terça-feira, 9 de agosto de 2022

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Com Verdelírio, no trem

Meados dos anos 1950. Na estação de Maringá embarquei no último vagão do “Expresso Verde”, uma boa maneira de ir a São Paulo naquela época. Antes mesmo de o trem partir, aproximou-se de mim um rapaz, que perguntou: “Você por acaso é o Assis?”. Respondi que sim, e ele se apresentou: “Meu nome é Verde – Verdelírio Barbosa. Te conheço de nome e de foto. Costumo ler o que você escreve nos jornais”. De imediato me lembrei também do nome dele. Era ainda muito jovem, porém já aparecia de vez em quando assinando textos na imprensa local e iniciava carreira no rádio.

Verde sentou-se numa poltrona a meu lado e a conversa foi longa e animada, cada um esmiuçando a vida do outro. Descobri até que ele, além de apaixonado pelo jornalismo, curtia também compor versinhos – sonetos e trovas.

A viagem era comprida, cerca de 20 horas até a capital paulista. Havia três opções: vagão de segunda, vagão de primeira e, de Londrina em diante, cabine em carro leito. Parava em um monte de estações: Sarandi, Marialva, Mandaguari, Jandaia, Apucarana, Arapongas, Rolândia, Cambé... Depois de Londrina parava menos. Em Ourinhos costumava trocar a locomotiva.

Para distrair o tempo, os passageiros achavam chique ir ao vagão-restaurante, onde se podia almoçar, jantar, comer um lanche ou simplesmente tomar uma cervejinha. A gente se sentia como se estivesse numa cena de cinema, esperando ver entrar a qualquer momento uma daquelas bonitonas de Hollywood com chapéu enorme e piteira na boca.

O trem fazia também frequentes paradas nas caixas d’água, para reabastecer a caldeira. Verdelírio comentou: “O comum era ao lado de cada caixa d’água haver uma casa onde morava o responsável pelo serviço. Com o tempo, ali se construíam outras casas e o local virava uma aldeia. Foi por isso que, principalmente no trecho paranaense, se formaram tantas cidades distantes 10 ou 15 quilômetros uma da outra”.

Dia desses Verde e eu almoçamos juntos no Açukapê e no meio do papo essas lembranças vieram à tona. Éramos os dois, naquele tempo de pioneirismo, bem moços ainda, ele mais moço que eu, começando a labuta na imprensa e no rádio. Trabalhamos juntos em emissoras de rádio e em jornais. Depois ele teve intensa participação em programas de televisão, enquanto eu passei a me dedicar mais ao ensino, como professor em alguns colégios e finalmente na UEM, onde me aposentei. Hoje o Verde é o diretor do “Jornal do Povo” e desfruta de grande e merecidíssimo prestígio, não só em Maringá, mas em todo o Paraná e no Brasil.

Como o “Jornal do Povo” fica próximo de onde moro, frequentemente nos encontramos e cada encontro é uma nova oportunidade para a troca de abraços. Mais que colegas e velhos amigos, somos antes de tudo irmãos.

Fonte:
http://aadeassis.blogspot.com/2020/04/com-verdelirio-no-trem.html

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 2

ENCANTOS DA NATUREZA

Céu cinzento
Nuvens carregadas
A chuva cai...

O arco-íris dá sinais
De que amanhã
O sol voltará a brilhar.

Como é bom sentir o vento...
As mágoas são levadas,
A mãe natureza jamais nos trai.

Andorinhas gorjeiam
Em voos matinais
Num balé majestoso...

O crepúsculo desce no horizonte...
O sol encontra o mar num abraço caloroso
Com seus raios a bailar...
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ENCONTRO

Que eu não perca minha essência...
Mesmo quando a tristeza me abater.
Que eu não perca a magia
E o encanto que vejo nas pessoas...
Mesmo quando a decepção se apresentar.
Que eu não perca minha alegria...
Mesmo quando tudo parecer desmoronar.
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ENCONTRO (II)

Nessa espera sem fim
Busco algo dentro de mim.
Não sei ao certo o quê.
Talvez respostas
Ou perguntas...
Quem sabe alguns porquês?
Enquanto espero
Divago em pensamentos
Desejos contidos.
E nessa busca entendo
Que o que sempre esperei,
O que sempre busquei,
Está aqui.
Que bom que te encontrei...
Que bom que me achei...
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EU, POETISA

Sentir o romantismo em um
Fim de tarde no outono...
Permitir que o horizonte
Se misture com o mar...
Sorrir com o olhar...
Imaginar o sol se despedindo...
A poesia se fazendo presente
Em cada veia, em cada batida
Que meu coração dá.
É algo intenso...
Muito maior do que eu...
Um dom misturado a um sentimento.
Impossível de descrever...
Meus escritos expressam
Essa minha maneira de ser.
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INFINITO INSTANTE

Momentos preciosos, momentos só meus.
Somente um instante...
Onde o tempo parece parar.
A vida flui...
A caminhada tem que continuar...
Mas alguns momentos
É impossível deixar para trás.
Sinto relances através do meu olhar.
Vejo lembranças em um futuro
Que parece nunca chegar.
Desfazer os nós é dolorido, sofrido...
Necessário...
Uma alma sonhadora
De vez em quando sem chão...
Sou alegria, sou colorida,
Às vezes cinzenta,
Desprovida de emoção...
Mas sem jamais deixar de acreditar
Que dias melhores e felizes virão.
Sou o caos, sou a calmaria
Contidos no imenso frasco da solidão.
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INSONE MADRUGADA

Nesse silêncio
Essa quietude
Esse sentimento...
Essa vontade de me pertencer.

Mergulho
No inconsciente.
Sinto meu corpo
Amolecer, entardecer...

Percebo,
Com o dia clareando,
Que finalmente
Poderei adormecer.
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INTROSPECÇÃO

Hoje percebo que toda mágoa,
Todo ressentimento, se foi...
E sinto um alívio, uma paz,
Um sentimento bom.
Será esse o verdadeiro amor?
O amor puro, o amor que não fere,
O amor que simplesmente ama
Sem pedir nada em troca,
Sem exigir, sem sofrer, sem doer?
Talvez eu nunca saiba essas respostas...
Mas nesse instante
Eu sei que amo.
E sei que esse momento ficará eterno
Dentro de mim...

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Machado de Assis (Filosofia de um par de botas)

 
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit. (Deus fez esses lazeres para nós)

Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.

Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjeturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:

BOTA ESQUERDA.- Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.

BOTA DIREITA.- Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?

BOTA ESQUERDA.- Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância...

BOTA DIREITA.- Na elegância, ninguém nos vencia.

BOTA ESQUERDA.- Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate... aquele par...

BOTA DIREITA.- O dos botões de madrepérola?

BOTA ESQUERDA.- Esse.

BOTA DIREITA.- O daquela viúva?

BOTA ESQUERDA.- O da viúva.

BOTA DIREITA.- Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.

BOTA ESQUERDA.- O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.

BOTA DIREITA.- Sempre te conheci pirracenta.

BOTA ESQUERDA.- Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.

BOTA DIREITA.- Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete, até tarde, duas e três horas da madrugada; mas, como o divertimento era parado, não nos incomodava muito. E depois, entrava em casa, na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?

BOTA ESQUERDA.- Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa senhora!

BOTA DIREITA.- Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles frequentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro! Estivemos ali uns quarenta dias, não?

BOTA ESQUERDA.- Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.

BOTA DIREITA.- Deixemo-nos de política.

BOTA ESQUERDA.- Apoiado.

BOTA DIREITA (com força).- Deixemo-nos de política, já disse!

BOTA ESQUERDA (sorrindo).- Mas um pouco de política debaixo da mesa?... Nunca te contei... contei, sim... o caso das botinas cor de chocolate... as da viúva...

