segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Engazopadeira)


A SÔNIA PASSA A MÃO no telefone celular e liga para a amiga. Assim que ela atende, fala. Aliás, não fala, grita:
—  Vânia, minha boa amiga, ufa! Até que enfim a sorte me sorriu. Estou ligando pela trigésima vez. Graças a Deus consegui te encontrar.
— O que você manda, Sônia?
— Quero comprar um tênis novo. O meu furou. Você pode tirar um na sua conta?

Silêncio momentâneo:
— Vânia, Vânia, por tudo quanto é sagrado. Você está aí?
— Claro, claro. Estou. Tem que ser hoje? — Indaga a amiga sabendo, todavia, qual a resposta que ouviria:
— Agora, quero dizer, se você puder, amiga.
— Tudo bem. Daqui duas horas, pode ser?
— Duas horas, Vânia?
— Tenho visitas em casa. Meus sogros chegaram de Santa Catarina. Dentro de duas horas, acredito, estarei liberada. 

Sônia não desiste e persevera com insistência. Berra, a voz descomedida: 
— Caraca, amiga. Duas horas? 
— Sim, duas horas ou mais. Preciso acomodá-los, preparar o almoço...
— Sendo assim, o que se há de fazer? O jeito é esperar. Você me pega aqui em casa, de carro?
— Não dá para a gente se encontrar lá na porta do shopping ou você vir até aqui?

O silêncio, desta vez, parte do lado de quem implora socorro:
— Sônia, ainda está aí? Sônia, Sônia... alô...
Sônia reaparece. Chora:
— Estou mal de bolso, Vânia. De bolso e de bolsa. Só tenho comigo os vales transportes para ir e voltar amanhã para o trabalho. Sabe como é. Final de mês. Ainda não recebi...
— Tudo bem. Passo por aí. Fique pronta.
— Você não se chateia de eu estar sempre te torrando a paciência?
— Chateação é doença.

Para quebrar e aliviar o pedido chato feito à sua salvadora, Sônia cessa o choro ensaiado e põe fim ao teatrinho mentiroso. Imediatamente volta e ataca. Pergunta:
— E o Marcos, como está?
— Viajando...
— Que homem de sorte. Para onde, desta vez?
— Salvador. Foi participar de um Congresso sobre medicina nuclear.
— Nuclear?
— É.

A Sônia, além de pegajosa, tem o perverso dom de querer ser engraçada, sem ser, logicamente. Força a barra:
— Por acaso ele vai consultar seres extraterrestres recém-chegados do espaço?
Risos:
— Não, Sônia. Medicina nuclear é outra coisa...
— Mas o Marcos não é cardiologista?
— Sim. Cardiologista com especialização em cintilografia de perfusão miocárdica.

— E onde entra esse negócio de nuclear?
— Medicina nuclear, Sônia, é aquela medicina que envolve o uso de material radioativo (isótopo ou radioisótopo ou rádio fármaco) para diagnosticar e tratar certas doenças. São usadas quantidades muito pequenas de materiais radioativos (inofensivos para a saúde em quantidades escassas), mas que permitem seja feitas “fotos” da área do corpo que seu médico deseja examinar.

— Fotos?
— Isso mesmo, Sônia. Essas imagens fornecem informações sobre as funções dos órgãos e sistemas do nosso organismo. Enquanto a radiologia faz imagem da estrutura (da forma), a medicina nuclear faz uma imagem prévia da acomodação e da maneira como esta pode estar alterada em determinada doença. Muitas vezes, essas técnicas se completam, tornando mais exato o diagnóstico.
— Nossa, vejo que você está por dentro!

— Esqueceu que sou casada com um médico vinte e quatro horas por dia?
— Garota de sorte! Tudo bem. Voltando ao nosso compromisso, espero você aqui na portaria do prédio dentro de duas horas. Pelo leite que mamou na sua mãe, não vá me deixar plantada.
— Fique tranquila.

Vânia, em vista do trânsito moroso, passa alguns minutos do horário combinado. Quando chega, a espevitada da Sônia se faz à espera, impaciente, mãos na cintura. Parece uma fera enjaulada. Foram numa das lojas do shopping, no centro e, lá, a amiga passou o cartão para trinta dias, direto, sem juros. As coisas acalmaram aí.

Menos de vinte dias depois, Vânia recebe outros telefonemas de Sônia, todos com a mesma insistência e petulância que marcavam a sua conduta. O negócio era atender ou a outra não daria trégua:
— Oi, amiga, tudo bem? Sou eu de novo!...
— Não me diga, amiga Sônia, que está com o dinheiro do tênis que lhe comprei e quer adiantar o pagamento?
— Não, ainda está longe...
— Mas fale. Sou inteira ouvidos.

De novo, em cena a mesma historinha: 
— Vânia, será que você me faria um grande favor? Aliás, um “grandississíssimo” favor?
— Se estiver ao meu alcance...
— Sabe o que é minha linda? Eu tenho um casamento, no sábado, para ir com o Waldir. Sou a madrinha. Estou pelada, amiga. Peladérrima. Da cabeça aos pés. Não sei o que é uma calcinha nova faz bom tempo. Meu guarda-roupa anda mixuruca.  Meio nada por inteiro, essa é a verdade. Você tiraria um Risco de Giz preto no seu cartão?

Vânia não pode deixar de cair na gargalhada:
— Risco de Giz?
— Exato. É um terninho riscado. Tem esse nome.
— Mas você nem pagou o tênis que lhe comprei! Não vai ficar meio apertado para seu lado?
— De jeito nenhum. Olhe, não se preocupe. Um dia antes do vencimento, eu deposito o dinheiro na sua conta... ou mando um Pix ou PicPay. Em última alternativa, você passa aqui na portaria do meu apê e eu lhe entrego pessoalmente, sem problemas. Você sabe que não deixo furos. Ainda mais com você, que tanto tem me quebrado os galhos.

Vânia, como sempre, alma pura, prestativa, coração aberto, se deixa ser levada:
— Amigas são para essas coisas. Me liga amanhã?
— Não, não, tem que ser hoje. O Waldir... bem, o Waldir já falou com o pai e o pai dele, meu sogro, deu o terno de presente. Temos um jantar...  e ele queria... ele queria que eu fosse com o terninho. Então, eu...
— Está bem. Venha aqui em casa.
Silêncio constrangedor momentâneo:

— Desculpe, Vânia. Estou desprevenida, como da derradeira vez...
— Está bem. Pego você às oito horas em ponto.
— Não dá para ser agora? Eu...
— Sônia, o Marcos vai chegar dentro de dez minutos com uns amigos, para jantar. Estou ocupadíssima. Não podia nem estar falando contigo... estou dando uma força à Lídia, minha empregada...
— Desculpe. Puxa! Só contava com você. Vou tentar dar meus pulos...
— Tá legal, amiga. Às oito horas em ponto.

Sônia, radiante, dá vivas e urras de alegria:
— OK, Vânia. Estarei na portaria...

O tênis vence e nem sinal da Sônia. O terninho Risco de Giz, idem. Sequer, um telefonema. Vânia nos dias seguintes, liga reiteradas vezes para a amiga. Nada. Igualmente para o marido dela, o Waldir. Qual o quê! Ambos simplesmente mudaram os números de seus telefones celulares e pior, de endereço. Conclusão: escafederam sem deixar pistas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

O Conto

Fonte: Pinterest

A origem
 
O conto é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho), ainda que contenha os mesmos componentes do romance. Entre suas principais características, estão a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total – da qual falava Poe (1809-1849) e Tchekov (1860-1904): o conto precisa causar um efeito singular no leitor; muita excitação e emotividade. Podemos imaginar – precariamente, diga-se – várias fases do conto. Tais fases nada têm a ver com aquelas estudadas por Vladimir Propp no livro A morfologia do conto maravilhoso, no qual, para descrever o conto, Propp o desmonta e o classifica em unidades estruturais – constantes, variantes, sistemas, fontes, funções, assuntos etc. Além disso, ele fala de uma primeira fase (religiosa) e uma segunda fase (da história do conto). Aqui, quando falamos em fases, temos a intenção de apenas darmos um passeio pela linha evolutiva do gênero.

