foi a primeira calça literária, totalmente poética do meu conhecimento. Feita em São Paulo? Talvez. Caracteres pretos sobre fundo branco. Versos em todas as direções. De Bilac, de Cecília, de Bandeira, de Castro Alves, de Fernando Pessoa. Uma antologia, bicho. Sem ordem, naturalmente. Escuta aí: Onde  vais  à tardezinha, morena flor do sertão? O que eu adoro em ti é a vida. Aqui outrora retumbaram hinos. Oh abelha imaginativa! o que o desejo inventa… Vou-me embora pra Pasárgada. Amor é fogo que arde sem se ver. Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho. No monte de amor andei, por ter de monteiro fama, sem tomar gamo nem gama. Clorindas e Belindas brincam no tempo das berlindas. Eu tenho amado tanto e não conheço o amor. Estrela Vésper do pastor errante. 'Tamos em pleno mar: dois infinitos ali se alteiam.

- Beleza.

- Não é? Tem  mais. Transforma-se o amador na coisa amada. Antônia, você parece uma lagarta listrada. Dona Janaína, rainha do mar, dai-me licença para eu também brincar no vosso reinado. Por que não nasci eu um simples vaga-lume? Não queiras indagar do meu  segredo. Mas que seja infinito enquanto dure. Cantando espalharei por toda parte. Tudo não escondido perde a graça. O emamomo floresce em frente do teu postigo. Crisântemo divino aberto em meio da solidão... Tinha uma pedra no meio do caminho.

- Isso já é prosa, amizade.

- É mesmo. Em todo caso, trata-se da primeira calça poética luso-brasileira. Os poetas que tratem de defender seus direitos autorais. A menos que considerem uma honra vestir de versos as mulheres.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. De Notícias & Não-Notícias Faz-se a Crônica. RJ: José Olympio, 1974.

Rubens Luiz Sartori (Poemas Avulsos) 2


AMOR

As dores fortes da ausência,
se reencontram no amor.
Amor, essa coisa bendita,
que nos agarra qual fita,
de uma dança de pares,
que se encontram em olhares,
um de cada lado carente,
outro só, buscando silente,
numa pessoa, seu ser.

O ser de si e de alguém,
é como folha no vento,
que ao cair à distância,
se perde longe do galho,
que forte antes era ânsia;
agora é só um retalho,
que balança ao relento,
sem vida. fraco e aquém,
não é mais nada, é ninguém...

Mas qual! é sempre alegria,
quando o amor surge, possesso.
Faz do hoje um novo dia;
faz da morte um retrocesso;
faz de conta que não conta,
o passar dos dias, dos anos
e apesar dos desenganos,
com amor tudo é presente,
traz de volta o riso ausente,
e nos transforma em mais gente.
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AO MEU CACHORRO GETÚLIO!

O meu cachorro Getúlio,
é amigo fiel devotado.
É para mim, meu orgulho;
é parceiro apaixonado.

Descende da raça canina,
valente e fenomenal.
É forte, sem vitamina,
cumpre instinto sem igual.

É filho do "velho Xirú",
cão bravo de muita luta;
pioneiro na "Quero-Quero"
seu reinado sem disputa,

Acoa na sua vigilância;
defende-me, por ideal.
Guardião de toda a Estância,
sem pagamento ou metal.

Nunca nos faltem "Getúlios";
nunca falte um cão fiel,
passarão tempos e "julhos",
terei cão até no céu.
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 QUANDO EU NASCER DE NOVO...
E QUANDO EU NÃO MAIS EXISTIR...


Quando eu nascer de novo.
quero viver com mais risco.
Quero cruzar mais fronteiras,
conhecer montanhas e rios.
Andar na chuva de noite,
sentir o prazer do arrepio.
mirar o além d'horizonte,
sorver o vento e o frio.
Quero ver quanto eu arrisco...

Sonhar meus sonhos sombrios,
de ter que ser mais humano.
Buscar meu ego constante.
Olhar a vida de frente.
Amar a tudo que quero,
nadarem rios de vontade.
Conhecer a noite do tempo,
jogar meus jogos de amor.
Sentir de longe a saudade,
viver a cada minuto,
como se fosse um condor...

E quando eu não mais existir,
que vivam meus passos perdidos,
meus dias de muito tormento,
e todos meus beijos de amor
relembrem meus olhos vibrantes
e a pouca poesia que sobrou.
Que todos se lembrem de mim,
não como um homem apenas.
mas como alguém que sonhou...
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VELHA PONTE

Velha ponte de meu rio de infância
ligaste os sonhos de amor-criança.

Velha ponte de meu rio de infância,
quantos sonhos que eu sonhei com ânsia,

Foste ponte, de saudades quantas.
Foste rio, de águas limpas, tantas.

Velha ponte de meu rio de infância,
quanta vida deste a tantos sonhos.


Fonte:

Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro

Rubem Braga (O Fiscal da Noite)


Fui eu que vi o Cruzeiro erguer-se do mar e mais tarde chegar até o horizonte de minha varanda; vi duas estrelas muito brilhantes nascerem depois dele e subirem também. Analfabeto olhando as  estrelas, segui sua navegação sem saber seus nomes; vigiei de meu imóvel tombadilho.

Estava solitário, mas não  triste; lembrei o velho dito dos bêbados: "A noite ainda é uma criança".

Mas o tempo avança. Agora medito no seio de uma noite madura, como à sombra de uma grande árvore; de raro em raro, madura demais, cai uma estrela e se perde na escuridão do céu ou do chão. Quase não vejo o mar, apenas o pressinto e o sei arfando lânguido, sem vento.

Deus me pôs nesta rede a olhar a noite. Não tenho sono nem vontade de sair; não telefonarei para ninguém. Sou como um débil  mental a quem houvessem dado o emprego de fiscalizar as estrelas, e acompanho com paciência sua marcha lenta. Devo dizer que estão se comportando bem, tanto as mais novas como as mais velhas; andam de leste  para  oeste  de maneira morosa e sensata, guardando com atenção as respectivas distâncias. Se o major-fiscal me telefonar direi que não há nenhuma alteração. O nascimento da lua está marcado para as 2h45min da madrugada; espero que seja pontual e não me dê aborrecimentos. O  número de estrelas cadentes é diminuto.

Informarei: "Pequenas baixas; o desperdício de estrelas durante a noite a meu cargo foi mínimo e, creio, inevitável; nosso estoque é imenso, senhor major". O major comunicará ao  coronel,  este ao general, este ao Presidente da República. O Presidente  da  República expedirá mensagens congratulatórias a Deus e a Albert Einstein, no Paraíso.

Adormeço na rede, e desperto assustado; mas o céu está em ordem, e as estrelas marcham  sempre na mesma direção, como crianças bem comportadas. Deus me pôs nesta rede, e o Diabo me fez dormir. Felizmente a lua ainda não nasceu. Risco um fósforo para olhar meu relógio ("a opinião do prefeito de Genebra sobre a hora de  Ipanema"), meu  famoso relógio antimagnético, antiatômico e antilírico, e suspiro aliviado; ainda faltam 18 minutos para o nascimento da lua. Levanto-me e tomo posição em outro ângulo da varanda, murmurando:  "Vamos  providenciar isso".

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. RJ: Sabiá, 1967.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Arquivo Spina 11 (Rita Queiroz)

 


Carolina Ramos (O Poder de Um Simples Gesto!...)