BOTA DIREITA.- Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos? Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas, e falamos, falamos pelas tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada: “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais...

BOTA ESQUERDA.- Pois é justamente o que eu queria contar...

BOTA DIREITA.- Também conversaste?

BOTA ESQUERDA.- Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito devagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.

BOTA DIREITA.- Agora me lembro: pisaste a bota do comendador.

BOTA ESQUERDA.- A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito vermelho...

BOTA DIREITA.- Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de poucas causas.

BOTA ESQUERDA.- Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!

BOTA DIREITA.- Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães, dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os escrivães...

BOTA ESQUERDA.- Et coetera (e o resto). E as chuvas! e as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta janela à banda.

BOTA DIREITA.- Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ah! já não era a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.

BOTA DIREITA.- Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite...

BOTA ESQUERDA.- No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as noites... Nós éramos as botas do curso...

BOTA DIREITA.- Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim...

BOTA ESQUERDA.- Coisas!

BOTA DIREITA.- Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava; não tínhamos o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranquila.

BOTA ESQUERDA.- Relativamente, creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.

BOTA DIREITA.- Quando fomos parar às mãos...

BOTA ESQUERDA.- Aos pés.

BOTA DIREITA.- Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!

BOTA ESQUERDA.- Tu queixas-te, mana?

BOTA DIREITA.- Se te parece!

BOTA ESQUERDA.- Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, — por outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.

BOTA DIREITA.- A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.

BOTA ESQUERDA.- Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.

BOTA DIREITA.- Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora...

BOTA ESQUERDA.- Agora quê?

BOTA DIREITA.- A vergonha, mana.

BOTA ESQUERDA.- Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um não olha para suas ideias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade civil...

BOTA DIREITA.- Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.

BOTA ESQUERDA.- Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos menos cumprimentadas?

BOTA DIREITA.- Talvez.

BOTA ESQUERDA.- Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota... Ora, pois! Viva a liberdade! viva a paz! viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?

BOTA DIREITA.- Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão... Viva a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado...

BOTA ESQUERDA.- Qual passado? O de ontem ou de anteontem? O do advogado ou o do servente?

BOTA DIREITA.- Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.

BOTA ESQUERDA.- Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e respeitável.

BOTA DIREITA.- Respeitável, um par de botas velhas! Útil, um par de botas velhas! Que utilidade? que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é que nos há de respeitar? — aqueles mariscos? (olhando para mim) Aquele sujeito que está ali com os olhos assombrados?

BOTA ESQUERDA.- Vanitas! Vanitas! (vaidades!vaidades!)

BOTA DIREITA.- Que dizes tu?

BOTA ESQUERDA.- Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.

BOTA DIREITA.- Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?

BOTA ESQUERDA.- Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas; direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas botas!

Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.

Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.

Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.

MENDIGO.- Deus lhe pague, meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs aqui...

EU (ao mendigo).- Mas, espere...

MENDIGO.- Espere o quê? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando nas botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante...

BOTA DIREITA.- Que é isto, mana? que é isto? Alguém pega em nós... Eu sinto-me no ar...

BOTA ESQUERDA.- É um mendigo.

BOTA DIREITA.- Um mendigo? Que quererá ele?

BOTA DIREITA (alvoroçada).- Será possível?

BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!

BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.

Fonte:
Publicado originalmente em O Cruzeiro, 23 de abril de 1878.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Encrenqueiros)

NA HORA do intervalo para o recreio, Jujuba se aproxima do colega Brucólio. Puxa conversa. Na verdade, Jujuba não gosta de Brucólio, porque ele está de olho na sua irmã Josefina.

Jujuba:
— Estava te observando de longe, Brucólio. Como você é baixo. Não sei o que a minha mana viu em você!

Brucólio:
— Olha quem fala. Despeitado. Como se você fosse alto o suficiente...

Jujuba:
— Pelo menos vejo meu tênis nos pés mais longe que você enxerga os seus... se é que enxerga.

Brucólio:
— Tá me tirando?

Jujuba:
— Não, só estou dizendo que você é miúdo. Parece aqueles cachorrinhos da raça Chihuahua que não crescem.

Brucólio:
— Você tem mãe, Jujuba?

Jujuba:
— Você sabe a resposta... que pergunta mais besta. Está até querendo que ela venha a ser futuramente a sua sogra. Se depender de mim...

Brucólio:
— Me responda, seu verme. Você gosta dela?

Jujuba:
— Dela quem? Da minha mãe? Claro. Amo! Por?

Brucólio:
— Me faz um favor. Vai cantar as suas idiotices nos ouvidos dela. Deixa eu aqui quietinho no meu canto.

Jujuba não dá a mínima e segue colocando defeitos em seu colega.

Jujuba:
— Olha para isso! Até seu sanduiche é mirrado. E o refri? Não tinha uma garrafinha maior?

Brucólio:
— Jujuba, seu filho de uma égua. Vai torrar a paciência de outro. Olhe em sua volta. Tem tanto piá dando sopa. Por que implica logo comigo?

Jujuba, com ar de deboche:
— Por dois motivos. Um. Você está de olho comprido na Josefina. Dois. Seu aspecto amorrinhado me lembra do Guran, aquele pigmeu que vive no Trono da Caveira, junto com o Fantasma.

Brucólio:
—  Amorrinhado, pigmeu e Fantasma é o seu pai...

Jujuba:
— Meu pai tem quase dois metros de altura.

Brucólio:
— Jujuba, me deixa em paz. Vai ver se estou no banheiro fazendo xixi na sua carcaça...

Jujuba cai em estrondosa gargalhada.
— A sua paz pelo menos é grande?

Brucólio acaba perdendo as estribeiras. Parte para o ataque. Atira o seu lanche no rosto de Jujuba. Jujuba se esquiva a tempo e ridiculariza:

— Errou. Ta vendo? Até a sua direita é fraca. Você não acerta nem mosca. Boboca, boboca, bobocaaaaaa...

Em face de não ter atingido o alvo, Brucólio se enfurece ainda mais. Vocifera:

— Vou te pegar, seu idiota...

Das palavras parte para a ação. Se arma, em contínuo, de uma vassoura e pula com tudo para cima de seu opositor. Jujuba dispara em ziguezague espiralando em meio de outros albergados. O pátio da escola é enorme e Brucólio não consegue acompanhar a velocidade do seu desafeto.

Jujuba:
— Nem correr sabe – troça o Jujuba, galhofando. Parece uma barata tonta. Vem, vem, vem...veemmmmmm...

Brucólio:
— Quando você sentir na pele a minha raiva, a sua mãe não vai reconhecer a sua fuça. Eu te mato...

Jujuba:
— Do jeito que você corre, me lembra o Zangado...

Brucólio:
— Quem é Zangado?

Jujuba:
— Um dos “anão” da Branca de Neve...

Brucólio:
— Filhote de verme... vou fazer você engolir tudo o que está me dizendo...

Jujuba:
— Vai ser fácil. Suas palavras são tão atrofiadas que engolirei numa só abocanhada. Venha, venha, venha, venhaaaaaa... aproveita e monta na vassoura...

A correria desordenada acaba quando ambos esbarram na professora Sofia, coordenadora e diretora do estabelecimento.

Em decorrência, a jovem tropeça numa galera de pernas e braços que igualmente voava atrás dos tresloucados, em apavorantes gritarias. A professora cai de costas e se estabana no chão de cimento.

Professora Sofia:
— Ei, vocês dois, que diabo está acontecendo aqui?

Os ajuntados oriundos de outras dependências se aglomeram em volumosa curiosidade. Abrindo caminho em meio ao furdunço, serventes acorrem em socorro da professora Sofia, enquanto educadores seguram os travessos encrenqueiros.