Logicamente a primeira fase é a oral, a qual não é possível precisar o seu início: o conto se origina num tempo em que nem sequer existia a escrita; as histórias eram narradas oralmente ao redor das fogueiras das habitações dos povos primitivos – geralmente à noite. Por isso o suspense, o fantástico, que o caracterizou originalmente.

A primeira fase escrita é provavelmente aquela em que os egípcios registraram O livro do mágico (cerca de 4000 a.C.). Daí vamos passando pela Bíblia – veja-se como a história de Caim e Abel (2000 a.C.) tem a precisa estrutura de um conto. O velho e novo testamento trazem muitas outras histórias com a estrutura do conto, como os episódios de José e seus irmãos, de Sansão, de Ruth, de Suzana, de Judith, Salomé; as parábolas: o bom samaritano, o filho pródigo, a figueira estéril, a do semeador, entre outras.

No século VI a.C. temos a Ilíada e a Odisseia, de Homero e na literatura Hindu há o Pantchatantra (século II a.C?). De um modo geral, Luciano de Samosata (125-192), é considerado o primeiro grande nome da história do conto. Ele escreveu O cínico, O asno etc. Da mesmo época é Lucio Apuleyo (125-180), que escreveu O asno de ouro. Outro nome importante é o de Caio Petrônio (século I), autor de Satiricon, livro que continua sendo reeditado até hoje. As mil e uma noites aparecem na Pérsia no século X da era cristã.

A segunda fase escrita começa por volta do século XIV, quando registram-se as primeiras preocupações estéticas. Giovanni Boccaccio (1313-1375) aparece com seu Decameron, que se tornou um clássico e lançou as bases do conto tal como o conhecemos hoje, além de ter influenciado gente como Shakespeare, Molière, Hans Sachs, Lope de Vega, Chaucer, Perrault, La Fontaine, entre outros. Miguel de Cervantes (1547-1616) escreve as Novelas exemplares. Francisco Gómez de Quevedo y Villegas (1580-1645) traz "Os sonhos", satirizando a sociedade da época. Os Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer (1340?-1400) são publicados por volta de 1700. Charles Perrault (1628-1703) publica O barba azul, O gato de botas, Cinderela, O soldadinho de chumbo etc. Jean de La Fontaine (1621-1695) é o contador de fábulas por excelência: A cigarra e a formiga, A tartaruga e a lebre, A raposa e as uvas etc.

No século XVIII o mestre foi Voltaire (1694-1778). Ele escreveu obras importantes como Zadig e Cândido.

Chegando ao século XIX o conto “decola” através da imprensa escrita, toma força e se moderniza. Washington Irving (1783-1859) é o primeiro contista norte-americano de importância. Os irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863 e Wilhelm, 1786-1859) publicam Branca de Neve, Rapunzel, O Gato de Botas, A Bela Adormecida, O Pequeno Polegar, Chapeuzinho Vermelho etc. Os Grimm recontam contos que já haviam sido contados por Perrault, por exemplo. Eles foram tão importantes para o gênero que André Jolles diz que “o conto só adotou verdadeiramente o sentido de forma literária determinada, no momento em que os irmãos Grimm deram a uma coletânea de narrativas o título de Contos para crianças e famílias”, (“O conto” in Formas simples).

O século XIX foi pródigo em mestres: Nathaniel Hawthorne (1804-1864), Poe, Maupassant (1850-1893), Flaubert (1821-1880), Tchecov, Machado de Assis (1839-1908), Conan Doyle (1859-1930), Balzac, Stendhal, Eça de Queirós, Aluízio Azevedo. Não podemos esquecer de nomes como: Hoffman (um dos pais do conto fantástico, que viria influenciar Poe, Machado de Assis, Álvaro de Azevedo e outros), Sade, Adalbert von Chamisso, Nerval, Gogol, Dickens, Turguenev, Stevenson, Kipling, entre outros e outros e outros.

Preconceitos

Mesmo com tanta história para contar, o conto continua sendo alvo de preconceitos, chegando ao ponto de algumas editoras terem como política não publicar o gênero. É uma questão de mercado? O conto não vende? E, se não vende, quais os motivos? Sua excessiva banalização através de revistas e jornais? Ou a falsa ideia de que seria uma literatura fácil, secundária, menor?

Veja o que pensa Mempo Giardinelli: “Sustento sempre que o conto é o gênero literário mais moderno e que maior vitalidade possui, pela simples razão que as pessoas jamais deixarão de contar o que se passa, nem de interessar-se pelo que lhes contam bem contado". “Comecei escrevendo contos, mas me vi forçado a mudar de rumo por pedidos de editores que queriam romances. Mas, cada vez que me vejo livre dessas pressões editoriais, volto ao conto... porque, em literatura, o que me deixa realmente satisfeito é escrever um conto” (René Avilés Fabila em Assim se escreve um conto).

Maupassant dizia que escrever contos era mais difícil do que escrever romances. Ele escreveu cerca de 300 contos e, segundo se diz, ficou rico com eles. Machado de Assis também não achava fácil escrever contos: “É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade”, (citado por Nádia Battella Gotlib em Teoria do Conto). Faulkner (1897-1962) pensava da mesma maneira: “...quando seriamente explorada, a história curta é a mais difícil e a mais disciplinada forma de escrever prosa... Num romance, pode o escritor ser mais descuidado e deixar escórias e superfluidades, que seriam descartáveis. Mas num conto... quase todas as palavras devem estar em seus lugares exatos”, (citado por R. Magalhães Júnior em A arte do conto).

Numa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (de 4 de fevereiro de 1996, página 5-11), Moacyr Scliar (1937), mais conhecido como romancista do que como contista, revela sua preferência pelo conto: “Eu valorizo mais o conto como forma literária. Em termos de criação, o conto exige muito mais do que o romance... Eu me lembro de vários romances em que pulei pedaços, trechos muito chatos. Já o conto não tem meio termo, ou é bom ou é ruim. É um desafio fantástico. As limitações do conto estão associadas ao fato de ser um gênero curto, que as pessoas ligam a uma idéia de facilidade; é por isso que todo escritor começa contista”.

“Penso que, não por casualidade, a nossa época (anos 80) é a época do conto, do romance breve”, diz Italo Calvino (1923-1985) em Por que ler os clássicos. Num artigo sobre Borges (1899-1986), Calvino disse que lendo Borges veio-lhe muitas vezes a tentação de formular uma poética do escrever breve, louvando suas vantagens em relação ao escrever longo. “A última grande invenção de um gênero literário a que assistimos foi levada a efeito por um mestre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos 40 anos, passar da prosa ensaística à prosa narrativa.” (Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio).

“No decurso de uma vida devotada principalmente aos livros, tenho lido poucos romances e, na maioria dos casos, apenas o senso do dever me deu forças para abrir caminho até a última página. Ao mesmo tempo, sempre fui um leitor e releitor de contos... A impressão de que grandes romances como Dom Quixote e Huckleberry Finn são virtualmente amorfos, serviu para reforçar meu gosto pela forma do conto, cujos elementos indispensáveis são economia e um começo, meio e fim claramente determinados. Como escritor, todavia, pensei durante anos que o conto estava acima de meus poderes e foi só depois de uma longa e indireta série de tímidas experiências narrativas que tomei assento para escrever estórias propriamente ditas.” (Jorge Luis Borges, Elogio da sombra/Perfis - Um ensaio autobiográfico).

Espaço/Tempo

Está evidente a identificação do conto com a falta de tempo dos habitantes dos grandes centros urbanos, com a industrialização. Afinal, foi graças à imprensa escrita, que o gênero se popularizou no Brasil, no século XIX: os grandes jornais sempre davam espaço ao conto. Antônio Hohlfeldt em Conto brasileiro contemporâneo, diz que “pode-se verificar que, na evolução do conto, há uma relação entre a revolução tecnológica e a técnica do conto”.

Na introdução de Maravilhas do conto universal, Edgard Cavalheiro diz: “A autonomia do conto, seu êxito social, o experimentalismo exercido sobre ele, deram ao gênero grande realce na literatura, destaque esse favorecido pela facilidade de circulação em diferentes órgãos da imprensa periódica. Creio que o sucesso do conto nos últimos tempos (anos 60 e 70) deve ser atribuído, em parte, à expansão da imprensa”.