As "coisas" não têm o mesmo sabor durante a vida toda. A própria vida é que, com arte, tempera tudo o que nos transita ao redor, misturando cores, sabores, criando sutilezas mutantes, fruto do que vemos, do que sentimos, inalamos e saboreamos ao longo da existência, sujeitos sempre à alquimia das múltiplas fases. E se assim  admitimos, ronda perto a resposta ao perplexo questionamento machadiano, já lugar comum: — "Mudou o Natal, ou mudei eu?!"

Que imensidade, espiritual e também material, se esconde por detrás dessa palavra sublime - Natal! Na infância, a expectativa, o ansioso aguardo da chegada, do Pai Noel, misto de fé e fantasia, alimentado pela matutina corrida aos sapatinhos, à espera dos presentes deixados, na noite anterior, sobre aquele fogão de cada dia, nessa noite, alçado ao status de lareira — à imitação dos moldes europeus ou dos pagos do sul, onde o frio aperta e o desejo de aconchego troca a sofisticação por necessidade.

Os pais a dormir tarde, no controle aos olhos curiosos, doidinhos para flagrar e perturbar os preparativos da Noite Santa! Fugida ao leito bem cedo, cara e asas de anjo, a criançada corria em busca do presente que o Velho Noel deixara nos sapatos dos merecedores — os tais "bonzinhos" daquele ano — o que, no final, todos acabavam por ser, já que ninguém ficava sem recompensa! — Não seria isto, por acaso, a semente dessa impunidade que por aí viça?!

Pergunta incômoda, esqueçamos! Nada de conotações constrangedoras quando o assunto é o Natal da nossa infância, aquele Natal que tinha brilho, tinha gosto... tinha cor e cheiro de Natal!

Para a Ceia, a mesa adornada com carinho especial, "enquitutada" no capricho, (vale o neologismo!) rodeava-se de gente amiga, gente alegre e gulosa, a esbanjar lembranças, meio àquela zoeira festiva dos reencontros bem humorados, dos abraços e tilintar de taças! Num canto nobre da sala, um pinheiro, natural ou não, enfeitado de luzes e bolas coloridas, brilhosas e tão frágeis, que exigiam renovação a cada novo ano!

Sob a árvore simbólica, o encantamento espiritualizado e singelo, do pequenino presepe, à espera do momento máximo das doze badaladas, quando o Menino seria colocado no berço de palha pelas mãozinhas puras de algum anjo, escolhido especialmente dentre os mais novos da família, para consumar a magnitude daquele ato sublime.

Natal Santo! Natal Família! — ao correr dos tempos, esvaziado e amargurado pelo sal das ausências (outro lugar comum das crônicas natalinas, sempre repetido, porque inquestionável).

Os ciclos, se repetem, alguns mais longos que outros. E, tempos depois, quase tudo é reestruturado, tão logo a algazarra dos netos nos invade a intimidade, a despertar os guizos das lembranças, a sacudir e reativar emoções, suavizando até mesmo aquelas saudades queridas, tão pesadas e doridas que, graças ao milagre natalino, se adoçam e chegam até a ganhar brandura!

Neste ano, fato inusitado antecipou-me o sabor de infância, chegado de surpresa pelas mãos carinhosas de uma filha. O singelo presente devolveu-me o delicioso sabor, perdido pelas esquinas da vida, sem que o esperasse voltar a provar! Sabor engolido pelo tempo e chegado, sem espera, naquele potinho de louça, repleto de amoras maduras, fresquinhas, cor avinhada e perfume suave! Não simples amoras, compradas numa banca de supermercado, que, se assim fosse, seriam menos valiosas sem o rótulo do carinho filial. O regalo deixava transparecer, ainda, um toque de justificado orgulho, servindo de invólucro o lembrete da filha: — "Mãe, estas amoras, são daquela amoreira que eu mesma plantei... lá no meu quintal!"

Deliciada, confesso nunca ter saboreado nada tão gostoso quanto o que me oferecia a terna doçura daquele punhado de amoras, frescas e perfumadas... nascidas no quintal de minha segunda filha!

E então, "não mais que de repente..." como diria Vinícius, o espírito natalino acenou, avisando já andar por perto! O pequeno pinheiro, que neste ano, inexplicavelmente, "preguiçava" sem ser desempacotado, saltou da gaveta e ganhou o costumeiro lugar no canto da sala, agora mais bela, coruscante de luzes e bolas coloridas, menos frágeis, não se partindo à-toa como antigamente.

Magia do Natal? — Com certeza! Mas, com certeza, também, aquele punhado de amoras frescas muito contribuiu para o empurrãozinho estimulador!

É que, para o coração de qualquer mãe, um pequeno e oportuno gesto de carinho, na maioria das vezes, vale bem mais que uma pepita de ouro!
- - - - - -
(Crônica publicada no jornal "A Tribuna", de Santos)

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela escritora.

Contos e Lendas do Brasil (Erro do Burro)


Nas rodas sertanejas, antigamente se contava certa história de bichos, que ainda hoje não é esquecida. Vez por outra algum velho está a relembrá-la com todo os rique-fifes. História simples, sem maiores artifícios, não escondendo, entretanto, o fator moral como razão de ser da passagem pitoresca ocorrida entre animais que falavam, discutiam e agiam de conformidade com os seus interesses.

O fato é que o burro se encontrava muito de seu, pastando nos campos, comendo panasco verde – e a sua atitude pacata até despertava inveja dos próprios homens. Aquilo sim, é que era felicidade sem perturbações incômodas. Se chegava a hora de trabalhar, o burro trabalhava no duro, sem pedir misericórdia, sustentando o peso do serviço de carregamento e, ainda pior do que isso, sob o chicote dos moleques condutores ou boiadeiros malvados. Também do boleeiro, pois puxava o cabriolé do senhor e, diziam, fazia-o com uma competência ajudada pela carícia e pela ternura de servir. Embora o sangue mau do condutor.

Realmente, o burro era detentor de bondade extraordinária: não fazia nada de cara fechada, era sempre alegre que costumava enfrentar o serviço. Pois, em compensação, os instantes de folga eram compridos por demais, às vezes duravam dias e semanas. Comia o panasco e bebia no tanque de pedra. Andava gordo, sereno e venturoso. De que se queixar? A vida lhe sorria. Não era assaltado por nenhuma aspiração que não fosse sossego e paz, tranquilidade e bonança, trabalho e repouso, boa mesa e sono solto. A liberdade era tudo. Ela rodava-lhe em torno. Os homens falavam em democracia. Democracia deveria ser mais ou menos aquilo: liberdade e abastança, barriga cheia e despreocupação pelo que venha a suceder.

Mas de repente, quando se achava pensando nessas coisas amáveis, surge pela frente a raposa (a comadre raposa é sempre a mesma figura, no litoral, na mata e no sertão: aje astuciosamente e, de ordinário, com requintes de perversidade criminosa) que, desde muito, espiava aquela beleza de existência retirada, sem imprevisto, sem qualquer sinal a mais ou a menos, sem a nota de altos e baixos. Que coisa? Aquilo precisava de sangue novo. Estava reclamando mais movimento, mais ação e, portanto, mais intimidade com a vida. Pois esta andava monótona para os espíritos inquietos e inteligentes, requerendo novidade e que, neste sentido, se fizesse o maior esforço de criação.

Pensou indagando de si mesmo:

- Perto daqui não existe chiqueiro de galinhas?

Então a raposa dispôs-se à luta, procurando o burro, com ele mantendo longa conversação, fazendo-lhe sentir a necessidade de entrar por outros caminhos menos insípidos.