— Os dois, na minha sala, agora...

Jujuba e Brucólio imediatamente são impedidos de voltarem aos seus locais de estudos. Os pais chamados. Cada um dos brigões toma suspensão de três dias e a promessa solene de serem expulsos se outra mazorca* tornar a criar vida e forma.       
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* Mazorca = baderna, tumulto

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 7 de agosto de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 11

 

Leandro Bertoldo Silva (A literatura é uma escada muito alta)

Uma das condições que nos faz ser humanos é a nossa capacidade de ler. Ser leitor é estar inserido, não em um universo, mas em algo maior, uma espécie de pluriverso que é, ainda, mais vasto. Gosto dessa palavra: “Vasto”. Lembro-me de Drummond ao escrever: “Mundo, mundo, vasto mundo. Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução”. Bem, não me chamo Raimundo, mas supondo ser esse o nome de todos os alunos e alunas que dizem ter horror à leitura por não entenderem como, ao ler, somos transportados aos vastos mundos, conscientes e inconscientes, reais ou imaginários, busquemos a solução com licença ao poeta.

Antes, o que nos faz verdadeiramente humanos em nossa experiência leitora é perceber que não lemos somente as palavras. Há algo a mais nessa experiência que reflete a nossa condição lúcida de seres racionais dotados de uma inteligência superior. Sempre digo: precisamos aprender a ler a verdadeira natureza íntima de todas as coisas. Eu, como escritor, gosto dos leitores que leem os cheiros, os sabores, as lembranças, as saudades, as esperanças, as suposições… As letras são materializações do que sentimos, mas não devemos ficar presos nelas, pois se assim acontece, ficamos na superficialidade, no espelho das águas e perdemos a oportunidade de desfrutar o encontro das profundidades. É como a árvore; vemos o seu tronco, galhos, folhas e frutos, mas não enxergamos o mais importante: suas raízes. Na escrita se dá o mesmo. É preciso ler as raízes, o que está “escondido”, pois são elas a sustentar sua existência.

Mas deixemos as digressões. Até porque estava nelas quando um aluno levantou a mão no meio da sala.

— É o seguinte, fessô, — disse ele coçando a cabeça. - Eu sei que o senhor é escritor e fala essas coisas aí, mas eu não consigo entender essas paradas de ler o que não tá escrito. Como isso é possível?

— Ora, Raimundo, você ouviu o que eu falei sobre a árvore?

— Ouvi, fessô, mas isso tudo é poético demais… Falando assim até dá pra entender, mas sei lá…

— Certo. Vou te explicar de outra forma. Vamos fazer uma pequena viagem mental.

— Fazer o quê?

— Um faz de conta, vou contar uma história e você vai se vendo dentro dela.

— Pô, fessô, maneiro. A galera pode vir junto?

— Pode. Mas você precisa se concentrar, pode ser?

— Pode crer.

— Vamos lá. Imagina que você está indo para uma cachoeira com alguns amigos.

— Maneiro.

— Porém, durante o trajeto e ao chegar lá o sol foi se escondendo e dando lugar a um tempo nublado e até com alguns pingos de chuva, poucos, mas suficientes para turvar a água e impedir a sua bela visão cristalina.

— Pô, fessô, sacanagem…

— Concentra, Raimundo.

 — Vai nessa.

— Se algum de seus amigos falasse para você pular na água de cabeça, você pularia?

— Com a água turva? Tá doido, fessô, de jeito nenhum!

— Ora, e por quê?

— Por quê?! Cê tá doido mesmo! Com a água turva não dá pra ver o fundo e nem onde as pedras estão. É perigoso pacas!

— Pedras? Mas que pedras? Eu não falei em pedras! Além do mais, você nem as viu! Como sabe que tem pedras?

— Ô, fessô, se liga! Cachoeiras são lugares de pedras a contar pelas que existem nas margens. A gente pode até não tá vendo, mas isso porque a chuva que o senhor falou fez mexer as paradas lá embaixo da água e a lama subiu pra superfície. Mas que tem pedra, ah isso tem. E vai que tem uma exatamente onde eu pularia…

— Hummm… Sabe o que você fez, Raimundo?

— Me livrei de uma?

— Isso também. Mas você acabou de fazer uma leitura perfeita da natureza e das suposições.

— Hã?!

— Sim, Raimundo, percebe! Você leu a água, a lama, a chuva… E não havia palavras aí, ou seja, as pedras. Você enxergou o que não estava visível, exatamente como devemos fazer em uma leitura: ler nas entrelinhas, nos espaços vazios onde as palavras já não são necessárias… Entendeu?

Nem era mais preciso perguntar. A sua expressão disse tudo. Ele ficou satisfeito com a explicação. Eu mais ainda por ter, talvez, despertado mais um leitor crítico. Ao vê-lo com seu ar alegre e orgulhoso de si mesmo e em meio à algazarra da turma que o saudava, fiquei a pensar… É, a literatura é mesmo uma escada muito alta e para se chegar ao topo é preciso subir degraus.
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Pois é, essa é uma fala corriqueira minha. Quem me conhece sabe disso. Infelizmente, tem muita gente adepta ao salto à distância e quer alcançar, de um pulo só, o último degrau. Vemos isso muito nas escolas quando “obrigam” alunos a lerem autores e obras que ainda não estão preparados e, além de não prepará-los, ainda dão prova de livros, prática que eu nunca fui adepto, pois acredito mesmo que há muitas outras maneiras de se avaliar uma leitura… E você, o que acha disso?

Fonte:
Texto enviado pelo autor, disponível no blog Árvore das Letras.
https://arvoredasletras.com.br/2022/05/21/a-literatura-e-uma-escada-muito-alta-2/

Caldeirão Poético LII


Caio de Melo Franco
Montevidéu/Uruguai, 1896 – 1955, Paris/França

EVANGELHO DA VELHICE

— "Quando a Velhice te bater à porta,
queres ouvir nosso Evangelho? — escuta:
Abre de manso e trêmula perscruta
aquela face que a tristeza corta.

Olha-a de frente... e uma alegria morta
verás em cada sulco que a labuta
deixou, fundo, ficar da insana luta,
que não nos confortou, nem nos conforta!...

Enxugarás o olhar inconsolado...
E ficarás pungentemente olhando,
de mãos postas, a orar para o Passado...

E assim, velhinha e triste, e eu triste e velho,
viveremos tremendo... mas rezando
a saudade sem fim desse Evangelho..."

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Carlos Guimarães
Rio de Janeiro/RJ, 1915 – 1997


ÚLTIMO SONETO


Este soneto — o último que faço —
põe um ponto final em nossa história,
que, hoje, termina de maneira inglória,
sem um beijo de adeus, sem um abraço.

Peço, apenas, que guardes na memória,
qual de nós teve culpa do fracasso;
quem primeiro deu mostras de cansaço,
reduzindo a farrapos nossa glória...

Pedes que eu parta e eu cedo. Indiferentes,
teus lindos olhos nem me seguirão...
Trilharemos caminhos diferentes,

porque temos Destinos desiguais:
— Tu vais feliz, em busca de ilusão,
e eu carregando um desengano a mais!

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Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

MANHÃ GLORIOSA


Cintila em ouro o sol pelos caminhos,
no esplendor da manhã que vem raiando;
ouve-se, além, o murmurar dos ninhos
e cruzam-se no espaço asas, noivando.

De em torno a um velho cocho, atropelando
inocentes e mansos cordeirinhos,
anda um poldro, a saltar. Passam riscando
o céu — flechas de neve — dois pombinhos.

E toda a terra que de luz se banha,
despe-se, enfim, das pérolas do orvalho,
para a luta da vida, intensa e estranha.

Obscuro e cruento o embate principia,
e tudo vibra à orquestra do trabalho,
na conquista do pão de cada dia...