Além de criar o mercado de consumo e a necessidade de alfabetização em massa, a industrialização também criou a necessidade de informações sintéticas. No século passado essas informações vinham do jornalismo e do livro; neste século vêm do cinema, rádio e televisão. Assim, no seu início, o conto pegou uma carona na imprensa escrita; agora não tem mais esse espaço. Será que o conto se adaptará às novas tecnologias? TV, Internet etc?

De qualquer forma, no Brasil, o conto surgiu mesmo foi através da imprensa em meados do século XIX. Por isso, naquela época, quase todos os contistas eram jornalistas. E não foi só no Brasil que isso ocorreu.

Essa tecnologia é, também, em parte, culpada pelo preconceito em relação ao gênero. “A linha normativa gera uma série de manuais que prescrevem como escrever contos. E a revista popular propícia uma comercialização gradativa do gênero. Tais fatos são tidos como responsáveis pela degradação técnica e pela formação de estereótipos de contos que, na era industrializada do capitalismo americano, passa a ser arte padronizada, impessoal, uniformizada, de produção veloz e barata. Tais preocupações provocam, por sua vez, um movimento de diferenciação entre o conto comercial e o conto literário. Daí talvez tenha surgido o preconceito contra o conto...” (Nádia Battella Gotlib, op. cit.).

Esse fenômeno também foi notado no Brasil no início dos anos 70. As influências exercidas pela imprensa escrita, revistas, TVs, levaram o conto a um ponto de praticamente perder sua “identidade”: sendo “quase tudo”, passou a ser quase “nada”.

Na década de 20 temos os modernistas e o conto agora é essencialmente urbano/suburbano. Eles propuseram a renovação das formas, a ruptura com a linguagem tradicional, a renovação dos meios de expressão etc. Procura-se evitar rebuscamentos na linguagem, a narrativa é mais objetiva, a frase torna-se mais curta e a comunicação mais breve.

Nesta mesma linha, Poe, que também foi o primeiro teórico do gênero, diz: “Temos necessidade de uma literatura curta, concentrada, penetrante, concisa, ao invés de extensa, verbosa, pormenorizada... É um sinal dos tempos... A indicação de uma época na qual o homem é forçado a escolher o curto, o condensado, o resumido, em lugar do volumoso”, (citado por Edgard Cavalheiro na introdução de Maravilhas do conto universal).

Tamanho é documento?

Um dos pontos em que muita gente concorda diz respeito ao tamanho do conto: não deve ser muito longo – pois transformar-se-ia numa novela; nem tão curto – porque corre-se o risco de transformá-lo em anedota. Poe falava de tamanho em termos de tempo de leitura. Para ele o conto ideal ocuparia o leitor entre 30 minutos e duas horas. Que se pudesse, enfim, ler de uma assentada só.

Segundo outras definições, o conto não deve ocupar mais de 7.500 palavras. Atualmente entende-se que pode variar entre um mínimo de 1.000 e um máximo de 20.000 palavras.
 
O romance Vidas secas, Graciliano Ramos (1892-1953), A festa, Ivan Ângelo e alguns romances de Bernardo Guimarães (1825-1884) e Autran Dourado, podem ser lidos como uma série de contos. Também Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Machado de Assis, O Processo, Kafka, são constituídos por pequenos contos. São os chamados romances desmontáveis.

Assis Brasil vai mais longe ao afirmar que Grande Sertão: veredas, Guimarães Rosa (1908-1967), é um conto alongado, pois o escritor tê-lo-ia como narrativa curta. O Grande Sertão, como sabemos, tem mais de 500 páginas. Todas essas colocações demonstram como é difícil definir o conto; mesmo assim, quem o conhece, não o confunde com outro gênero.

Neste século podemos incluir entre os grandes: O. Henry, Anatole France, Virgínia Woolf, Katherine Mansfield, Kafka, James Joyce, William Faulkner, Ernest Hemingway, Máximo Gorki, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Aníbal Machado, Alcântara Machado, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Osman Lins, Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Lima Barreto.

Outros nomes importantes do conto no Brasil: Julieta Godoy Ladeira, Otto Lara Resende, Manoel Lobato, Sérgio Sant’Anna, Moreira Campos, Ricardo Ramos, Edilberto Coutinho, Breno Accioly, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Péricles Prade, Guido Wilmar Sassi, Samuel Rawet, Domingos Pellegrini Jr, José J. Veiga, Luiz Vilela, Nelson Rodrigues, Sergio Faraco, Victor Giudice, Lygia Fagundes Telles, entre outros. Em Portugal destaca-se, entre outros, Eça de Queirós.

Para um escritor que faz da sua escrita, arte, a trama/o enredo não têm muita importância; o que mais importa é como (forma) contar e não o que (conteúdo) contar. Borges dizia que contamos sempre a mesma fábula. Julio Cortázar (1914-1984) diz que não há temas bons nem temas ruins; há somente um tratamento bom ou ruim para determinado tema. (“Alguns aspectos do conto”, in Valise de cronópio). Claro que há que ter cuidado com o excesso de formalismos para não virar personagem daquela piada: um escritor passou a vida toda trabalhando as formas para criar um estilo perfeito para impressionar o mundo; quando conseguiu alcançá-lo, descobriu que não tinha nada para dizer com ele.

Conteúdo e forma

Forma: expressão ou linguagem; mais os elementos concretos e estruturados, como as palavras e as frases.

Conteúdo: é imaterial (fixado e carregado pela forma); são as personagens, suas ações, a história (ver Céu, inferno, Alfredo Bosi).

Há contos de Machado de Assis, de Katherine Mansfield (1888-1923), de José J. Veiga (1915), de Tchecov, de Clarice Lispector, por exemplo, que não são contáveis, não há nada acontecendo. O essencial está no ar, na atmosfera, na forma de narrar, no estilo. No livro Que é a literatura?, Jean-Paul Sartre (1905-1980) diz que “ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa”.

Do que precisa o conto?
Tensão, ritmo, o imprevisto dentro dos parâmetros previstos, unidade, compactação, concisão, conflito, início meio e fim; o passado e o futuro têm significado menor. O flashback pode acontecer, mas só se absolutamente necessário, mesmo assim da forma mais curta possível.

Final enigmático

O final enigmático prevaleceu até Maupassant (fim do século XIX) e era muito importante, pois trazia o desenlace surpreendente (o fechamento com “chave de ouro”, como se dizia). Hoje em dia tem pouca importância; alguns críticos e escritores acham-no perfeitamente dispensável, sinônimo de anacronismo. Mesmo assim não há como negar que o final no conto é sempre mais carregado de tensão do que no romance ou na novela e que um bom final é fundamental no gênero. “Eu diria que o que opera no conto desde o começo é a noção de fim. Tudo chama, tudo convoca a um final” (Antonio Skármeta, Assim se escreve um conto).

Neste gênero, como afirmou Tchecov, é melhor não dizer o suficiente do que dizer demais. Para não dizer demais é melhor, então, sugerir, como se tivesse de haver um certo silêncio entremeando o texto, sustentando a intriga, mantendo a tensão. Não é o que acontece no conto

“A missa do galo”, de Machado de Assis? Especialmente nos diálogos; não exatamente pelo que estes dizem, mas pelo que deixam de dizer.

Ricardo Piglia, comentando alguns contos de Hemingway (1898-1961), diz que o mais importante nunca se conta: “O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta”, (O laboratório do escritor). Piglia diz que conta uma história como se tivesse contando outra. Como se o escritor estivesse narrando uma história visível, disfarçando, escondendo uma história secreta. “Narrar é como jogar pôquer: todo segredo consiste em fingir que se mente quando se está dizendo a verdade.” (Prisão perpétua). É como se o contista pegasse na mão do leitor é desse a entender que o levaria para um lugar, mas, no fim, leva-o para outro. Talvez por isso, D.H. Lawrence tenha dito que o leitor deve confiar no conto, não no contista. O contista é o terrorista que se finge de diplomata, como diz Alfredo Bosi sobre Machado de Assis (op. cit.).