– Olhe, eu conheço a onça pintada que vive na Furna da Alegria. É um prazer visitá-la. Tem vivido muito e passado pelo que o diabo jamais imaginou. Nos meus momentos de angustia é para lá que rumo os meus passos.

– Mas eu não sofro nada, disse o burro. Tenho saúde perfeita. E não me queixo de coisa alguma.

– Isso não significa nenhuma novidade. Também quando me sinto feliz vou bater à porta da amiga. Ouço-lhe a voz carinhosa dos conselhos. Fico ainda mais alegre e cheia de felicidade. A tristeza vai-se embora.

Perversa, a raposa não desanimava na cantada, tudo fazendo para demover o burro do lugar onde se encontrava, pois não tinha ofício nem obrigação, se saía era sempre a passeio e, à noite, os galinheiros estavam à disposição de suas garras. Vagabunda, faladeira, mexeriqueira. Gostava e alimentava a perversidade como estigma da espécie a que pertencia.

Enquanto falava naquele tom, no íntimo bem sabia que a onça pintada era velha e encarquilhada, má, vivendo faminta e assaltando os bichos que tinham o topete de andar por perto de sua morada.

– Vou fazer essa visita que me pede.

E, decidido, largou-se o burro para o lugar em que vivia a onça tão boa, como afirmava a raposa, pacífica e generosa. Chegou às imediações da Furna da Alegria. Viu a bicha cheia de pintas pretas, saindo com um ar de mansidão, se arrastando, com os olhos fuzilando e, dando salto ágil, procurou atingir o limite onde estava o burro. Este desconfiou da parada. E pernas para que te quero, danou no mundo, a galope, regressando num fôlego aos pastos de sua deliciosa mansão. Não sairia mais dali. E comentando com os botões:

- A onça queria me botar no papo. Faminta como quê. Essa cachorra da raposa que me apareça para eu lhe dar o troco merecido.

Os dias correram. Certa vez chega inesperadamente a comadre com toda delicadeza e a pedir desculpa. Aquilo fora um horror. Como obter o perdão de seu amigo? Não tinha direito a isso. Era uma pobre miserável, merecia a morte e, assim, lamentou-se até conseguir manifestações de ternura do burro. Animou-se a maliciosa hipócrita dizendo:

- A onça, eu sabia, estava doente há várias semanas e foi exatamente na ocasião em que você apareceu que ela, zangada e faminta, não o conhecendo, atirou-se com a violência que costuma empregar contra suas presas.

Adiantou cautelosa

- Porém eu já fiz as necessárias recomendações e ela, agora ciente, pede-lhe mil desculpas, contrariada que está e, sendo possível, espera-o quando você quiser ou achar conveniente.

– Bem, neste caso irei mais tarde.

E, de fato, renovou a dose, isto é: seguiu o caminho já de seu conhecimento. Foi e não voltou. A onça banqueteou-se a semana inteira com mesa opípara. Fazia muito tempo até que não saboreava carne tão gostosa. Carne macia e cheia de vitaminas.

A raposa alcançou o que escondia: os pastos precisavam ficar abandonados para o senhor da casa-grande, sem querer perdê-los (outro animal para soltar não possuía nas redondezas; o gado andava no cercado; apenas o burro estava privando de uma consideração excepcional; era privilégio forçado) e, ante a evidência, abrisse o chiqueiro e deixasse as frangas e capões invadi-lo para o mais gordo aproveitamento. E ainda teria dito consigo mesmo, apreciando os fatos em que fora figura principal:

- Vá ser burro assim no inferno, na casa do diabo que o carregue.

Fonte:
VIDAL, Ademar. Lendas e superstições: contos populares brasileiros. RJ: O Cruzeiro, 1950.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Benedita Cristófoli (O Sonho de Voar!)


Era Sábado, uma manhã de muito sol, os pardais desciam do pé de carambola para saborear as nutridas sementes do gramado.

Ainda sonolenta, Maria Júlia sentou-se na calçada para observá-los e de vez em quando só olhar não a satisfazia, corria numa tentativa de pegá-los, mas quando se aproximava, eles voavam. Essa incompatibilidade a fez tirar o sapato e depois de um prolongado tempo, foi que percebeu que havia tirado só um pé.

Pelas folhas da grama escorriam as últimas gotas de orvalho, com a semelhança de um colar de pérolas debulhando entre as folhas e caindo para ser bebida pela terra.

Uma borboleta grande de cor azul voava ao seu redor num zig-zag, aguçando mais desejo de aprisionar os bichinhos!

Maria Júlia completaria 6 anos de idade na próxima semana, tinha pele clara, olhos castanhos esverdeados e cabelos loiros cacheados. Parecia uma bonequinha das mais lindas existentes.

O sol das dez horas já aquecia o seu rosto, deixando as bochechas vermelhas destacando ainda mais sua beleza.

Cansada, voltou à posição inicial, pôs os cotovelos no colo e a cabeça entre as mãos. Pensou, gostaria que meu presente de aniversário fosse uma noite de sonho, e pudesse transformar-me numa borboleta amarela por um dia de muito sol. Reforçando o pedido, escrevia bilhetes ao papai do céu, punha-os na janela, no gramado, na sala de jantar, na biblioteca, "Papai do céu! Quero ser uma linda borboleta amarela por um dia".

Foram passando os dias e para familiarizar-se mais com as borboletas, ela ia para o jardim todas as manhãs.

- Maria Júlia! Gritou sua mãe.

- Estou aqui no jardim treinando.

- Deixa de brincadeira e vem experimentar o seu vestido.

- Não, mamãe, já escolhi o meu.

Dona Neide fazia todas as tarefas domésticas e nas horas vagas costurava as roupas das crianças.

A noite soprava um vento fresco, Maria Júlia deitou mais cedo cobriu-se até o pescoço, sentiu a suavidade dos lençóis como a leveza da veste de um anjo. O quarto foi invadido por um clarão, uma voz dócil chamou:

- Maria Júlia! Acorda! Tenho um trabalho pra você.

- O quê? Respondeu já em frente ao espelho, admirando a bela borboleta em que tinha se transformado.

- Ouça com muita atenção: "Procure no jardim quatro sementes que estão bem juntinhas, coloque-as numa caixinha. Você não pode perdê-las, tenha muito cuidado! Vá aos quatro cantos do mundo; peça a seus habitantes que as plantem com muito carinho e dedicação. Quando essas plantinhas começarem a soltar o pólen, eles deverão soprá-los para o alto e
fazer três pedidos".

- Quais são os pedidos? – perguntou Maria Júlia.

- Isso vai depender da necessidade de cada região,

- Sim! Farei o que mandar.

Aborrecida, ela pensou, puxa! e meu dia de sol? Queria voar, voar rente ao chão, subir até as copas das árvores,.. É melhor não perder tempo. Pôs a bolsinha tiracolo no pescoço, já com as sementes, e voou, voou alta.

Imaginou os quatro pontos, e foi onde encontrou terra e gente, maravilha! Mas nos polos, fora uma viagem sofrida. Era o último lugar o Polo Norte, quando chegou, já sem forças e cansada, caiu numa geleira ficando presa uma de suas asas. Chorava e debatia tentando sair do gelo e assim permaneceu quase uma hora naquela situação lamentável. Até que decidiu pedir socorro e gritou:

- Onde está o povo deste lugar? Eu vou morrer congelada!

Com a gritaria apareceu um pinguim e seguidamente outros e alguns leões marinhos para ver o que acontecia.