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Cícero Acaiaba
Cambuquira/MG, 1925 – 2009, Varginha/MG

MINHA SOMBRA

Depois de te esperar inutilmente
na esquina desta rua abandonada,
eu volto mais sozinho e, lentamente,
marcam meus passos versos na calçada.

O coração, de súbito, se sente
liberto dessa angústia exasperada,
ao ver que minha sombra, obediente,
arrasta-se a meus pés, escravizada.

Ao menos, a que sempre me acompanha,
sombra fiel de tantas confidências,
mártir da mesma dor, do mesmo espinho,

ouve em silêncio minha voz estranha,
e vai beijando as longas reticências
das lágrimas que deixo no caminho.

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Cidoca da Silva Velho
São Luís do Paratinga/SP, 1920 – 2015, Jundiaí/SP

POENTE DA VIDA

É impossível voltar ao tempo antigo,
com tudo começando novamente!
Mesmo assim, quero ser o teu abrigo,
nesta fase da vida de sol poente!

Quantas horas perdemos, meu amigo,
na escalada dos tempos, tristemente!
E passou a ilusão que hoje eu bendigo,
por ver-te em minha estrada, frente a frente.

Foge do vento frio dos caminhos!
Escondido nos galhos farfalhantes,
vê quanto amor existe pelos ninhos.

Há de florir em versos palpitantes
o nosso amor, só feito de carinhos,
num turbilhão de rimas delirantes...


Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Eduardo Affonso (Chá de revelação)

Os amigos vão chegando. Alguns, avessos a modismos, não escondem o desconforto.

– Mas precisava mesmo fazer chá de revelação? Antigamente não tinha nada disso.

– Não tinha, tia Cotinha. Agora tem. Os tempos são outros.

Grupinhos se formam pelos cantos, sem ninguém se aproximar muito da mesa de comidas, em cujo centro há uma caixa envolta em celofane. Pelo protocolo – a coisa podia ser novidade, mas já tinha protocolo – comidas e bebidas só serão servidas depois do estouro do balão.

– E tem chá mesmo, ou é só modo de dizer?

– Só modo de dizer, tia. Não é porque é chá que tem chá. Igual chá de cadeira, chá de sumiço.

– Pelo menos uns biscoitinhos eles podiam adiantar, né?

Tia Cotinha estava de dieta, e não tinha interesse em revelação nenhuma. Só e tão somente em poder comer sem moderação, fosse o que fosse, enquanto as atenções estivessem voltadas para outra coisa.

– Sabe que cores vão usar?

– Não faço ideia. Pelo jeito, melhor não esperar nada convencional.

– Convencional é a última coisa que espero aqui.

– Só falta ser bege e dourado, e a gente que adivinhe o que cada cor quer dizer.

Alguém se aproxima da mesa dos salgados, pede silêncio, desembrulha a caixa, e dela salta um balão bege preso por uma fita dourada.

– Não falei que ia ter bege e dourado?

– Já pode pegar os salgadinhos?

– Não, tia, precisa estourar o balão primeiro.

Sobe a música. É “My way”, em ritmo cigano.

– E eu achando que o dourado era o pior que podia acontecer…

– Essa música é enorme e ainda repete. Tem mesmo que esperar até o fim pra pegar a comida?

Como se Deus ouvisse os apelos da tia Cotinha, a música é interrompida ainda na primeira parte, bem no “The record shows, I took the blows / But I did it my way” e uma voz anuncia:

– Dona Cotinha, sendo a senhora a tia favorita, queremos convidá-la a estourar o balão e…

Tia Cotinha não se faz se rogada. Com agilidade inusitada, toma a agulha das mãos do mestre de cerimônias, posiciona-se o mais perto possível dos pães de queijo, se inclina em direção ao balão, e puff! voam quadradinhos cor de chumbo por sobre a mesa de salgados.

Ecoam discretos aplausos e alguém aumenta de novo o som do celular – os Gipsy Kings agora na parte do “I ate it up and spit it out / I faced it all and I stood tall”.

Tia Cotinha se apossa da bandeja antes que outro parente mais afoito o faça.

– Papelzinho cinza significa o quê? – pergunta, com um pão de queijo pela metade, ao moço de terno preto que comanda o evento.

– Cremação. Se fosse enterro seriam papeizinhos roxos.

– Ah, tá.

A sobrinha, prima do morto, só percebe quando o segundo pão de queijo já foi devorado e o resto da travessa está bem embiocado no fundo da bolsa.

– Tia Cotinha!

– Vamos embora, Maria Alice. E no meu, por favor, contrata um bufê melhorzinho, que o pão de queijo tá borrachudo. E nada de cinza e roxo, pelamordideus! Quero púrpura e prata. Púrpura, tá entendendo, Maria Alice? Púrpura!

Fonte:
Blog do autor.
https://tianeysa.wordpress.com/2020/09/30/cha-de-revelacao/

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 25

 

Altino Afonso Costa (Macucos II)

Um dia resolvi visitar, após longos anos, a vila onde nasci.

Cheguei com o coração batendo forte, de saudade e emoção, ao lugar dos meus sonhos de infância.

Idealizei encontrar uma terra só minha, o meu Shangri-lá, onde pudesse de novo repousar os meus olhos cansados, numa paisagem imutável, que o tempo houvesse conservado egoisticamente só para o menino romântico de um passado distante.

E o que vi?

Destruição do lugar dos meus sonhos...

Ânsia incontida de revê-lo, como uma pintura que não envelhece e vejo apenas a moldura envelhecida daquilo que eu amava.

Macucos da minha infância, não consigo conter a minha emoção.

Sei muito bem que o tempo corrói e consome as coisas, e eu e tu somos essas coisas que o tempo consumiu.

Mas, por que temos que assistir ao ocaso da nossa existência com tanto realismo e com essa dor que nos maltrata tanto?

Valeu a pena termos uma infância feliz e agora uma velhice tão desconcertante?

Nunca nos veremos como fomos outrora, ruínas de nós mesmos, sonhos desmoronados como pedras caídas da muralha de uma cidadela edificada com tanto trabalho rude...

Minha vila querida que me viu sorrindo inocentemente, andando a esmo pelas tuas ruelas poeirentas, pela tua praça cercada de antigas paineiras, fica um pouco na fantasia de um sonho desfeito…

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro enviado por Dinair Leite.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVI


DESTRUIÇÃO


Ainda ontem se ouvia lá na serra
a juriti cantar saudosa e triste,
mas hoje devastada toda a terra
nenhuma juriti, sequer, existe...

Quem manda é o lucro que provém da guerra,
o mundo cambaleia e mal resiste
lutando pela vida que se emperra
numa ganância infame que persiste.

A Humanidade inteira está perdida,
a esperança acabou, está vencida,
pois cada dia surge um golpe novo.

E muitos que se dizem ser senhores,
não passam de ladrões e usurpadores
surrupiando o pão do nosso povo!
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DEUS

Contemplo a Natureza fascinante,
e vejo um Deus de Amor e de Brandura.
Um livro aberto, imenso, edificante,
com lições de Bondade e de Ternura.

Mesmo que a mágoa assalte o caminhante
e o prostre sobre o chão em desventura,
a Fé, que vem de dentro, é uma constante,
- um bálsamo na dor da criatura.

Creio num Ser Supremo, um Ser bendito,
num mundo de mistérios em que habito
e me faz refletir os sonhos meus...

Porque depois a vida continua
na evolução da Fé que se cultua
sob a regência do maestro, Deus.
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ELEITA

Nunca mais eu voltei àquela rua
onde ficava sempre à tua espera.
Por testemunha aquela mesma lua
que me inspirava versos de quimera.