Segundo Cristina Perí-Rossi, o escritor contemporâneo de contos não narra somente pelo prazer de encadear fatos de uma maneira mais ou menos casual, senão para revelar o que há por trás deles (citada por Mempo Giardinelli, op. cit). Desse ponto de vista a surpresa se produz quando, no fim, a história secreta vem à superfície. No conto a trama é linear, objetiva, pois o conto, ao começar, já está quase no fim e é preciso que o leitor “veja” claramente os acontecimentos. Se no romance o espaço/tempo é móvel, no conto a linearidade é a sua forma narrativa por excelência.

“A intriga completa consiste na passagem de um equilíbrio a outro. A narrativa ideal, a meu ver, começa por uma situação estável que será perturbada por alguma força, resultando num desequilíbrio. Aí entra em ação outra força, inversa, restabelecendo o equilíbrio; sendo este equilíbrio parecido com o primeiro, mas nunca idêntico.” (Gom Jabbar em Hardcore, baseado em Tzvetan Todorov).

Em outras palavras: no geral o conto “se apresenta” com uma ordem. O conflito traz uma desordem e a solução desse conflito (favorável ou não) faz retornar à ordem – agora com ganhos e perdas, portanto essa ordem difere da primeira. “O conto é um problema e uma solução”, diz Enrique Aderson Imbert.

Diálogos (discurso das personagens)

Os diálogos são de suma importância; sem eles não há discórdia, conflito, fundamentais ao gênero. A melhor forma de se informar é através dos diálogos; mesmo no conto em que o ingrediente narrativo seja importante. “A função do diálogo é expor.” (Henry James, 1843-1916). Em alguns escritores o diálogo é uma ferramenta absolutamente indispensável. Caio Porfírio Carneiro, por exemplo, chega ao ponto de escrever contos compostos apenas por diálogos, sem que, em nenhum instante, apareça um narrador. Em 172 páginas de Trapiá, um clássico da década de 60, há apenas seis páginas sem diálogos. Vejamos os tipos de diálogos:

1) – Direto: (discurso direto) as personagens conversam entre si; usam-se os travessões. Além de ser o mais conhecido é, também, predominante no conto.

2) – Indireto: (discurso indireto) quando o escritor resume a fala da personagem em forma narrativa, sem destacá-la. Vamos dizer que a personagem conta como aconteceu o diálogo, quase que reproduzindo-o. Essas duas primeiras formas podem ser observadas no conto "A Missa do Galo", Machado de Assis.

3) – Indireto livre (discurso indireto livre) é a fusão entre autor e personagem (primeira e terceira pessoa narrativa); o narrador narra, mas no meio da narrativa surgem diálogos indiretos da personagem como que complementando o que disse o narrador. Veja-se o caso de Vidas secas: em certas passagens não sabemos exatamente quem fala – é o narrador (terceira pessoa) ou a consciência de Fabiano (primeira pessoa)? Este tipo de discurso permite expor os pensamentos da personagem sem que o narrador perca seu poder de mediador.

4) – Monólogo interior (ou fluxo de consciência) é o que se passa “dentro” do mundo psíquico da personagem; “falando” consigo mesma; veja algumas passagens de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. O livro A canção dos loureiros (1887), de Édouard Dujardin é o precursor moderno deste tipo de discurso da personagem. O Lazarillo de Tormes, de autor desconhecido, é considerado o verdadeiro precursor deste tipo de discurso. Em Ulisses, Joyce (inspirado em Dujardin) radicalizou no monólogo interior.

Focos narrativos (ou pontos de vista adotados pelo narrador)

1) – Primeira Pessoa: Personagem principal conta sua história
Este narrador limita-se ao saber de si próprio, fala de sua própria vivência. Esta é uma narrativa típica do romance epistolar (século XVIII).

“...Isso aconteceu comigo, implantei todos os dentes da minha boca, um prodígio de engenharia odontológica. Estou cheio de dentes que não caem e nem ficam cariados, mas quando dou uma gargalhada na frente do espelho sinto saudade da minha boca antiga, agora meus lábios se abrem de um modo que eu não gosto.” (“Artes e ofícios”, Rubem Fonseca in O buraco na parede).

2) – Primeira Pessoa: Personagem secundária conta a história da personagem principal

“Evidentemente, a convivência com Holmes não era difícil. Tinha hábitos tranquilos e regulares. Era raro vê-lo em pé depois das dez horas da noite e invariavelmente já preparara seu pequeno almoço e saíra quando eu me levantava da cama.” (“Reimpressão das memórias do Dr. John H. Watson ex-oficial médico do Exército britânico”, Arthur Conan Doyle in Os melhores casos de Sherlock Holmes).

Nas histórias de Sherlock Holmes é Watson quem narra os acontecimentos. Umberto Eco também utiliza dessa artimanha em O nome da rosa.

3) – Terceira Pessoa: Escritor (analítico ou onisciente), conta a história 
O narrador tudo sabe sobre a vida das personagens, sobre seus destinos, ideias, pensamentos. Como se narrasse de dentro da cabeça delas. Narrativa típica do romance Clássico (século XIX).

“Ah, somente agora ele via, mas estava completamente atônito, e se sentiu constrangido. Viu também que isso fez com que ela sentisse pena dele, como se a ilusão tivesse sido um erro. Levou algum tempo, todavia, para sentir que não fora um erro, por mais que tivesse sido uma surpresa. Depois daquele pequeno choque, o fato de ela saber, ao contrário, e ainda que fosse estranho, começou a lhe parecer agradável. Era a única outra pessoa no mundo a saber, e ela soubera durante todos aqueles anos, enquanto, para ele, se apagara inexplicavelmente a lembrança de lhe haver transmitido o seu segredo.” (A fera na selva, Henry James).

4) – Terceira pessoa: Escritor conta a história como observador 
O narrador limita-se a descrever o que está acontecendo, “falando” do exterior, não nos colocando dentro da cabeça da personagem; assim não sabemos suas emoções, ideias, pensamentos. O narrador apenas descreve o que vê, no mais, especula. Narrativa típica do século XX, influenciada pelo cinema.

“Olhou através da janela. O vento e a paisagem. E o cata-vento, reflexos de espelho, além. Sentou-se, suspirou, deitou os olhos nos pés doridos e metidos nas botas empoeiradas da grande caminhada. O corredor abria-se lá para dentro. Via a ponta da mesa na sala de jantar. E as árvores frondosas, as mesmas, no quintal. Andou um pouco, paredes cobertas de retratos...” (“A ceia”, Caio Porfírio Carneiro in Os dedos e os dados).

Nos casos 1 e 2, o narrador funciona como personagem da história. Nos casos 3 e 4, ele se coloca fora dos acontecimentos, como observador.

Afinal, o que é o conto?

(A pergunta sem resposta ou com várias respostas)

Conto é a designação que damos à forma narrativa de menor extensão e que se diferencia do romance e da novela não só pelo seu tamanho, mas também por possuir características estruturais próprias. Ele possui os mesmos componentes do romance, mas evita análises, complicações do enredo e o tempo e o espaço são muito bem delimitados. O conto é uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia das personagens nem nas motivações de suas ações. O conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente predominante e um só personagem principal, contém um só assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão.

"Conselhos" para se escrever um bom conto

1) – Prender o interesse do leitor; evitar ser chato. Pense em Aristóteles, para quem a catarse, enquanto experiência vivida pelo espectador ou ouvinte, é condição fundamental para definir a qualidade de uma obra.

2) – Usar, se possível, frases curtas. A clareza vem do cuidado com a estruturação da frase: as intercalações excessivas prejudicam a compreensão da idéia. Pense em Barthes: “A narrativa é uma grande frase, como toda a frase constitutiva é, de certa forma, o esboço de uma pequena narrativa", (Introdução à análise da narrativa).

3) – Capítulos e parágrafos curtos, para o leitor poder respirar. Evitar muitas personagens, descrições longas, rebuscamentos, adjetivações, clichês, repetir palavras.

4) – Trama/enredo/tema ou estilo, original. Pense em Ricardo Piglia: “Pode-se programar a trama, os personagens, as situações, conhecer o desenlace e o começo, mas o tom em que se vai contar a história é obra de inspiração. Nisso consiste o talento de um narrador”, (O laboratório do escritor).