- Calma, calma linda borboleta! Não vê que está se cansando cada vez mais?

- Me tire desse gelo, eu não tenho tempo a perder, por favor!

O pinguim delicadamente puxou com o bico a asinha dela para cima, tirou as pedras de gelo. Numa posição mais confortável ela respirou aliviada e agradeceu.

- Ah, que bom! Que mundo gelado esse de vocês!

- Sem dúvidas, mas eu no seu mundo quente, morreria!

- Onde estão os habitantes deste lugar?

– Somos nós.

- Tenho que achar alguém para plantar esta sementinha.

– Mas no gelo?

- Não sei, arrume uma terra, e faça esse trabalho.

E pronta para partir, depois de ter olhado tudo às pressas e muito curiosa, esquecia o motivo mais importante da sua ida ali. Despedia acenando com suas encantadoras asas.

- Linda borboleta! Disseram em coro.

– Sim!

– Você não falou os nossos pedidos.

- São as necessidades da região.

- Que nosso lugar seja habitado como o seu!

Será o primeiro pedido, disse o pinguim que lhe prestou socorro; o leão-marinho ia pedir para o homem preservar a vida deles. Um filhote pinguim pediu para que ela voltasse outras vezes para colorir o seu mundo.

Naquela manhã, Maria Júlia acordou mais tarde, a sua mãe preocupada entra no quarto e deseja-lhe feliz aniversário, percebe que dormia tranquila! Beija-a na face dizendo: – Levanta dorminhoca!

- Já acordei. Disse indo em direção à janela que a mãe acabara de abrir.

Fontes:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro.

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) III


IMPOSSIBILIDADES

Querer voltar
e não achar o caminho.
Querer segurar
e sentir que tudo o que tenho
escapa-me por entre os dedos.
Querer falar
e não achar as palavras.
Querer esquecer
e ser perseguido pela memória
dos fatos,
da vida,
das sensações
e das lembranças
que não se apagam
e que,
com nitidez penetrante
invadem o meu ser
tornando-se indeléveis.
Não é possível apagar
o que já não existe.
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INCLUSÃO

Dos males que nos afligem
estamos bem informados.
Na leitura dos jornais
ou pela televisão
temos notícias de tudo
que acontece no mundo.
O coração oprimido
compartilha o sofrimento
daqueles mais atingidos
que sem amigo, sem nada,
permanecem na exclusão.
Quisera encontrar caminhos
que possam levar os homens
a descobrir soluções
que amenizem as dores
do irmão injustiçado,
já bastante machucado
por agruras dessa vida.
Em minha busca incessante
percebo que, com caridade,
fé e amor no coração,
superaremos barreiras
e alcançaremos as mãos
daqueles que as estendem
suplicando proteção.
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INDAGAÇÕES

O que foi feito de nós?
Um de um lado,
outro de outro,
e um mundo entre nós dois.
O que foi feito
de nossas conversas noturnas
que se transformaram
em rotineiros Bom-dia?
Onde estão as luzes,
os risos, a alegria,
a música suave,
que ecoava em nossos ouvidos?
O que sobrou de nossas esperanças,
das tristezas partilhadas,
das angústias divididas?
Um sofrer inexplicável,
um temor silencioso,
tédio da vida,
Por quê?
As montanhas permanecem,
o sol brilha atrás das nuvens
e as estrelas clareiam as noites,
O que é mais importante?
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INFÂNCIA

O menino não tem brinquedo.
Nunca teve.
Mas brinca com serrote,
tesoura,
revólver,
caco de vidro.
Ele não reza. Ninguém lhe ensinou.
Se ensinou, esqueceu.
Mas vai à Igreja quando chove.
Se não puder entrar
fica na soleira, que lhe dá abrigo -
desde que não haja matança
como na Candelária.
O menino não come. Nem tem fome.
Cheira cola e dorme, com seu corpo osso,
num degrau de escada
sem frio, sem nada,
E dorme, e sonha,
até que os donos do mundo
surgindo dos cantos,
interrompam seu sono
e arrebentem seu sonho.
Batendo, espancando,
não ouvem seus gritos
e fazem calar
a quem nunca soube
infância, o que é.
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LEMBRANÇAS

Seu olhar enevoado enxergava os vultos
dos irmãos sentados à mesa da cozinha
e ouvia com atenção, o alarido incessante
que misturava perguntas e respostas
sem permitir que alguém fosse entendido.
Às suas lembranças, do tempo de criança,
juntavam-se outras de quando era cercada
por filhos e por netos. A vida transformada
trouxe alegrias e tristezas alternadas,
a partida de alguns, de outros a chegada.
Com a família dispersa foi ficando tão sozinha
que os retratos pelos móveis se tornaram companhia.
Dos momentos felizes restou-lhe a saudade
preenchendo as esperas inúteis de seus dias.
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MARCAS DO TEMPO

Tempestades marcaram a fronte enevoada
e sulcaram caminhos indistintos
pela serena face encarquilhada.
Com mãos trementes e sorriso tímido,
com a vergonha de insistir vivendo tanto,
olha perdido contemplando o nada
e enche de vazio a vida sem sentido.
Melancolia suave, lembranças persistentes
de ausentes presentes, teimosas companhias
que com ele ficaram, embora já partidos.
Indagações contínuas, perguntas sem resposta
de um mundo irreal e que ele não entende,
aqui vivendo em vida separada.
Com seus fantasmas conversa ensimesmado,
provoca risos e olhares aos quais não corresponde.
Fechado no seu eu, sorri às vezes,
ao receber um beijo ou carinhoso afago
daqueles que percebem qual o significado
da escrita confusa e empergaminhada
que traduz uma história de lutas e de dores
no seu rosto tranquilo e abnegado.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela poetisa.

domingo, 20 de setembro de 2020

Fábulas (A Ilha)


Era uma ilha que vivia no meio do oceano. Levava uma vida tranquila, sem grandes questionamentos. Conhecia outras ilhas e com elas se comunicava. Um dia porém uma ideia a inquietou: se toda vez que a maré baixava, uma porção de terra se descobria, então até que ponto haveria terra? Isso lhe tirou o sono por várias noites.

De repente seu conceito sobre si mesma mudou. Sempre se considerara uma porção de terra boiando à superfície da água, isso era ponto pacífico, todas as outras ilhas também pensavam assim. Mas agora já não podia acreditar nisso. Uma ilha não terminava ali na superfície. Não. Continuava para baixo. Uma ilha era na verdade uma montanha.

Saber que ela continuava além do que pensava ser era algo espantoso de se pensar. Assim, dia após dia, a ilha prosseguiu em seus esforços de auto-investigação – queria saber até onde existia. Mas à medida que sua atenção mergulhava em si mesma, as águas ficavam mais escuras. Era preciso cada vez mais concentração para não se perder. Ela prosseguiu e descobriu que o que existia abaixo da superfície possuía vida própria e, mesmo sem ser reconhecido, era capaz de interagir e até determinar o que existia acima. Uma ilha não era algo tão independente quanto pensava. Muito tempo se passou até que se convencesse de que era mesmo uma montanha com o pico emerso. E muito mais tempo para compreender que não flutuava solta nas profundezas do oceano: ela estava presa a uma base e essa base era uma enorme extensão de terra que funcionava como chão.