E chegavas com uma voz só tua,
- doce ternura que eu jamais tivera.
Hoje meu coração que te cultua
nunca esqueceu aquela primavera.

Mas o tempo passou... Nossos destinos
seguiram por caminhos peregrinos,
nunca mais eu te vi nem tu me viste.

E se me visses hoje, certamente,
perceberias meu olhar ausente,
porque sem teu amor, fiquei mais triste
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ENGANO

Quando jovem pensei que a vida fosse
aquele mar de rosas e venturas,
por algum tempo, então, ela me trouxe
um paraíso cheio de aventuras.

A vida com sabor de um arroz-doce
feito à canela, leite e outras doçuras,
que imaginei pudesse ser um doce
embrulhado em papéis e sem misturas.

Mas o tempo passou como um covarde
matou meu sonho sem fazer alarde,
sem respeitar meu pobre coração.

E agora já no fim da caminhada,
uma verdade eu vejo escancarada;
- amar demais foi minha perdição.
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FALSA PROMESSA

"Nunca vou te esquecer". Ela me disse
e foi partindo triste e lentamente.
Um grande amor repleto de meiguice
não pode terminar assim pungente.

Partiu... Não sei se foi por criancice,
mas sei que dói no peito cruelmente,
e tudo não passou de uma tolice
levada a sério tão injustamente...

Quanto tempo passou... Percebo agora
que um pensamento apenas me apavora:
- não soubeste, na vida, o que é amar...

Pois vejo que a promessa que fizeste
foi somente a desculpa que me deste,
porque bem sei, jamais hás de voltar!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Irmãos Grimm (A salada mágica)

Era uma vez um jovem que saiu um dia a caçar. Sentia-se feliz e despreocupado e, enquanto caminhava, ia assobiando uma canção. Nisto, encontrou-se com uma velhinha, muito feia, que se dirigiu a ele:

- Bom dia, querido caçador! Vejo que estás alegre e satisfeito, enquanto eu sinto fome e sede. Dá-me uma esmola.

O caçador teve pena da velhinha, meteu a mão no bolso e deu o que lhe permitiam suas posses. Depois quis continuar seu caminho, mas a velha o deteve, dizendo-lhe:

- Ouve, meu caçador, o que tenho a dizer-te. possuis um coração generoso e por isso vou te dar uma recompensa. Segue adiante e chegarás a uma árvore onde estarão pousadas noves aves que seguram nas garras uma capa e brigam por sua posse. Aponta-lhes a espingarda e atira no bando, soltarão a capa, e uma das aves cairá morta. Apanha a capa e leva-a contigo, pois trata-se de uma veste mágica. Quando a puseres nos ombros é só pedir que te transporte ao lugar que desejares e no mesmo instante lá estarás. Retira, depois, o coração da ave morta e engole-o inteiro. Daí em diante, ao te levantares pela manhã, encontrarás, sempre, uma moeda de ouro embaixo do travesseiro.

O caçador agradeceu a velhinha, pensando com seus botões: "Belas coisas me prometeu, com a condição de que tudo seja verdade..."

Mas, depois de andar uns cem passos, ouviu gritos e pios de aves, tão fortes que o fizeram erguer a cabeça. Avistou um bando de pássaros que puxaram, com as garras e os bicos, uma capa e brigavam como se cada um estivesse disputando a sua posse.

- Estranho! - exclamou o caçador. - Parece que está acontecendo o que me disse a velhinha.

Tirou a espingarda dos ombros, fez pontaria e disparou a arma no meio do bando, fazendo com que penas voassem. imediatamente os pássaros fugiram, menos um, que caiu morto no chão, com ele despencando também, a capa. O caçador fez, então, como lhe dissera a velha, abriu o corpo da ave, procurou o coração e o engoliu inteiro, Depois apanhou a capa e voltou para casa.

Quando acordou na manhã seguinte, lembrou-se da promessa e quis certificar-se da verdade. Levantou o travesseiro e eis que ... ali estava, brilhando, a moeda de ouro. Desse dia em diante, todas as manhãs encontrava uma ao levantar-se. Juntou um montão de dinheiro, mas por fim, acabou pensando: "Que me adianta todo o meu ouro se fico em casa? Vou sair a correr mundo."

Despediu-se dos pais, apanhou a mochila de caçador, a sua espingarda e partiu.

Certo dia chegou a bosque espesso e, depois de o atravessar, avistou, na planície à sua frente, um grande castelo. Numa das suas janelas debruçava-se uma velha acompanhada de lindíssima jovem. Essa velha, que era bruxa, disse para a moça:

- Lá no bosque vem saindo um rapaz que traz consigo um tesouro maravilhoso. temos de nos apossar dele, filhinha querida. Nós o merecemos mais do que esse pateta. Um dia engoliu o coração de um pássaro encantando e, por isso, todas as manhãs encontra uma moeda de ouro embaixo do travesseiro.

A seguir, recomendou à moça o que esta devia fazer e, com um olhar ameaçador, avisou-lhe:

- Se não me obedeceres, vais arrepender-te.

Quando o caçador se aproximou e viu a jovem, pensou: "Já faz muito tempo que ando caminhando por aí. Agora vou entrar nesse belo palácio para descansar. Dinheiro, tenho que chegue." Mas o verdadeiro motivo desse resolução era o de se haver enamorado da moça.

Entrou no castelo e foi recebido amavelmente e atendido com toda a cortesia. Pouco depois, estava tão apaixonado pela moça que já não pensava mais noutra coisa e só tinha olhos para ela. Assim, de boa vontade ia fazendo tudo o que ela exigia.

A velha, então, disse:

- Agora temos de nos apossar do coração da ave. Ele não notará sua falta.

Começou a preparar uma bebida e, depois de pronta, encheu com ela um cálice, que deu à jovem para que o oferecesse ao caçador. Disse-lhe, a moça:

- Meu querido, bebe à minha saúde!

Ele pegou o cálice e, mal havia acabado de beber, o coração da ave lhe saltou da boca. A jovem o apanhou à escondida e depois o engoliu, pois a velha assim lhe ordenara. Daí por adiante o caçador não achou mais a moeda de ouro embaixo do travesseiro. Em vez de aparecer ali, surgia agora sob o travesseiro da moça, de onde a velha a recolhia todas as manhãs.

O rapaz, porém, estava tão apaixonado e cego que nada mais pensava senão em estar ao lado de sua querida.

Um dia a velha feiticeira disse:

- Agora que temos o coração do pássaro, devemos tirar-lhe, também, o manto mágico.

Respondeu-lhe a moça:

- Deixemos-o com ele, já basta ter perdido a sua fortuna.

Mas a velha retrucou, furiosa:

- Um manto desses é uma coisa maravilhosa e muito rara no mundo. eu quero e hei de obtê-lo.

Deu as instruções à filha, ameaçando-a  de que, se não lhe obedecesse, seria castigada. Diante disso, a moça resolveu cumprir a ordem e um dia pôs-se à janela, fingindo  olhar à distância, com um ar tristonho.

- Por que estás tão triste? - perguntou-lhe o caçador.

- Ora, meu bem, - respondeu ela - ali em frente está o Morro dos Rubis, onde há as mais belas pedras preciosas do mundo. Tenho tanta vontade de possuir alguma que fico triste só de pensar nelas. Mas...como chegar lá? Isto só podem as aves que sabem voar, uma pessoa jamais o conseguiria.

- Se é esse o motivo da tua tristeza, - disse o caçador - logo te alegrarei o coração.