5) – Se possível usar ironia, humor, graça e ser verossímil. Ser verossímil é importante, mas não devemos confundir verossimilhança com verdade; a história não tem de ser obrigatoriamente verdadeira, mas parecer que o é. Mesmo assim sua importância é discutível. Segundo Álvaro Lins, Graciliano Ramos tem como “defeito” justamente a inverossimilhança que, de acordo com o crítico, é mais “visível” em Vidas secas e São Bernardo, dois clássicos insuspeitos. No Vidas secas esse “defeito” estaria no discurso das personagens (discurso indireto livre), pois tal recurso teria provocado um excesso de introspecção das personagens, tão rústicas e primárias (até Baleia, a cadela do romance, tem seu “monólogo interior”). No São Bernardo o “problema” estaria no fato de um homem rústico, como Paulo Honório, construir uma narrativa tão perfeita em termos literários. Conta-se que uma vez Matisse mostrou a uma senhora um quadro em que havia pintado uma mulher nua; sua visitante retrucou: “Mas uma mulher nua não é assim”. E Matisse: “Não é uma mulher, minha senhora, é uma pintura”. Será que na sua análise em busca do perfeito, Álvaro Lins (que tinha Graciliano em alta conta) não teria percebido que Paulo Honório não é um homem, mas uma pintura?

6) – Ler, de preferência os clássicos. Não se é escritor sem ser leitor. Pense em Sartre: “Mas a operação de escrever implica a de ler... e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito”. (op. cit.) Pense também em Faulkner: ler, ler, ler, ler, ler... Em Escritores em ação, Georges de Simenon (1903-1989) dá a “fórmula” para se escrever uma boa prosa: “Corte tudo que for literário demais; adjetivos e advérbios e todas as palavras que estão lá só para causar efeito. Escrever é cortar. Escrever não é uma profissão, mas uma vocação para a infelicidade”. Estes conselhos são tão válidos quanto inválidos: “A maioria das regras e conselhos estão errados... nenhum contista novo deve dar a menor atenção aos princípios que os outros adotam. Pois que estes, ao deitarem tais regras, querem antes de tudo proteger a si próprios. É melhor mandá-los todos para o inferno”, (R. Magalhães Júnior, citando Pizarro Drumond, op. cit.).

Fonte: pt.wikipedia.com

domingo, 29 de janeiro de 2023

Isabel Furini (Poema 39): Conjugação Verbal

 
Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.


Cecy Barbosa Campos (Clara Luz)


Ao olhar para ela, não se podia dizer se era feia ou bonita. Não era alta nem baixa, nem gorda nem magra. Era algo indefinível. Entretanto, examinando-a com atenção, podia-se perceber um certo charme, alguma elegância em seu porte altivo, no modo de andar.

Embaixo dos andrajos que vestia, delineava-se um corpo bem feito e no rosto, emoldurado por cabelos desgrenhados, destacavam-se belos olhos verdes.

Estava sempre suja e não poderia ser de outra forma. Todas as manhãs, bem cedinho, antes do caminhão de lixo passar, lá estava ela, examinando os pacotes que haviam sido colocados nas calçadas das casas e as grandes latas de lixo apinhadas de detritos, vidros, pedaços de plástico e objetos velhos e desprezados, que ficavam em frente aos edifícios de luxuosos apartamentos.

Não gostava de falar. Quando se tentava puxar uma conversa, recebia-se em troca um leve balançar de cabeça ou um olhar indiferente.

A minha curiosidade a respeito dela se aguçava. Não parecia uma pessoa comum. Havia um certo quê de distinção, de orgulho, no seu silêncio insistente. Notei que, vez por outra, um homem a acompanhava — quieto, sem vontade, diferente dela. Parecia totalmente entregue às vicissitudes da vida, não demonstrando a decisão da mulher que sempre o precedia.

Enterrando as mãos, corajosamente, nas imundícies dos latões, ela selecionava as variedades encontradas e dava ordens ao homem, em tom baixo, orientando-o para a precária embalagem dos produtos tirados do lixo. Eu não ouvia o que dizia, mas conseguia entender o que estava acontecendo mediante curiosa observação.

Ela nunca falava alto e, mesmo com o seu companheiro, limitava as palavras. Sua contenção não era só em relação a mim e ao homem que a seguia submisso, mas também, em relação ao mundo que a cercava e que ela parecia ignorar.

Um dia, não me contive e perguntei o seu nome. Não me respondeu. Passado algum tempo, quando o homem estava a alguma distância dela, arrisquei-me, perguntando a ele e recebi a surpreendente resposta; Clara Luz.

Como era estranho! Uma mulher vivendo naquela situação, ter aquele nome — um nome que transmitia a ideia de importância, de brilho, de sucesso. Lembrava uma estrela, sugeria uma pessoa iluminada.

Quanta esperança deve ter depositado a mãe de Clara Luz no bebê que nascia. Quanto enlevo, quanta fé no futuro, ao escolher esse nome para a filha...

Ao passar minha primeira reação de surpresa, percebi que, afinal, aquele nome não era inadequado. Não condizia com a vida que Clara Luz levava aqui na Terra, mas estava de acordo com a altivez que ela demonstrava, com sua posição de guia, com o seu desligamento do mundo.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 7


Duvidar de quem se adora
não é decerto viver,
vida assim tão desgraçada
é pior do que morrer.
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Se eu soubesse com certeza
que tu me querias bem,
eu te faria um carinho
que nunca te fez ninguém.
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As ondas brincam de amores,
correm à terra beijar...
Sê tu a terra, querida,
e deixa qu'eu seja o mar.
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Lá dentro desse teu peito
eu desejava morar,
não estorvando a quem mora,
dizei-me se tem lugar.
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Oh bela, porque me matas,
mas a vida me estás dando ?
Se tens de ser meu amor,
não andes vira-virando.
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Eu desejava saber
qual é a tua intenção,
com que fim, com que sentido,
pediste meu coração...
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Manjericão rajadinho,
rajadinho pelo pé,
o meu coração é teu,
0 seu não sei de quem é.
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Você diz que me quer bem,
eu também quero a você,
onde há fogo há fumaça,
quem quer bem logo se vê.
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Dizes que bem me queres,
que meu é teu coração;
Malmequeres que desfolho
dizem-me todos que não…
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Você diz que me quer bem,
que me traz dentro do peito,
Isso não, não acredito,
quem quer bem tem outro jeito.
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Estrela do céu brilhante,
raio de sol encarnado,
se tens amores com outro,
não me tragas enganado.
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Marília, se não me amas,
não me digas a verdade,
finge amor, tem compaixão,
mente, ingrata, por piedade.
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Se queres de mim que te ame,
como sempre já te amei,
bota fora do sentido
certa gentinha que eu sei…
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Papagaio come milho,
periquito leva a fama...
Vai fazer teu fingimento
com aquele que te ama.
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0 meu amor mais o teu
pesei na mesma balança,
o meu pesou direitinho,
só no teu achei mudança.
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A pitanga é fruta doce,
mais doce é jaboticaba;
Quem toma amores contigo,
começa, mas não acaba.
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Coração vai visitar
o mimo da formosura,
pergunta, quero saber,
se nosso amor ainda dura.
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0 marmelo é boa fruta,
enquanto não apodrece;
Assim são amores novos
enquanto não se aborrece.
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Fui à fonte ver Maria,
encontrei com Isabel.
Isto mesmo é qu'eu queria,
caiu-me a sopa no mel.
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0 vento que veio hoje
levou palha e deixou trigo.
Eu quero-te perguntar
se essa carranca é comigo.
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Menina, você que tem
que comigo se enfadou,
será porque seu escravo
a seus pés não se curvou?
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Abram-se as portas do céu,
quero ir ver meu benzinho
qu'ele  fugiu-me dos braços,
foi-se valer dos anjinhos.
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Não sei se vá ou se fique,
não sei se fique ou se vá,
quem ama não se decide
nem por aqui nem por lá.
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Eu era o que te dizia,
tu eras que duvidavas,
que no fim do nosso amor
tu eras, que me deixavas.
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Maria, não me desprezes
por eu ser pobre e não ter;
Pode o rico desprezar-te,
e o pobre te bem querer.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919. 
Disponível no Portal de Domínio Público

Amadeu de Carvalho Júnior (Estudar, brincar ou comer?)