Vinham de lá todas as ilhas. E para lá voltariam todas quando os movimentos da terra e das águas as forçassem a isso. Mas as ilhas não sabiam da montanha e muito menos da terra ao fundo. Por isso as reais motivações do que faziam eram na maior parte desconhecidas. Se a montanha era a parte inconsciente de cada ilha, o fundo do mar era o inconsciente maior, único, de todas elas. Ao entender esse fato a ilha lembrou do tempo em que sua consciência de si própria se limitava àquela minúscula porção de terra à superfície. Todas as ilhas vêm do mesmo lugar - ela repetiu, intrigada - porque são feitas da mesma terra. A areia e os nutrientes que as raízes de suas plantas colhem vêm do mesmo chão. Todas as ilhas que existem são no fundo uma coisa só.

A ilha viu que eram ideias grandes demais, confundiam a mente. Aquela auto-investigação era importante mas era preciso muita atenção durante o processo. Só assim poderia voltar à superfície sempre que quisesse.

Enquanto tudo isso acontecia, as outras ilhas observavam seu comportamento e não entendiam. Concluíram então que estava louca e espalharam a notícia. A ilha sentiu-se só. Mas como poderiam condená-la por não compreenderem o que ela descobrira? Pensando melhor, eram todas partes dela mesma!

Então ela mesma ainda não se compreendia inteiramente. Foi então que a ilha percebeu, num clarão de compreensão, que toda aquela vasta extensão de terra inconsciente funcionava como um útero a expulsar pequenos pedaços de si mesma, forçando-os a ir à superfície.

Uma vez lá, eles se entendiam ilhas e começavam então sua aventura individual em busca de saber quem eram, aventura que podia durar anos, séculos, milênios, mas que um dia chegaria à mesma conclusão: todas as ilhas eram montanhas e todas as montanhas na verdade eram uma só extensão de terra a se experimentar em cada uma delas. Mas por que a terra fazia isso? Talvez para ela própria aprender com a experiência de cada ilha. Ao morrer uma ilha trazia à terra sua experiência para servir de aprendizado às futuras ilhas. Uma ilha continha em si, sem se dar conta, a mesmíssima areia das que a antecederam. A terra como um todo estava sempre aprendendo cada vez mais sobre si mesma.

Era mesmo uma tremenda aventura - pensou a ilha enquanto se divertia com os olhares estranhos que as outras lhe lançavam. Uma aventura de cada ilha. Mas também da terra inteira.

(autoria desconhecida)

Fonte:
Universo das Fábulas

Rubens Luiz Sartori (Poemas Avulsos)


NA BEIRA DO LAGO

Na beira do lago
não há "faz de conta".
Só coisas de fato.
Rodeiam os patos,
espreitam os sapos,
incautos insetos
fatores de vida,
da beira do lago.

Nos lagos tranquilos
de mato fechado,
carreiros de pacas,
de antas, capinchos,
galhadas, catetos,
e a noite barulha
nas águas do lago.

E o lago sozinho
nas vagas do tempo
seu mundo refaz.
Encrespa co' vento,
redobra suas ondas,
se torna tenaz.
E os dias escoam,
esvaem nas enchentes,
espraiam banhados
de beira de lago.

A lua debruça
seu manto de paz,
espelho luar
no ventre do lago.
E a vida contínua
na beira do lago,
é como ninar
de mãe benzedeira,
que conta a seus filhos,
centenas de histórias,
infindas de afago,
de todas as horas
na beira do lago.
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O TIJOLO E A VIDA

I
Ah! o tijolo do oleiro,
que amassa o barro bruto,
é um trabalhador resoluto,
retira da terra altaneiro
o seu sangue absoluto.
Faz na arte primitiva,
uma espécie alternativa
que constrói área e sala,
edifica até a senzala,
da negritude cativa.

II
Os tijolos da minha terra,
que se assentam em seus muros,
são tijolos de seis furos,
de oito, e muitos maciços;
são fortes, não são quebradiços.
São tijolos que guardam nobres,
nas tumbas dos cemitérios;
que também guardam gaudérios,
que viveram assim sem rumo,
mas que se igualam no prumo,
que só a tumba campestre,
nivela a todos os homens
na eternidade celeste.

Ill
São da terra que os adorna,
sem obedecer qualquer norma,
mas só a voz da natureza,
que nos tijolos da igreja,
celebram seu Criador.
Mas de que adianta a oração,
pro rude e louco pagão,
que só fez estripulia,
pois da sua vida um dia
só sobrou maledicência,
que pra muita consciência
é coisa feia e pecado.

IV
Porém, na vida, o passado,
só vale na hora da morte,
pros que têm muito mais sorte,
de ter uma cova bem rasa,
que agora será sua casa,
sem tijolo, porta ou cozinha,
mas na terra, mãe-madrinha,
que a todos recebe em consolo,
ajuntando cada tijolo
pras novas casas-mansões,
sucedendo as gerações
que virão sempre na terra,
qual tijolos cimentados,
na argamassa escondida
nas paredes da existência,
adornando a querência,
nas planuras e no vento,
fazem o arrimo da história,
que canta toda sua glória,
na herança eterna do tempo.

Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro

Francisca Júlia (O Monge)


Uns mercadores, com suas malas às costas, caminhavam em direção à cidade, para vender suas mercadorias. Mas a viagem tinha sido longa e eles estavam cansados.

Tinham atravessado campos, galgado montanhas e sentiam já tanta fadiga, que resolveram sentar-se sobre a relva para descansar. Mas o sol estava muito ardente e eles seguiram adiante. Entraram num bosque onde a sombra era fresca e em cuja entrada havia uma gruta de pedras brutas, iluminada de alvas estalactites.

Penetraram, não sem algum receio, cautelosos, porque podia ser um covil de malfeitores.

Tudo estava às escuras. Mas, logo que se habituaram às trevas s da gruta, viram um monge de joelhos, as mãos postas, a fronte erguida, absorvido nas suas preces.

— Monge, disse um deles; perdoa-nos ter-te interrompido nas tuas meditações. Entramos em tua habitação para te pedir abrigo contra os ardores do sol.

— Entrai, viajantes, respondeu o monge mal desperto das suas contemplações místicas Todos os peregrinos terão aqui seguro abrigo contra as inclemências do sol e contra as tempestades da noite.

Os mercadores agradeceram, e, como sentissem fome e sede, falaram:

— Na nossa longa e perigosa jornada a fome devorou nossas entranhas e a sede secou nossas gargantas; mas tu deves estar tão acostumado ao jejum, que em tua habitação nada pode haver.

— Nada há, de fato, pobres viajantes; mas o poder de Deus é infinito e a sua misericórdia é sem limites. Então, de um gesto, fez jorrar de uma fenda da rocha um grosso fio de água clara, onde eles beberam até à saciedade; e, arrancando do chão uns calhaus que se transformaram em pães, entregou-os aos peregrinos, dizendo:

— Tomai; cumpriu-se a divina vontade.

Os mercadores, homens materiais e rudes, tremeram de susto, receando algum sortilégio diabólico; mas, ao mesmo tempo, diante da religiosa bondade e aspecto humilde do monge, comeram.

E um deles falou:

— Monge, se tu estás revestido de tanto poder e podes, com um gesto apenas, fazer brotar a água e transformar em pães os calhaus brutos, por que não fabricas também o ouro para gozares as delicias da riqueza? E por que vives oculto nas trevas desta gruta, como uma fera, emagrecido pelos jejuns e cilícios?