Cobriu-a com sua capa e desejou ser transportado com a moça ao Morro dos Rubis. No mesmo instante ambos se encontraram no lugar desejado. Ali havia pedras preciosas por toda parte, refulgindo que dava gosto ver. Escolheram e juntaram o que havia de mais valioso e bonito. Acontece, porém, que a velha, usando de sua arte diabólica, fizera com que o caçador sentisse os olhos pesados de sono. Por isso ele disse à jovem:

- Sentemo-nos um pouco para descansar. Sinto-me tão fatigado que mal consigo estar de pé.

Os dois sentaram-se e ele, deitando a cabeça no colo da moça, adormeceu. Em seguida, ela tirou-lhe o manto dos ombros, colocou-o nos seus e, recolhendo as pedras preciosas, desejou-se de volta à sua casa.

Ao despertar, o caçador viu que sua amada o havia traído, deixando-o sozinho naquela montanha deserta. Aflito, exclamou: - Oh, quanta falsidade há neste mundo!

Durante  muito tempo ficou ali sentado, triste, cheio de preocupações e sem atinar com o que deveria fazer. A montanha pertencia a uns gigantes selvagens que ali viviam. Não demorou muito, viu três deles se aproximarem. Deitou-se no chão como se estivesse ferrado no sono. quando chegaram os gigantes, o primeiro tocou-o com o pé e disse:

- Que espécie de verme é esse?

Disse o segundo:

- Esmaga-o com teu pé.

O terceiro, porém, falou em tom de desprezo.

- Não vale a pena. Deixem-no viver. Aqui não poderá ficar e,  se subir até o cume, as nuvens o carregarão.

Dito isto, seguiram adiante. O caçador, no entanto prestara muita atenção às suas palavras e, assim que se haviam afastado, levantou-se e subiu até o topo da montanha. Depois de estar sentado ali um momento, veio uma nuvem, flutuando, que o apanhou e por alguns instantes o conduziu pelo céu afora. A seguir, baixou sobre uma horta, cercada de um muro. Ali foi ele depositado, suavemente, no meio de couves e outras verduras.

O caçador olhou em redor e falou para si mesmo:

- Se ao menos tivesse algo para comer. Estou faminto e assim não posso continuar andando. Não vejo uma triste maçã, pera ou outra fruta qualquer, só há hortaliças.

Finalmente lhe ocorreu uma ideia: "Em último caso"- pensou - "posso comer dessa alface, não é lá uma delícia, mas me fortificará um pouco".

Escolheu um pé e começou a comer as folhas tenras. Mal, porém, havia engolido uns bocados, sentiu uma sensação estranha, como se seu corpo estivesse se modificado. Cresceram-lhe quatro pernas, uma cabeça, grande duas orelhas compridas. Naquele momento viu, horrorizado, que se transformara num burro. Mas como, além disso, a fome continuasse a torturá-lo e a salada - agora de acordo com sua nova natureza - lhe apetecia, continuou comendo avidamente. Chegou, por fim, a uma outra espécie de alface e, nem bem a tinha provado, produziu nele nova transformação e ele voltou à sua forma humana anterior.

Deitou-se no chão e adormeceu, pois estava muito cansado depois daquelas transformações. Quando acordou, no dia seguinte, apanhou um pé da alface maligna e outro da boa, pensando: "Isto me ajudará a chegar até os meus e também a castigar a deslealdade."

Guardou as hortaliças, saltou o muro da horta e pôs-se a procurar o castelo de sua amada. Depois de alguns dias, finalmente o encontrou. Passou no rosto uma tinta que o deixou bem moreno e o modificou de modo que nem sua própria mãe o teria reconhecido. Feito isto, entrou no palácio e pediu pousada.

- Estou  tão cansado - disse - que não posso ir adiante.

Perguntou-lhe a bruxa:

- Quem é o senhor e que anda fazendo por aqui?

- Sou o mensageiro do rei, - respondeu ele - e fui incumbido de encontrar a alface mais saborosa que existe debaixo do sol. Tive a sorte de encontrá-la e a levo comigo, mas o sol é tão forte  que a deliciosa verdura está aponto de murchar e receio não chegar com ela em condições.

A velha, quando ouviu falar na preciosa salada, sentiu desejo de comê-la e disse:

- Meu bom homem, deixe-me provar essa alface maravilhosa.

- Por que não? -  respondeu ele. - Tenho dois pés . Posso dar-lhe um.

Abriu o saco e alcançou-lhe a que era maligna. A bruxa, que de nada suspeitava e já sentia água na boca, foi ela mesma, até à cozinha para prepará-la. Depois de pronta, não podendo esperar a hora de servir, apanhou umas folhas que meteu na boca. Mal, porém, as tinha engolido, perdeu sua figura humana e desceu para o pátio, em forma de burro. Nisto, entrou a criada da cozinha, viu a alface pronta para ser servida e quis levá-la à mesa. A caminho, porém, não resistiu ao antigo hábito de provar os pratos e comeu, também, umas folhas. Imediatamente o dom mágico da salada se fez notar e a moça se transformou, por sua vez, num burrinho que foi juntar-se à velha no pátio. O prato de salada caiu no chão.

Nesse meio tempo, o suposto mensageiro estava sentado junto à formosa jovem, a qual, vendo que ninguém aparecia com a salada e sentindo, igualmente, um desejo grande de prová-la, disse:

- Não sei o que há com essa alface.

O caçador pensou: "Na certa já fez seu efeito", e, voltando-se para a jovem:

- Vou até à cozinha informar-me.

Ao chegar embaixo viu os dois burrinhos andando pelo pátio e a salada no chão. "Muito bem", - disse para si mesmo - "essas duas já receberam sua parte". Apanhou o resto das folhas, colocou-as, de novo, no prato e as levou para a jovem.

- Eu mesmo sirvo esta deliciosa salada, - falou-lhe - para não teres de esperar mais tempo.

A moça comeu e logo após se viu privada, como as outras duas, da sua figura humana, indo passear no pátio em forma de burrico.

O caçador, depois de lavar o rosto para que as mulheres enfeitiçadas o pudessem reconhecer , desceu no pátio e lhes disse:

- Agora vocês terão o prêmio que merecem pela sua falsidade.

Prendeu as três a uma soga e as levou a um moinho, Ali chegado, bateu a uma das janelas e o moleiro apareceu para perguntar-lhe o que desejava.

- Tenho aqui três animais tão maus que não quero mais ficar com eles. Se quiser cuidar destes bichos e tratá-los como eu lhe disser, pagarei o que me pede.

- Por que não? - respondeu-lhe o homem - Mas como devo tratá-los?

Disse-lhe, então, o caçador, que o burro velho - que era a bruxa - desse uma vez de comer e três surras cada dia; ao do meio - a criada - três vezes de comer e uma surra e, ao mais novo - que era a moça - três vezes de comer e nenhuma surra, pois apesar de tudo, ele não tinha coragem de maltratá-la. Depois voltou ao castelo, onde encontrou tudo quanto necessitava.

Passados alguns dias, apresentou-se o moleiro para comunicar-lhe que o burro velho, que só tinha recebido surras e comida apenas uma vez, estava morto. " Os outros dois" - falou o homem - "ainda vivem e recebem sua comida três vezes por dia. Mas andam  tão tristes que decerto não vão durar muito".

Compadeceu-se o caçador e, sentindo que lhe passara a raiva, disse ao moleiro que os trouxesse de volta. Quando chegaram, deu-lhes de comer da alface boa e, no mesmo instante, recuperaram sua forma humana.

Aí, então, a bela jovem ajoelhou-se diante dele e implorou:

- Ah, meu amor, perdoa-me o mal que te fiz, obrigada por minha mãe. sempre agi contra minha vontade, pois eu te quero de todo coração. Teu manto mágico está pendurado no guarda-roupa e, quanto ao coração do pássaro, tomarei logo uma bebida que o fará saltar-me pela boca.

O rapaz porém, tinha mudado de opinião e lhe disse:

- Fica com ele, pois quero casar-me contigo e não importa qual de nós dois o possua.