A escola Felicidade, como o próprio nome diz, era muito feliz. Os alunos amavam aquela escola, por isso a respeitavam (seu ambiente, seus professores) e se dedicavam aos estudos. Era muito bonita e cheia de flores. Tinha um jardim que era o lugar predileto dos alunos, onde eles ficavam no recreio: havia um balanço, borboletas, uma grande árvore no centro, e uma passarinha muito bonitinha chamada pelos alunos de Rosaninha, nome da professora predileta deles.

Essa escola distribuía uma cesta com comida por semana que continha: um pão com mortadela, um com presunto e mussarela, um com carne moída, um com margarina e manteiga, um com requeijão e um pão puro (sem nada, sem recheio), um pacote de salgadinho, 2 latas de refrigerante, 3 copos de suco, de sobremesa = 1 pedaço de bolo, 2 pedaços de pudim, 1 pedaço de torta, 1 pedaço de gelatina e 3 frutas. Dá para entender (também) porque os alunos gostavam tanto dessa escola.

Certo dia, uma sexta-feira, naquela escola tão calma e pacífica, houve um episódio entre os seus alunos de 4ª série...

No fim da aula da professora Iracema, bate o sinal para o recreio, ela os segura por mais um tempo e diz:

- Estudem o dia todo e todo dia! Não fiquem brincando, é perda de tempo! Aproveitem o recreio para estudar, durmam pouco, não sejam preguiçosos, comam pouco não demorem no almoço ou no jantar, estudem em vez de ficar assistindo televisão ou em vez de conversar com alguém, não visitem ninguém, nem saiam de casa, não fiquem na rua, não vão a nenhuma loja nem nada, estudem, estudem e estudem!

Os alunos vão para o recreio. Alberto, Amélia Cyz e Laura vão para o jardim e outros alunos para o pátio. Lá Alberto passa o recreio todo concentrado estudando com cadernos e lendo livros, não desgrudava seus olhos dos livros. Amélia Cyz passou o recreio inteiro brincando, ficou um tempinho brincando com Rosaninha e depois ficou correndo ou brincando no balanço, não parou, estava muito elétrica e agitada.

Alberto e Amélia Cyz até esqueceram-se de comer, na verdade, pouco ligavam para isso (comida). Já Laura tinha acabado com sua cesta na segunda-feira mesmo (comeu tudo no dia que recebeu!), na terça-feira ela pediu para Alberto a sua cesta e ele deu, ela comeu na terça-feira e na quarta-feira  na quinta-feira pegou sem pedir a maior parte da cesta da distraída Amélia Cyz, só deixou duas ou três coisinhas que ela comeu no dia seguinte, na sexta-feira, o dia atual, sem Amélia Cyz ver novamente, pois Amélia só queria saber de brincar e deixou a cesta largada.

Como Laura era muito faminta e comilona e só havia sobrado pouco na cesta de Amélia Cyz, ela comeu na hora e ainda permaneceu com fome. Foi pedir mais uma cesta parava merendeira Catarina que a repreendeu severamente:

– Laura, a cesta já tem o suficiente para uma semana. Você come demais, vai fazer mal para a sua saúde, e para você mesma, vai ficar gorda e obesa! Não vou dar mais não, é injusto com os outros, pode faltar para eles!

Laura sai tristonha e pensa: Imagine se ela soubesse que eu comi ainda da cesta dos meus colegas!

Laura volta ao jardim.

Logo depois, chegam: o professor Bernardo, de educação física, a inspetora e merendeira gordona (Neli), e a professora de Ciências, Iracema, a mais rígida e severa de todo o colégio (aquela, com que os alunos da 4ª série incluindo Alberto, Cyz e Laura, tiveram aula anteriormente, antes do recreio). Bernardo diz:

– Parabéns, Amélia! Brincar, além de ser uma atividade de lazer e entretenimento muito boa para a infância e para crianças como você, é muito saudável, pois exercita bem o corpo, fortalece, desenvolve suas partes, e queima calorias, emagrece.

 Já Iracema diz:

 - Que nada! Quem merece os parabéns é Alberto! Estudar desenvolve a lógica, o raciocínio e a mente. É só estudando que se pode ser alguém na vida! Olha como ele é dedicado e esforçado!

 Neli discorda:

 – Vocês estão doidos?! Laura que está certa, no recreio tem é que comer, só comer e mais nada, é proibido fazer outra coisa! Além de que comer é bom, é gostoso, e deixa a pessoa bem forte!

Bernardo exclama:

- Você fala isso porque é gorda! É um erro achar que comida é sinônimo de saúde como muitos pensam. Eu fiz faculdade na área nessa área, sei do que falo!

Iracema retruca:

– Estudar exercita o cérebro, que também faz parte do corpo!

E começa uma discussão sem fim. Graças a Deus, bate o sinal e cada um vai para sua classe.

Mas Alberto, Amélia Cyz e Laura ficaram pensando nisso tudo e se fizeram a pergunta: "O que é mais importante: estudar, brincar ou comer?" E fizeram uma aposta: na segunda-feira como iriam ter a 1ª aula com sua professora mais simpática, mais doce e inteligente, a predileta da escola, a Professora Rosana, eles iriam trazer R$ 5,00 cada um e perguntar para ela qual das três coisas era a mais importante. Alberto apostou em estudar, Amélia Cyz em brincar, e Laura em comer, quem ganhasse ficaria com os seus próprios 5 reais e com 10 reais dos outros dois colegas, ao todo 15 reais.

Tiveram as duas aulas posteriores ao recreio e depois foram embora para casa.

Em casa cada um segue sua rotina normal, no final de semana...

... Alberto estuda sem parar, mal chega da escola já vai lendo livros, jornais e revistas como Veja e Galileu, sua mãe fica irritada por ele chegar e ficar lendo, o manda almoçar, ele mal come, já se enfia no caderno, no meio dos livros, fazendo lições e tarefas de casa, trabalhos e estudando para a prova, etc. De noite, passa em claro fazendo trabalho de geografia até a madrugada, amanhece, dorme muito pouco...

... Amélia Cyz brinca o dia inteiro, joga videogame, fica no computador, e joga vários jogos. Pratica esportes como vôlei, vai à casa de colegas, sai na rua brincar com os amigos e não para em casa, muito falante...

... Laura almoça pra valer mesmo depois dos lanches da escola, come muita sobremesa, sorvete, doces, chupa balas, fica mascando chicletes, e outras guloseimas e porcarias, toma café da tarde, depois come um pouquinho disso mais um tanto daquilo, belisca de lá e belisca de cá, não tem jeito, ficou beliscando o dia todo, depois janta, e ceia, e em seguida, já na cama, leva um prato e fica comendo, depois que dorme, acorda de noite com fome e come muito sanduíche...

Finalmente chega a tão esperada e aguardada segunda-feira, ansiosos vão fazer a pergunta para sua professora:

- Professora, o que é mais importante: estudar, brincar ou comer?

– Tudo é importante igualmente. Todas essas coisas são boas e necessárias. O que acontece é que cada coisa tem a sua hora: tem a hora de estudar, o momento de brincar e o tempo de comer. Se todos gostassem de uma coisa só iria ser muito chato, e coitada da outra opção! Assim também temos que estudar, brincar e comer, fazer as três coisas, mas cada uma em seu momento devido e na hora certa.

Assim, nessa segunda-feira, os alunos da Felicidade aprenderam uma grande lição com a sabedoria inspirada e inspiradora da professora Rosana: "Todas as coisas são importantes em seu tempo correto e preciso".

Fonte:
Espaço Literário Sorocult. www.sorocult.com
acesso em 09.01.2016

III Concurso de Trovas Batista Soares – Fortaleza/CE (Prazo: 30 de abril)


A trova deve ser inédita e o tema constar na trova.

Âmbitos e temas:

NACIONAL/INTERNACIONAL:

Uma trova por tema

Novo Trovador: Emoção (L/F)
(Registrar Novo Trovador abaixo da trova);

Veteranos: Regresso (L/F)

Veteranos: Trovador (L/F)
[Em alusão ao centenário de nascimento do Trovador da UBT-Fortaleza Fernando Câncio, in memoriam.]