— Que errada e falsa compreensão tendes da vida, meus amigos! Sabei que o ouro serve somente para corromper os sentimentos, envenenar a alma, e não poderá dar-me os gozos a que eu aspiro. Ao menos, na pobreza em que vivo e que desprezais, sem as preocupações que acarreta a fortuna e os pecados que ela desperta, posso mergulhar-me inteiramente em minhas preces e na contemplação da divindade.

Os viajantes agradeceram ao monge o generoso acolhimento, beijaram-lhe respeitosamente as mãos e partiram.

Fonte:
O Poeteiro

sábado, 19 de setembro de 2020

Arquivo Spina 10 (Luciene Avanzini)

 


Sammis Reachers (O Pau-de-Sebo)


As novas gerações e mesmo as mais maduras, porém criadas em ambiente urbano, talvez não saibam o que seja um pau-de-sebo – ou imaginem, de pronto e maldosamente, que ele seja algo muito diverso do que é na realidade.

Antes de maiores desentendimentos, deixe-me aclarar logo a questão: Pau-de-sebo é uma tradição típica de festas juninas, uma tora de madeira de grande altura, à semelhança de um poste desses de eletricidade, completamente lambuzado, lubrificado, empapado com sebo (gordura) de porco. Eeeecaaa!, dirá você. E qual o objetivo disso? Um totem para ser incendiado à meia noite? Um símbolo do sincretismo pátrio que fundiu temas do catolicismo a outros oriundos dos cultos de matriz afro?

O pau-de-sebo é apenas uma brincadeira, algo perigosa, sim, mas muito divertida, daquelas diversões cruentas hoje já tão raras.

Instalada a grande tora em ponto central da festa, já devidamente “confeitada”, avisava-se aos festeiros presentes que, no topo daquele poste, havia uma nota ou um cheque representando um valor algo considerável – Digamos, em valores de agora, 300, 500, até mil reais. Pois bem: Estava dada a largada para as tentativas de subir em tal poste. Escadas e apetrechos de apoio não podiam, claro, ser utilizados: O valente ou a valentina, pois sempre houve dessas, deveria atracar-se a todo aquele escorregadio desafio e escalar tronco acima, como um macaco. E como era divertido! De quando em vez o sebo era reposto, pois o frenesi de candidatos ao tesouro acabava arrancando boa parte do tal sebo, que saía grudado em camisas e bermudas... Era comum ver alguns, já quase chegando ao topo, cansados e de repente tocando área de banha ainda “virgem”, repentinamente despencar – e o sebo restante na enorme envergadura daquele pau, mesmo já ralo, fazia as vezes de poderoso lubrificante, pois para baixo, seja em festa de São João ou de qualquer outro patrono, todo santo ajuda.

Certa feita, fins da década de oitenta, realizaram aqui na comunidade gonçalense do Jardim Nazaré, também dito Palha Seca pelas línguas maledicentes, e bem em frente à minha casa, uma festa junina. O festim foi organizado dentro do tradicional, no prumo da ortodoxia: Montaram palanque para a dança de quadrilha, forraram a rua de lado a lado com barraquinhas de guloseimas e prendas; bandeirinhas cruzando os céus, bambus e caniços dando o tom de roça. O organizador da festa era um camarada bem simpático, eterno candidato a vereador (eterno não, depois cansou-se), o William. William era também cana, meganha, magarefe: Soldado porra-louca como era o normal dos policiais militares cariocas daquele tempo.

Anunciado o valor, os durangos, aventureiros e também cachaceiros do bairro se lançaram ao desafio, como heróis numa batalha.

Dias se passaram enquanto aqueles sôfregos ferrabrases de birosca se revezavam na frente – ou tora – de combate, e nada de nenhum dos valentes conseguir assenhorear-se daquela quantia, a essa altura já mítica.

Euzinho e outros peraltas, bem que tentamos dar nosso sangue em tal peleja comunitária, mas nada logramos. Nem o talvez maior escalador de nossa idade, o legendário Luciano “Neném”, também dito “Highlander, o Imortal” – que se tornara lenda não por seus dotes de abraça-tora mas, acredite se quiser, por engolir QUALQUER remédio que achasse no lixo durante as expedições em que catávamos ferro-velho, sem jamais manifestar qualquer efeito, seja salutar, seja colateral, de tão sinistro apetite – conseguia superar a extensão daquela vara... O expediente era coisa pra adultos mesmo.

A causa ou a bufunfa já era dada como perdida. Mas, num arroubo final, já no penúltimo dia dos festejos – que se estenderiam por uma semana – uma aliança sombria foi formada, uma cabala de malandros do “melhor” que havia na área. Iluminados ou apertados pela desesperança, elucubraram uma ideia, uma última cartada contra a fortaleza de sebo. E assim, com cada um dando o melhor de si, formou-se uma pirâmide humana, composta de uns seis bravios canabravas...

E não é que os rapazes conseguiram? Nande, o mais leve deles, ficou com a honra ou a temerosa missão de ser o topo da pirâmide. Foi lindo: O sol de fim de tarde chegou a emitir um pulso, um flash, um brilho especial quando aquela mão leve – na plena acepção do termo – apalpou a pontinha do cheque.

Ao desmontar-se aquela pirâmide mambembe, salvos todos sem ferimentos, grande foi a festa! Cada um daqueles pipa-avoadas parecia imitar um bicho, de tanto que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som um burro faz quando avoa!

Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor era nenhum: O cheque estava em branco.

O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver.

O impasse entre xerife William e aqueles homens agora furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.

Naquele eterno vai-não-vai que sempre impede o cidadão de bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi para o segundo-em-comando da festa: O DJ, mestre de cerimônias, eletricista, técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor Pardal da comuna, Paulo.

E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê, entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram arrancados, caniços de bambu se tornaram varas justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em estouro.

O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa, parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão e, contrafeito, observava por cima do muro. Era cada um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e sebenta tromba, e aplicando emplasto de saião nas feridas e nos magoados.

Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o valor imaginário do cheque, custavam as caixas de som que foram despedaçadas naquela festa de São João, um São João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na cara e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal festim!

No camarote das santidades, imagino que o bom São Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e, desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia, soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma festa, meu padrinho...”

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Thalma Tavares (Poemas Avulsos) 3


  AMADA

É tão doce, sutil, quase secreta,
tão gentil quanto a mais gentil donzela,
esta aura que faz de mim poeta
e me afaga ao entrar pela janela.

Vem da amada esta brisa e é por ela
que meu verso se faz canto de esteta,
e se alteia na estrofe que revela
que esta vida sem ela é incompleta.

Solidão era antes o meu nome
tão carente neste ermo, que consome
a esperança, a certeza e o porvir.

Mas foi ela quem veio dissipar
meus temores e fez-me acreditar
que hoje tenho razões para sorrir.
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MILAGRE

Eu era um deserto cinzento, sem flores
- um chão de tristeza em que não cresce a palma.
Então ela vem e me fala de amores,
e sobre o meu ermo a esperança se espalma.

Cobrindo de estrelas o ocaso sem cores,
trocando amarguras por noites de calma,
com rimas e afagos calou minhas dores,
e pôs em meu peito o candor de sua alma.

O vulgo não sabe quem é a criatura
que a mim favorece com tanta doçura,
repondo em meu ser a perdida alegria.

Os bardos já sabem do que estou falando,
mas vou concluir feito um bardo, cantando,
dizendo entre versos: seu nome é Poesia!
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TELEFONEMA
(Para o compadre Geraldo Nogueira)

- Alô, quem é que fala?... Ah, como vais amigo?
- Vou enganando aqui a minha ancianidade,
driblando-a como posso, a cultivar meu trigo,
curtindo a natureza e espantando a saudade...