Casaram-se e viveram felizes até a hora de sua morte.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Sammis Reachers (A terrível infante)

Era meu único filho, e sua morte aos doze anos despedaçou o que me restava de família, talvez de sanidade.

No enterro, me chamou a atenção uma menininha, a que jamais vira; não por sua presença, que talvez fosse amiga de escola de Mateus, mas por aparentar estar sozinha.

A tarde caía. Me distraí entre pêsames e rostos e a perdi de vista, logo de memória.

Ao fim do funeral, fiquei sozinho, e vaguei pelo cemitério, desolado, destruído, como um bêbado – embebedado pela dor e o nonsense de minha tragédia.

No meio de uma alameda de túmulos, sozinha, divisei a menina. Ela não me vira; estava sentada sobre uma lápide, olhos fitos no chão.

Me aproximei.

– Você está sozinha, e num cemitério? Onde está sua mãe?

Ela sorriu.

– Nunca tive uma mãe. Mas meu pai está por aí, me vigiando.

– Já está escurecendo. Você não tem medo da noite?

– Como temeria a noite, se sou sua emissária?

E, saltando da lápide, correu por entre seus mortos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLIV

 LONGE DE MIM EM MIM EXISTO
 
Longe de mim em mim existo
À parte de quem sou,
A sombra e o movimento em que consisto.
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MAIS TRISTE DO QUE O QUE ACONTECE
 
 Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu.
Meu coração, quem o entristece?
Quem o faz meu?

Na nuvem vem o que escurece
O grande campo sob o céu.
Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece!
Ai do que em mim me chamo eu!
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MARAVILHA-TE, MEMÓRIA!
 
Maravilha-te, memória!
Lembras o que nunca foi,
E a perda daquela história
Mais que uma perda me dói.

Meus contos de fadas meus -
Rasgaram-lhe a última folha...
Meus cansaços são ateus
Dos deuses da minha escolha...

Mas tu, memória, condizes
Com o que nunca existiu...
Torna-me aos dias felizes
E deixa chorar quem riu.
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MAS O HÓSPEDE INCONVIDADO
 
Mas o hóspede inconvidado
Que mora no meu destino,
Que não sei como é chegado,
Nem de que honras é dino.
Constrange meu ser de casa
A adaptações de disfarce.
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MENDIGO DO QUE NÃO CONHECE
 
Mendigo do que não conhece,
Meu ser na 'strada sem lugar
Entre estragos amanhece...
Caminha só sem procurar…
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MEU CORAÇÃO ESTEVE SEMPRE
 
Meu coração esteve sempre
Sozinho. Morri já...
Para que é preciso um nome?
Fui  eu a minha sepultura.
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MEU RUÍDO DE ALMA CALA
 
Meu ruído de alma cala.
E aperto a mão no peito,
Porque sob o efeito
Da arte que faz trejeito,
O que é de Cristo fala.

Cega, porca, lixo
Da vida que n'alma tem,
Esta criança vem.
Que Deus é que do além
Teve este mau capricho?
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MEUS DIAS PASSAM, MINHA FÉ TAMBÉM
 
Meus dias passam, minha fé também.
Já tive céus e estrelas em meu manto.
As grandes horas, se as viveu alguém,
Quando as viveu, perderam já o encanto.
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MINHA ALMA SABE-ME A ANTIGA
 
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.

Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu tosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis?
Escuta só meu coração.
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MINHA MULHER, A SOLIDÃO
 
Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é o coração
Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda-,
E fala só - leque animado.
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MÚSICA... QUE SEI EU DE MIM?
 
Música... Que sei eu de  mim?
Que sei eu  de haver ser ou estar?
Música... sei só que sem fim
Quero saber só de sonhar...

Música... Bem no que faz mal
À alma entregar-se a nada...
Mas quero ser animal
Da insuficiência enganada

Música... Se eu pudesse ter,
Não o que penso ou desejo,
Mas o que não pude haver
E que até nem em sonhos vejo,

Se também eu pudesse fruir
Entre as algemas de aqui estar!
Não faz mal.  Fluir,
Para que eu deixe de pensar!

Aparecido Raimundo de Souza (Como pássaro de vidro)

BENGALO DO CACHIMBO SALSICHÃO, o pai de Andorrinha do Cachimbo Salsichão (a moça que caiu da varanda do vigésimo andar do prédio de apartamentos onde morava) foi chamado para prestar esclarecimentos em face do trágico acontecido. Antes dele, esteve na chefatura a esposa, dona Peripécia do Cachimbo Salsichão, Furquilho do Cachimbo Salsichão, irmão da vítima, a senhorita Cáspita de Sá, empregada e Brocardo Amanciado, o namorado de Andorrinha. Tudo levava a crer, teria sido o Brocardo Amanciado o criminoso. Ele vivia brigando com a namorada e, comumente a agredia saindo nos tapas e safanões.

Da última vez em que partiram para as trocas de farpas, Brocardo Amanciado jurou, de pés juntos, que se a “Andorrinha não voltasse para ele, tomaria uma decisão trágica”. A conversa rolou entre Brocardo Amanciado e o irmão Furquilho do Cachimbo Salsichão. Ao delegado, Furquilho do Cachimbo Salsichão relatou, passo a passo, a prosa tida com seu futuro cunhado: “Eu mato a peste da sua irmã... — disse ele.

— Tem coragem? – Perguntei, incrédulo.

— Até de sobra. Se ela me deixar, faço a cadela ir visitar papai do céu mais cedo, completou, muito sério, e descontrolado.

— Não chame a minha irmã de cadela, alertei agarrando o maldito pela camisa.

— Desculpe. Não foi a minha intenção compará-la a uma cachorra. Coitado desses animais... se entendessem... após isso, virou as costas e saiu”.

Pelo sim, pelo não, Andorrinha do Cachimbo Salsichão teve um final desventurado e calamitoso. Partiu em mil pedaços a juventude de seus dezoito anos, deixando seus familiares à beira de um desespero imensurável, bem ainda de um precipício medonho e sem volta.

O delegado deixou para ouvir o pai da moça por derradeiro, levando em conta vários motivos. Ele odiava o Brocardo Amanciado. Coisa de santo. O seu imaculado, não batia com o do rapaz. Por seu turno, Brocardo tinha um ódio tremendo do sogro, tendo em vista que ele não o deixava pernoitar na casa da amada.

Praticamente dia sim, dia não, ambos entravam em conflito. Se fazia necessário a esposa, dona Peripécia do Cachimbo Salsichão largar seus afazeres domésticos e entrar em cena para acalmar os ânimos exaltados:

— Seu Bengalo — obtemperava Brocardo. Sou um rapaz direito. Não vou fazer nada de errado. Amo a sua filha e as minhas intenções, para com ela, são as melhores...

Ao que o sogro sempre batendo na mesma tecla, argumentava, seguro de si, sem claro, arredar pé e abrir a guarda:

— Já fui jovem igual a você, meu caro. Não fazia nada errado. Quando ia para a casa da minha namorada, hoje minha esposa Peripécia, meu sogro me obrigava a dormir na garagem. Tinha um sofá velho, caindo aos pedaços, cheio de formigas e era nele que eu passava as noites. Belo dia, me enchi de razão. Esperei o desgranhento se recolher e, quando o vi roncando, pulei da garagem para o quarto da minha doce amada...

Fez uma pausa, acendeu um cigarro, tirou algumas tragadas e continuou:

— Tal ato, desde então, passou a virar rotina...

— E a Andorrinha?

— Nasceu de uma inversão...

— Inversão?

— Sim.

— Como é lá isso?

— Certa noite, ao invés de eu pular para a cama da Peripécia, ela se adiantou e caiu de paraquedas dentro da garagem, passando a dormir comigo no bendito divã.