ESTADUAL (somente Ceará)

Duas trovas por tema

Liberdade (L/F)

Trovador (L/F)
[Em alusão ao centenário de nascimento do Trovador da UBT-Fortaleza Fernando Câncio, in memoriam.]

OBSERVAÇÕES:

Nacional/Internacional: Trovadores residentes nas Unidades da Federação e em outros países. Exclusive para os trovadores do Ceará.

Estadual:  residentes no Ceará.

Novo Trovador:  Considera-se novo trovador aquele que ainda não obteve classificação em 03 concursos de Trovas em âmbito nacional entre os cinco (5) primeiros colocados, de acordo com nova decisão da UBT Nacional.

envio por e-mail: ubt.mpe@gmail.com
para a fiel depositária – Larissa Lopes Filgueiras
nome e endereço completo do autor – Município e Estado.
Se estudante indicar também o nome da escola, série/turma.

As trovas devem ser enviados no corpo do e-mail. Não enviar anexos.

PRAZO: Até 30 de abril de 2023 às 23h59.

CLASSIFICAÇÕES: Serão classificados 20 trabalhos por tema. 5 Vencedores [1º ao 5º] / 5 menções honrosas [6º ao 10º], 5 menções especiais [11º ao 15º], 5 Destaques [16º ao 20º]

PRÊMIOS: Diploma para cada um dos vinte classificados no tema. Os resultados devem ser anunciados em maio, em data a ser confirmada. Todos os diplomas serão enviados por e-mail.

A simples remessa e participação no concurso autoriza automaticamente a publicação e divulgação dos trabalhos não eliminados pelas comissões julgadora e apuradora, em livros, jornais rádios, internet, redes sociais, informativos das Academias, nas escolas/faculdades, com indicação do autor. Os trabalhos não serão devolvidos.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Parque de Diversão) - I


Uma das coisas que mais divertiram as crianças de minha geração foram os parques que esporadicamente baixavam em nossa cidade.

Os cavalinhos, os barcos, os automóveis em constantes trombadas, a roda gigante... tudo fazia parte de um mundo feliz e encantado de folia e recreação.

Havia também as barraquinhas onde o pessoal se exercitava no tiro ao alvo, ou tentava abiscoitar uma prenda nos sorteios de bilhetes numerados.

O “Parque Mila” foi o que mais marcou a minha lembrança.. Mila era provavelmente filha dos donos, já que o parque levava o seu nome. Era uma garota linda, de uns quatorze anos e de cabelos loiros em cachos compridos. Vestia-se com roupas vistosas e brilhantes, bordadas de pedrarias que lhe ressaltavam a beleza delicada. Eu, simples garotinha de oito anos, admirava-a intensamente.

Uma noite em que fui ao parque com mamãe e Linéa, vi Mila bem de perto, distribuindo prêmios aos sorteados. Arrisquei quinhentos réis num bilhetinho, e qual não foi a minha surpresa quando a ouvi cantar o meu número no sorteio! Que emoção receber o prêmio das mãos daquela menina que me parecia saída de um conto de fadas!

Mas... confesso que fiquei um tanto embaraçada quando ela me entregou a prenda: uma imagem de Santa Terezinha, muito linda, com o famoso ramalhete de rosas nas mãos.

Não sendo católica, eu estava ali sem saber o que fazer com a santinha. Mamãe percebeu o meu constrangimento e fez-me uma sugestão que aceitei imediatamente. Pedi a Mila (lindíssima nessa noite, trajando um vestido de cetim preto, todo enfeitado de missangas reluzentes) que me trocasse a imagem por outra   prenda. Ela sorriu para mim e fez um, gesto largo, pondo à minha disposição as fileiras em que os objetos estavam expostos.

Escolhi uma estatueta bonitinha: um pequeno pescador, garotinho de calças curtas, chapéu, e pés descalços, com uma vara na mão e um peixinho enroscado no anzol Adorei o prêmio e já em casa, na maior euforia, fui mostrá-lo a papai.

Coloquei a estatueta ao lado da entrada do quarto dele e de mamãe, sobre uma coluna dórica, de madeira, que possuo até hoje. O lugar era de destaque, e o pequeno pescador ali ficou por muito tempo, até que um dia, para grande tristeza minha, papai escorregou no tapete, e ao bater na coluna, provocou involuntariamente o acidente: a estatueta caiu e espatifou-se no chão. Catei os cacos, mas não consegui colá-los  estavam muito estilhaçados. O jeito era me conformar.

Um dia, anos depois, mamãe chamou-me a atenção para uma manchete no jornal que estava lendo. Olhei o título: “O triste fim do Parque Mila.” A notícia dizia que, em uma das cidades que percorria,   o parque se incendiara devido a um defeito no sistema de iluminação. Ficara inteiramente destruído.

Eu não queria acreditar. O parque mais lindo de minha infância gravara em minha memória uma imagem indelével que não poderia mudar: os carrosséis e a roda gigante girando, as barraquinhas movimentadas, o mar de luzes deslumbrantes, e a linda e graciosa Mila sorrindo para as pessoas e entregando-lhes prendas com as próprias mãos, como se fosse uma fada distribuindo privilégios a seus favorecidos, num reino venturoso de perene alegria, encantamento e diversão.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult (www.sorocult.com)

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 8


ROSA DE SANGUE


Dom sublime, a Poesia furta ao solo
as almas simples que Deus prestigia.
E transforma um pigmeu num louro Apolo,
glorificado à luz que não pedia!

Poesia é mãe que o filho abraça e ao colo
recolhe a dor que o peito lhe crucia.
Terno traço de união de polo a polo,
é sol na treva... é luar, em pleno dia!

Poesia é amar a própria angústia! É erguer
a taça da amargura e, sem morrer,
sorve-la, gota a gota, em noite incalma!

É estigma? É carisma? Glória ou cruz?
Poesia é estranha rosa, que seduz:
- Rosa de Sangue... com perfume de Alma!
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NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
depressa ia ampara-lo o meu carinho
e ansiosa eu via, com secreto gozo,
meus sonhos desafiando o torvelinho!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
um a um, impiedoso, o mar levou!
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ADVERTÊNCIA
Aliança trincada...

Entre dois corações que, um dia, a vida
uniu e a Lei de Deus abençoou,
numa aliança eterna, irrefletida,
mágoa e desilusão é o que restou!

Junto à primeira lágrima sentida,
muito cedo, a ilusão se dissipou,
a lamentar a dor de ser colhida,
qual flor de sombra, à luz do sol, murchou!

Descrevo o nosso amor. E que amargura
relembrado na mágoa de um momento!
Se acaso uma esperança ainda perdura,

salvemo-la da insídia e dos espinhos,
ou ficarão dois seres, num tormento,
unidos por dever... porém sozinhos!
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PROFECIA
Elo partido...

Muitas vezes te disse - tens lembrança?:
– Muda! por nossos filhos! - E, também,
que a renúncia constante anula, cansa,
quando improfícua... e só de um lado vem.

Lembrei-te (quantas vezes!] é a confiança
base que o templo conjugal sustém.
E estremecia a última esperança
de envelhecermos juntos... mal ou bem!

Cumpriu-se a profecia! O eco ressoa!
Cai o arruinado templo! Embora doa,
nossos elos partiram-se! Defuntos,

os sonhos se perderam no caminho!
Tanta mentira e ausência de carinho,
que ao fim da estrada, não chegamos juntos!
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VERDADE

Todos pensavam que a felicidade
era a bandeira azul que eu conduzia...
Todos pensavam, sim, mas a Verdade,
além mim, somente Deus sabia,

Ninguém sonhava a triste realidade
que em meio à multidão me perseguia;
nem que o sorriso meigo de humildade
era regado em pranto, noite e dia!

Quem poderia crer que a tais extremos
eu chegasse, partindo os frágeis remos
de um destino cruel! Ninguém supunha

que um oceano de lama, tormentoso,
eu banisse de mim... e, em céu calmoso,
fosse viver os sonhos que eu compunha!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Geraldo Pereira (Tragam as Vasilhas)


Sou do tempo dos encantadores pregões, de antigos vendedores que ofereciam seus produtos com a musicalidade da voz, grave ou aguda, a depender de cada um. De poetas do dia-a-dia das coisas, cantores das ruas, com rima ou sem rima, contanto que mostrassem a variedade ou a qualidade e obtivessem o desejado retorno das moradias de classe média. De meninos ou de meninas, das senhoras bem trajadas ou daquelas de roupas cosidas e até cozidas com a crueza da chita, que nas casas serviam como domésticas, tangidas dos canaviais distantes.