E tu, como é que vais com teu mister antigo
de enganar, versejando, a dura realidade?
Bem pior do que tu, que em teu rural abrigo,
não sofres como nós os males da cidade.

- Então, porque não vens, com malas e papéis
soltar a inspiração aqui nestes vergéis,
ver a vida acordar na paz de todo dia?...

- Quem me dera!... Não posso... Este meu coração
é carrapato urbano... E longe deste chão,
de tédio e solidão decerto eu morreria.

-  Qual nada, meu irmão!... À sombra hospitaleira,
que o nosso coração há muito te oferece,
e sob a imensa paz ao pé do cordilheira,
tudo mais que escraviza a gente logo esquece.

– Tua amizade, irmão, sempre foi verdadeira.
Estar junto de ti é desfrutar a messe
que nos vem lá do céu, serena, alvissareira,
e é dádiva de paz que conforta e que aquece...

- O mesmo digo eu sobre a tua amizade...
Será bom te abraçar e matar a saudade
dos antigos serões, de tuas boas falas...

- Pois então, se é assim, me espera por aí...
Preciso desligar... Vou correndo daqui
juntar os meus papéis e preparar as malas.
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TRANSCENDÊNCIA

Meu bem, o meu amor já se faz quieto,
já não se perde em queixas ou lamúria.
Mesmo ele sendo o teu prazer dileto,
não quer que esse prazer mude em luxúria.

Meu corpo, que te quer além do afeto,
pede à libido que contenha a fúria.
Não pretende que eu o torne um objeto
mudando o sol do amor em luz espúria.

O meu amor quer ver a luz radiante
que a ternura projeta em teu semblante,
convertendo-te em anjo sideral...

Toma, pois, minha mão, sente minha alma,
e vê como palpita em tua palma
meu desejo de amor transcendental!

Fonte:
Thalma Tavares. Alguns sonetos e sonetilhos. São Simão/SP, 2014.
Apostila enviada pelo poeta.

Carolina Ramos (Obrigada, Vizinha!)


Conheci-a por acaso, num jantar, e, logo, sua afetividade cativou-me.

Minha amiga é uma senhora tranquila, muito simpática e atenciosa. E muito querida, também.

Não lhe menciono o nome por discrição. Não sei se gostaria de vê-lo declinado em letra de forma.

Contudo, para identificá-la é fácil. Afora as múltiplas qualidades que possui, bastaria se dissesse que de suas mão gentis sai o mais gostoso arroz doce que muita gente já comeu em toda sua vida! E o melhor, é que posso me instalar, gostosamente, entre os felizes provadores desse delicioso quitute.

Por mais de uma vez, a terrina fumegante já atravessou a rua que nos separa e gentilmente transpôs a minha porta.

E como é sabido que essa terrina fumegante, e tão apetitosa, chega, sempre em datas significativas e só, naturalmente às mesas de amigos, creio que posso, em definitivo, chamar de amiga àquela que enriquece minha ceia natalina, perfumando-a com o cheiro adocicado da canela em pó. Canela que amorena a brancura daquele arroz doce, cuja lembrança faz crescer água na boca.

Neste verão tórrido, mais uma gentileza devo agradecer à estimada vizinha.

Seu casarão branco, cercado de flores, é uma das visões mais agradáveis que meus olhos captam, quando, ao contornar o quarteirão, dou de frente com aquele cromo suavemente colorido onde a primavera parece eternizar suas bênçãos.

E é assim que, todos os dias pela manhã, eu saúdo minha vizinha, mesmo sem vê-la. E, mesmo sem vê-la, eu lhe agradeço, com muito carinho, aquelas flores tão lindas que ela planta no canteiro de minha alma, todos os dias, sem mesmo saber o bem que me faz!

As coisas mudam. Eu mudei de endereço e essa amiga gentil mudou-se para mais perto de Deus. Sua casa também mudou de função, as flores não mais existem porque suprimidos os canteiros. Apenas não mudou aquele perfume de canela que ficou na lembrança e que mais se acentua quando os sinos avisam que o Natal está às portas. E então, intimamente repito:

— Obrigada, vizinha! O mundo seria bem melhor, se copiasse a sua cordialidade.
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(Crônica publicada no jornal "A Tribuna", de Santos)

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Arquivo Spina 9 (Ana Luzia Moura)

 


Carla Rejane Silva (Os Encantos da Nova Casa)


Mudei de casa, ou melhor, de apartamento. Estou, agora, em um maior. Quatro quartos, dois banheiros, uma sala enorme, cozinha espaçosa, área de serviço e pasmem, duas portas de entrada independentes. Como não tenho essas frescuras de superstições (a doença do Roberto Carlos), posso entrar por uma porta e sair pela outra, sem problemas.

Ou entrar pela outra e sair por uma, que dá no mesmo. Ou, no pior das loucuras, entrar e e sair pelas duas, ao mesmo tempo. O apartamento anterior era confortável, não nego. Dois quartos, uma cozinha pequena, um banheiro cheio de vazamentos, além das persianas que guarneciam os quartos e a sala estarem quebradas.

Falei diversas vezes no escutador de novelas da proprietária e ela nada de mandar arrumar os trocinhos quebrados. Tem gente que só quer ganhar (venha a nós o vosso reino...), ou grosso modo, meter o dinheiro do aluguel no bolso e o resto que se dane. Cuidar do patrimônio, para certas pessoas, representa o mesmo que ‘neca de pitibiriba’, ou seja, não representa coisa nenhuma.

Apesar desses entraves, eu me conformava, ia levando, empurrando com a barriga... Todavia, questão de uma semana atrás,  tive uma razão muito forte  que me fez mudar de ideia e entregar o imóvel à senhora dona Mão de Vaca. A vinda de minha filha Larissa e meu genro Artur, de Patrocínio, nas Minas Gerais, de mala, cuia, papagaio, gato, cachorro e outros bichos.

O fato é que esse evento contribuiu, sobremaneira, para eu chutar o pau da barraca e tomar a decisão de mudar imediatamente de endereço. Graças ao bom e amado Deus, a nova residência está encostada à outra (a antiga), embora seja em prédios diferentes. Outro detalhe: saí de um terceiro andar enervante para um segundo, com menos degraus para se galgar  até o novo portal do apê.

Estou feliz e realizada. Acho até que remocei uns vinte anos. Nessa nova casa eu terei meu quarto independente, minha filha e genro o quarto deles e o espaço, como um todo, praticamente quadruplicou. No mesmo pé, os móveis terão mais  clima de amplidão, podendo ficar mais desenvoltos nos ambientes, e sem estarem colados uns aos outros.

Já nem vou falar no piso de todos os cômodos, que me agradou deveras, ao contrário do chão anterior que, mesmo encerado e dado o brilho devido, deixava a casa às escuras e os móveis entristecidos, sem as matizes aconchegantes da felicidade. Loft novo, vida nova, ares benfazejos renovados. Tudo a contento. É o recomeço da alegria se reinventando.

Diria mais: vislumbro o início de uma nova e duradoura caminhada. O horizonte logo ali adiante, se abre numa linha infinda e inimaginavelmente abissal e eu, agora, posso dizer, sem medo de errar, que sou feliz e realizada. Resta, agradecer à Deus por mais esta oportunidade obtida em minha vida. SOU FELIZ. Viva euuuuuu!

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.

Monteiro Lobato (De como quebrei a cabeça à mulher do Melo)


— OLHA, esperam-te hoje em casa para o jantar.