Brocardo interrompeu o sogro e mandou a pergunta que estava entalada:

— Mas espera lá, seu Bengalo. Tem algo na sua história que não consigo digerir. As idades, digo, o tempo entre o nascimento da Andorrinha e a vinda, ao mundo, do Furquilho... acho que o senhor...

O velho fuzilou o póstero genro com uma ferocidade monstruosa:

— Cala a boca, seu verme. Por favor, saia daqui.

— Mas...

— Sem mais, nem sem menos. Vamos, ordinário, desinfeta...

— Seu Bengalo, só fiz uma pergunta...

— Você não tem o direito de perguntar droga nenhuma, tampouco de achar o que acha que deve ser achado. Aqui quem tem que achar ou “desachar”, sou eu. Puxa o carro!

Dia seguinte, após as formalidades de praxe, o depoimento de Bengalo do Cachimbo Salsichão teve início:

— Então, seu Bengalo. Onde o senhor estava quando a sua filha se projetou do vigésimo andar?

— Na sala... vendo o jornal...

— O senhor estava sozinho?

— Não. O namorado da Andorrinha se fazia prostrado ao lado dela.

— Onde eles estavam, precisamente?

— Na varanda do meu apartamento...

— Na varanda de onde ela supostamente se projetou?

— Sim.

O delegado coçou a cabeça:

— O senhor acha que ela pulou, foi empurrada, ou pior, atirada?

— Não tenho como provar, mas eu, cá com meus botões, acho que o filho de uma égua do Brocardo a atirou.

— Eles estavam juntos na varanda? O senhor confirma?

— Sim. Com certeza.

— Continue...

—... Brocardo veio aos desmunhecos. Parecia uma libélula espavorida. Soluçando e chorando: “Seu Bengalo, pelo amor de Deus, a Andorrinha acabou de pular...”. Na hora, não atinei, e, meio que abestalhado, indaguei: “pulou de onde, para onde seu safado?”. O sujeito me olhou com cara de sonso e respondeu rispidamente: “Seu idiota, imbecil... ela se atirou aqui da sua varanda... faça alguma coisa....

O delegado antes de continuar pediu a um dos policiais que lhe trouxesse um café:

— O namorado dela, o Brocardo, pediu que o senhor fizesse alguma coisa. E que atitude o senhor tomou?

— O que qualquer pai faria. Me precipitei porta afora, ganhando as escadas saltando os degraus de três em três... minha esposa e a empregada entraram em desespero... os vizinhos apareceram do nada. O rato do Brocardo veio em meu encalço...

— E seu filho Furquilho?

— Jogando bola com os amigos num condomínio próximo ao nosso.

— Continue...

— Quando chegamos na área em que a minha filha certamente terminaria, como, de fato, encerrou com a sua desdita, me desesperei... literalmente me vi de joelhos, ao lado dela...

— Não entendi. Queira, por gentileza, ser mais claro e objetivo?

Na inocência que lhe amargurava o coração, o pai de Andorrinha agora chorando copiosamente, explicou:

— A minha ideia, seu delegado, não outra senão a de segurá-la no colo, para que não se despedaçasse no cimento do condomínio...

O delegado desferiu um forte e potente murro na mesa e se levantou abespinhado:

— Como é que é? O senhor está me tirando? Queria ampará-la no colo e evitar que se esborrachasse no chão? Foi o que ouvi?

— Sim, seu delegado. Isso mesmo. Quando topei com a minha pobre e querida filha, ali, morta, estirada, sem vida, toda coberta de sangue, da cabeça aos pés, me dei conta... meu Deus, doutor, me dei conta que a minha garotinha, ao saltar lá de cima, da varanda, ou ser jogada, sei lá, em seu curto trajeto, havia chegado primeiro...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Adega de Versos 87: Madalena Ferrante Pizzatto

 

Clarisse da Costa (É sobre aproveitar os momentos)

Que fim levou as rosas no dia dos namorados? Que fim levou o abraço sem razões para abraçar? Onde foram parar todas as cartas de amor?

Cadê aquela vontade de ficar e deixar um pingo de saudade? Os dias passam e fica uma incerteza.

A janela se espelha no chão com a luminosidade do sol. O passarinho pela manhã fica escondido entre as folhas do pé de hibisco. Na gaveta os livros amarelados trazem histórias interessantes que falam um pouco da vida, a vida com nuances e sensações.

Eu parei para ler o livro "Marley e Eu" e comecei a dar risadas. Um cotidiano pacato e divertido! Nem se percebe as horas passarem com este livro.

Mas para que pressa? Às vezes é necessário desacelerar a vida.

Como diz a canção "não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si". É sobre aproveitar cada momento, buscar novos sonhos e sonhar. Ver os passos da incerteza chegando em algum lugar por acreditar que é possível. É viver. Viver o nascer do sol. Viver o florescer das flores. Viver o aconchego de um afago. Viver todos os momentos da vida.

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Silmar Böhrer (Croniquinha) 58

Reinos? O que são reinos?

A palavra reino surgiu do latim "regnum", designando um território onde os habitantes estão sujeitos a um rei. Como costuma acontecer com muitas palavras, esta também se multiplicou, criou asas e saiu pelo mundo dando sentido a corpos da natureza, a seres e entes - reino dos céus, reino animal, reino da poesia, reino vegetal.

Quando nascemos estamos iniciando nosso reinado. Crescemos e vamos em busca de ambições, reinos de possibilidades, conquistas. E se não somos reis de grandes domínios, alargamos algumas fronteiras, abrimos leques, fincamos raízes em espaços conquistados.

Sejam férteis, e sejam amplos, e sejam fartos de felícias nossos reinados - o reino das ideias e dos pensares é parte do conjunto da nossa obra. E se reinamos com bom-senso, prudência e alguma sabedoria, parece que temos chance de um dia desfrutar das delícias do reino dos céus.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 71 e 72


DIÁLOGO FILOSÓFICO


— As coisas não são o que são, mas também não são o que não são — disse o professor suíço ao estudante brasileiro.

— Então, que são as coisas? — inquiriu o estudante.

— As coisas simplesmente não.

— Sem verbo?

— Claro que sem verbo. O verbo não é coisa.

— E que quer dizer coisas não?

— Quer dizer o não das coisas, se você for suficientemente atilado para percebê-lo.

— Então as coisas não têm um sim?

— O sim das coisas é o não. E o não é sem coisa. Portanto, coisa e não são a mesma coisa, ou o mesmo não.

O professor tirou do bolso uma não barra de chocolate e comeu um pedacinho, sem oferecer outro ao aluno, porque o chocolate era não.
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DIÁLOGO FINAL

— É tudo que tem a me dizer? — perguntou ele.

— É. — respondeu ela.

— Você disse tão pouco.

— Disse o que tinha para dizer.

— Sempre se pode dizer mais alguma coisa.

— Que coisa?

— Sei lá. Alguma coisa.

— Você queria que eu repetisse?

— Não. Queria outra coisa.

— Que coisa é outra coisa?

— Não sei. Você que devia saber.

— Por que eu devia saber o que você não sabe?

— Qualquer pessoa sabe mais alguma coisa que outro não sabe.

— Eu só sei o que eu sei.

— Então não vai mesmo me dizer mais nada?

— Mais nada.

— Se você quisesse…

— Quisesse o quê?

— Dizer o que você não tem para me dizer. Dizer o que não sabe, o que eu queria ouvir de você. Em amor é o que há de mais importante: o que a gente não sabe.

— Mas tudo acabou entre nós.

— Pois isso é o mais importante de tudo: o que acabou. Você não me diz mais nada sobre o que acabou? Seria uma forma de continuarmos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.