Como esquecer do que me falou Sílvio Costa, que pras bandas de Pau Amarelo corteja saudades: “Espanador/Vasculhador/Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha/Eu tenho quartinha”. Foram coisas assim, mais do que puras, que preencheram tardes mornas de sábado. Ou foram os acordes tirados da gaita do amolador de tesouras, que a tudo amolava ou as notas do homem do pirulito que embalaram sonhos e devaneios da meninada de outros anos ou de outras eras.

Detesto essa modernidade do hoje, do microfone instalado em velhas e carcomidas "Kombis" anunciando ovos e verduras, uvas e bananas, laranjas aos borbotões e abacaxis em quantidade. Até o sorvete de fato artesanal no meu antes vem sendo comercializado assim: "Olha o sorveteiro barateiro! Dez bolas por um Real! Tragam as vasilhas! Tragam as Vasilhas!". Ninguém aguenta mais a repetição, que lembra um certo apresentador de televisão dizendo: "Abram as cortinas! Abram as cortinas!". E se vou mudar de casa, deixando de assistir neste canto para morar num recanto, o Rosarinho, lugar de onde emergem muitas das reflexões de Fátima Quintas - o Quintas da Jaqueira -, não me livrarei do sorveteiro barateiro.

Dia desses por lá ouvi a indiscreta loa e mais do que perplexo confidenciei aos meus botões: "Eu não acredito numa coisa dessas!". Mas, é verdade, responderam! Lamento o desaparecimento de toadas como esta: "Eu tenho lã de barriguda/ Para travesseiro/...". Ou : “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém/...”

O cavaquinho de agora vende-se aos pacotes, enrolados no plástico translúcido, sem a sonoridade do velho triângulo, equilátero, sobretudo, que pendia do indicador esquerdo, tocado, na mais sincrônica das formas, com vareta bem temperada de aço acalmado à mão direita, a percorrer cada um dos lados, tirando as notas dos desejos infantis. E o cuscuz matinal, despertando as famílias com o silvo forte do vendedor, em tudo, madrugador? Desapareceu, quase, deste Recife contemporâneo, desses dias que correm mais que aqueles, de criança!

Um ou outro remanescente percorre as ruelas das periferias urbanas, sustentando tradições! O sino do vendedor de bolos, de broas e de outros acepipes, que carregava na cabeça a produção doméstica, em móvel envidraçado, com quatro longas pernas de cor azul, silenciou na distância dos muitos anos contados pra trás! O homem que gritava a macaxeira e que ouvia de nós outros a indagação cavilosa – “Como se chama a sua mãe?” -, calou-se, vive a mudez das lembranças, apenas, na surdez das impiedosas mudanças!

Mudou tudo, afinal, mudaram as pessoas da rua e os parentes, há filhos jovens e sobrinhos novos contados em maioria! Morreram os velhos! E morreram, do mesmo jeito, os autores e os atores dos antigos pregões, dos matinais e dos vespertinos, anônimos cantadores das ruas, de cujas transformações nasceram muitas das dores d'alma e das saudades. Sequer existem babás a cantarolarem a própria desdita:

"Quem faz o bem/Recebe sempre o mal/...". E nem meninas brincando: "Eu sou rica/Rica/Rica/...". Tampouco adolescentes em flor entoando: "...Serei eu rico/Ou muito pobre?/ Que será/Será/Aquilo que for/Será/O futuro não se vê/Que será/Será....". Morreram as tias velhas, viúvas e mal-amadas, que versejavam: "Nos cigarros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/Em cada página tu estás/Me deixa ao menos/Por favor/Pensar em Deus...".

"Tragam as vasilhas/Tragam as vasilhas...", na verdade, é o refrão das manhãs ou das tardes dos sábados e dos domingos e "Abram as cortinas! Abram as cortinas!" encerra, afinal, o domingo, antecipando inquietudes.

Fonte:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 21

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 74


Sábado engalanado.  Ventares azuizinhos. O azul é uma das três cores chamadas verdadeiras,  juntamente com o vermelho e o amarelo. Estas são ditas também cores primárias - não é possível fazê-las a partir da mistura de outras cores.  Mas com elas podemos formar mais cores, as secundárias.

O colorido do ambiente é matizado de muitas cores e esse corolário é que dá aos olhos a a visão do belo, do encanto, do refrigério. Como somos unidades, mas não unanimidades, cada um reage de uma forma quando recebe o espectro colorido.

O grego Aristóteles é um dos pioneiros estudiosos das cores, mas foi Isaac Newton que apresentou experimentos que revolucionaram os conceitos sobre elas. E assim chegamos à cromoterapia, que é o tratamento para o corpo e a mente.

As cores geram bem-estar, ajudam na autoestima, reduzem o estresse, eliminando ansiedade e angústia.  As cores mexem com as emoções, inspiram, dão vida à vida dos seres e do mundo. Razões imensas para o cultivo das flores do jardim e as árvores e frutos ali do bosquinho.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Beatriz Moraes (Cafeteria)


- Um chocolate quente, por favor.

- Com ou sem chantilly, senhor?

O chantilly faria o chocolate ficar mais doce. Mais apresentável. Ia criar uma camada leve e açucarada em cima do meu pedido. Um pedaço de neve desfeita feito bruma passeando por cima da penumbra. Uma irritavelmente perfeita variação do leite, aquele líquido tão simples e abominável, que minutos antes teria se transformado em chocolate. Minutos antes. Numa mistura peculiar, onde ambos se ajudariam, dentro dos trancos do liquidificador, a crescer e transformar-se num só, aquela encorpada bebida marrom e quente. Daí viria a parte mais prazerosa. Era só pegar o dito cujo do leite, desprezar a parceria com o pó de cacau, sacudir e sacudir o sem-graça, aguado, inútil e insípido, dar-lhe uns bons sopapos, sem esquecer de acrescentar, claro, a serenidade do açúcar. Pronto. O inocente líquido branco teria sido atirado ao crescimento pelo pior meio possível, para tornar-se o superficial chantilly.   A máscara de todo conteúdo. A parte bonita e carismática que aparece sempre encobrindo a parte densa e realmente consistente. A parte que todos admiram. Que todos anseiam. A parte que esperam que nunca termine. O doce sabor da superficialidade. A maravilhosa experiência de não ter de preocupar-se com o que vem depois. Mal sabem que o verdadeiro sabor ainda está por vir. Mas chocolate já é doce. E é tão sem-graça. Tão sem emoção. O chantilly vem todo dengoso... todo superior... todo cheio de sonhos embutidos, criando milhares de expectativas, para conquistar à primeira vista. Para derreter e encantar ainda mais. A mim, e a um bom raio que o assista à minha volta. Quem sabe às crianças o efeito seja mais perceptível, ah, essas são alvo fácil. Muitas vezes certeiro. Mas elas deixam-se envolver pelo encantamento. Pelo sabor. Pela novidade. Já os que calculadamente optam por um chocolate com chantilly, não. Esses querem é ver o circo pegar fogo. Querem botar o dedo na ferida, dramatizar a vida, escancarar seu anseio por um mundo melhor. Um mundo melhor para si, obviamente. Se quisesse um mundo melhor para todos iria logo a uma doceria comprar um enorme bolo com muita cobertura de chantilly e daria uma bela festa, regada à infames sorrisos amarelos, partilhando a peculiaridade da salvação com incontáveis convidados. Pelo menos a salvação momentânea. Ia ser divertido ver de perto o rosto das pessoas celebrando a parte leve e rasa da vida. No geral já podem ser vistos em cada esquina, em cada gesto, em cada momento. Mas acredito que nunca alguém observou o ser humano celebrar a superficialidade hipnotizante do chantilly.

- Senhor?

– Pensando bem. Traga-me um café amargo.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult
http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=185.htm
Acesso em 09.01.2016