— Impossível. Não janto fora.

— Abre uma exceção e vai.

— Impossível, já disse. Não insistas.

— Põe de lado a esquisitice e vai.

— Não é esquisitice, meu caro, é sibaritismo e prudência. Tenho para mim que comer é uma das boas coisas da vida. Mas comer o que se quer, como se quer, quando se quer. Gosto, por exemplo, de lombo de porco, mas a meu modo, assado cá dum jeito que sei. Se o como fora de casa, nunca o tenho ao sabor do meu paladar. Gosto ainda de comer quando tenho fome. Detesto o horário forçado, almoço às onze, jantar às seis, haja ou não apetite. Ora, a não ser em minha casa, onde não tenho horário, raramente o apetite coincidirá com o momento do bródio. Esta circunstância, aliada ao fato de ser induzido a comer o que está na mesa e não o que me pede a veneta, leva-me a recusar sistematicamente convites para jantar.

— Mas, homem de Deus, para tudo há remédio. Farás tu mesmo o cardápio, darás as receitas e só se porá a mesa à voz do teu apetite.

— Não. Em tua casa são todos de tal modo amáveis que receio não chegar à sobremesa sem cometer um homicídio.

— !!!

— Nunca te contei o meu rompimento com a família Melo? Éramos amicíssimos de longos anos e sê-lo-íamos até hoje se não fosse a minha imprudência aceitando um convite para lá jantar em dia de anos da dona Vidoca. Havia à mesa umas dez pessoas, todas íntimas, e as filhas, os genros — um povaréu. Dona Vidoca, como sabes, é uma criatura excessivamente amável e nesse dia excedeu-se. Serviu-me sopa, ela própria, mas carregando a mão como se eu fora um frade. Arrepiou-me aquele pantagruelismo brutal, mas calei a exasperação e ingeri com paciência toda a maranha de fios amarelos, boiantes num caldo untuoso. Mal absorvera a última colherada, a boa senhora, sem consulta prévia, atocha feijão num prato e passa-me.

“— Não, minha senhora, muito obrigado!

“— Ora, coma! Deixe-se de história. Coma feijão que dá sustância.

“Não houve escapatória possível; tive que aceitar o truculento prato de caroços pretos, coisa que detesto. Olhei para a rodela escura, cor de chocolate, que se me esparramava pelo prato inteiro sem deixar transparecer uma nesga sequer da louça branca, enchi-me de resignação e empreendi o trabalho de Hércules que era trasladar tudo aquilo para o estômago. Mas meu sangue começou a esquentar e senti o nó das cóleras surdas a subir-me à garganta. Estava eu em meio da empreitada, quando vi a excelente senhora dirigir para o meu prato um enorme naco de carne fisgado no garfo.

“— Doutor, um pedacinho de carne assada?

“Gaguejei, mal firme nas estribeiras:

“— Mas, minha senhora, eu...

“— Sempre com cerimônias! Olhe que aqui não se usa disso! Coma lá!

“E soltou-me no prato o boi...

“Senti bagas de suor frio borbulharem-me na testa. O nó da garganta engrossou. Baixei a cabeça, resignado, e encetei silenciosamente a mastigação, matutando sobre o modo de dar cabo daquilo. Comer tudo era impossível; deixar no prato, impolidez...

“— Agora um pouco de arroz!

“Lancei um olhar facinoroso à santa criatura, que o interpretou de maneira errônea, como de assentimento.

“— Eu bem vi que estava querendo arroz.

“— Impossível, dona Vidoca! Peço-lhe perdão, mas estou satisfeito. Como pouco e o que tenho no prato janta-me por três dias.

“— Luxento! Coma lá!

“E zás!, uma, duas, três colheradas, das grandes.

“Uma onda de sangue escureceu-me a vista. Tive ímpetos de saltar pela janela. Contive-me, porém, e com a resignação dos verdadeiros mártires recomecei a mastigar.

“— Um pastelzinho agora?

“Era demais! A virtuosa criatura abusava da minha situação. Recusei desabridamente, áspero.

“— Já sei por que não quer... É que foram feitos por mim... Mas deixe estar...

“— Dona Vidoca! Pelo amor de Deus! — gaguejei.

“— Unzinho só! Para me dar opinião sobre o tempero da massa, sim? Apare lá estezinho tostadinho, sim?

“Conheces o meu gênio, sabes com que facilidade saio fora de mim e cometo as maiores loucuras. Esse estado de superexcitação nervosa preludia por um tremor da voz e excessiva quentura nas faces. Naquele momento, sentindo os pródromos da erupção, entreguei-me a esforços sobre-humanos para conter a fera que mora em mim. E contive-a. Curvei de novo a cabeça e levei à boca mais umas garfadas.

“Aqui, Melo principia a trinchar o leitão.

“Refleti: se me oferecem, estouro. E fiquei de sobreaviso, engatilhado para o revide.

“Não tardou muito que dona Vidoca espetasse no garfo uma alentadíssima costela de leitão e fizesse pontaria para o meu lado.

“Ah! Perdi a tramontana! Agarrei na garrafa que estava na minha frente e abri a cabeça da santa criatura com uma pancada horrível!

“De nada mais me lembro. Ouvi um berro, um clamor. Senti o pânico em redor de mim e corri para a rua como um ébrio. Foi quando...”

Não concluiu. O amigo havia abalado.
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Nota da primeira edição (1946)

Esta história deu origem a curioso incidente. Publicada em julho de 1906, sob o pseudônimo de Antão de Magalhães, no Minarete, que circulava não só em Pinda como nas cidades vizinhas, caiu sob os olhos de um hoteleiro da cidade de São Bento, de nome Melo e por coincidência esposo de uma senhora de apelido Vidoca. O excelente homem viu no artigo alusões pessoais e ofensivas a ele e sua família — e apresentou queixa-crime. Aqui vai a petição, transcrita do Minarete:

Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito desta Comarca.

Diz F. F. Melo, por seu procurador, que, sentindo-se ofendido, com sua família, pelo injurioso artigo do Minarete, periódico de imprensa desta cidade, ora junto, distribuído por mais de quinze pessoas, intitulado “De como quebrei a cabeça à mulher do Melo” de 19 de julho de 1906, assinado por Antão de Magalhães, edição nº 159, e querendo a bem de seus direitos promover a responsabilidade criminal do autor, que não é pessoa conhecida, pelas injúrias que afetam ao suplicante e sua família, vem requerer a V. Exa. que se digne mandar intimar ao editor ou gerente da tipografia do dito periódico, senhor José Monteiro Salgado, que é quem assumiu a responsabilidade da publicação do Minarete perante a Câmara, preliminarmente, para exibir em juízo o respectivo autógrafo, em dia, lugar e hora previamente designados, requerendo também o suplicante a V. Exa. para isso uma audiência extraordinária, visto ser urgente a diligência etc. etc. Nestes termos, o suplicante requer que D. e A. esta, com os documentos inclusos, se proceda na forma da lei, a fim de que, terminadas as diligências, a exibição do referido autógrafo e pagas as custas do processo, sejam os autos originais entregues ao procurador do suplicante independente de traslado, para deles fazer o uso que convier ao suplicante.

P. deferimento E. R. M. Pinda, 26 de julho de 1906. Com a proc. inclusa — o advogado J. M. F. J.

O processo não foi por diante, irrisório que era. Apesar disso, a brincadeira custou ao escamado hoteleiro perto de um conto de réis...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.