segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Machado de Assis (Fuga do Hospício e Outras Crônicas)


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análise realizada pelo prof. Édson Carlos, especialista em linguistica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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O livro Fuga do Hospício e Outras Crônicas é uma antologia com alguns textos publicados por Machado de Assis.

Divide-se em três partes, cada uma contendo dez crônicas com temática que se relacionam exatamente com o título de cada parte. São elas:

PARTE I – ALMA HUMANA

A primeira parte da seleção de crônicas ressalta bem as peculiaridades do íntimo humano, o pensamento, a postura e as atitudes do ser humano nas mais variadas circunstâncias, ressaltando a loucura, a ganância, a hipocrisia, o abandono, o canibalismo e muitas outras atitudes de cunho negativo que podem ser produzidas pela alma humana.

Fuga do hospício

Publicada em 31 de maio de 1896. O autor narra uma fuga de loucos que ocorreu num hospício carioca e discorre sobre seu temor em dirigir a palavra às pessoas na rua da tal fuga, afinal, qualquer uma delas pode ser um dos loucos que fugiram do hospício, como nos revela este trecho:

De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.

Machado defende que todos podem ser loucos, afinal, naqueles dias “o juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese”. Justifica tal afirmativa ao descrever os fatos que ocorreram durante a semana, como se os mesmos fossem fruto da loucura que compõe tais dias:

De resto, toda esta semana foi de sangue, – ou por política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso de Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é privilégio de oficio, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu ao diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas (...)

O autor encerra o texto apontando a música como uma solução à demência, à loucura de seus dias:

Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. (...) se consideramos (...) a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e divina (...).

Um pouco de astronomia

Publicada em 23 de dezembro de 1894, versa sobre o ocorrido durante a semana. Num primeiro momento, o autor narra um jantar realizado pelos ministros da Suécia e Noruega junto a oficiais da marinha e os cônsules da Holanda e Dinamarca.

Num segundo momento, através de uma pergunta feita por seu criado, o autor discorre sobre política e encerra seu texto falando sobre a descoberta de um novo planeta entre Marte e Mercúrio, relacionado à descoberta do astro com um terremoto ocorrido na Itália.

(...) um astrônomo diria sobre este novo planeta coisas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma relação entre os planetas que aparecerem e as cidades que ameaçam desaparecer com terremotos (...)
Andará a terra com dores de parto, e alguma coisa vai sair dela, que ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o planeta novo não foi o filho que ela deu à luz por ocasião dos terremotos italianos?

Por fim, num teor reflexivo, conjectura se a ganância das grandes nações fará que estas, depois de dominarem o continente africano por completo, não decidirão partir para a conquista dos outros planetas. Mais uma vez, narrando os fatos da semana, constrói uma crítica. Seu alvo agora é a ganância das grandes nações que exploram a África, as quais acabam por digladiar ideológica ou belicamente por necessidade de impor sua economia e ideologia às nações daquele continente.

Abolição e liberdade

Publicada em 19 de maio de 1888, um homem reúne seus amigos para um jantar e anuncia que, mesmo sem a escravidão ser abolida, dar alforria ao seu escravo Pancrácio. Tamanho ato de humanidade é elogiado por todos os seus companheiros. O homem permite que o negro continue morando em sua casa e trabalhando em troca de um salário. No entanto, mesmo alforriado, o negro apanha constantemente do patrão, o qual almeja um cargo na política:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um direito que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O autor busca, através deste irônico caso em particular, demonstrar sua opinião acerca da escravidão e, sobretudo, criticar a postura hipócrita daqueles que buscam, através de demonstrações públicas de um falso caráter, angariar a simpatia e admiração da sociedade, quando, em seus íntimos, continuam a ser pessoas mesquinhas e pobres de espírito.

Bondes elétricos

Publicada em 16 de outubro de 1892, num bonde, o narrador nota que, enquanto o cocheiro e o condutor cochilam, os dois burros que puxam o veículo conversam. Ambos falam um ao outro sobre a tristeza e a amargura de serem burros e o destino que lhes é reservado, afinal, quando não servirem mais para puxar bondes serão enviados para puxar carroças. Depois quando não servirem mais para tal serviço, serão abandonados nas ruas, onde morrerão e serão levados por uma carroça, puxada por outro burro, o qual possuirá o mesmo destino. O diálogo entre os dois animais e o assunto sobre o qual falam é uma espécie de metáfora sobre velhice, esquecimento e abandono e, por fim, a morte. O autor busca traçar uma crítica à modernidade que suplanta os antigos moldes de trabalho, pois os bondes elétricos começavam a surgir pelas ruas do Rio de Janeiro, substituindo os burros que antes faziam tal tarefa.

Carnívoros e vegetarianos

Publicada em de março de 1893, uma greve de açougueiros corta o abastecimento de carne para a cidade. O autor, vegetariano por escolha própria, revela as vantagens da dieta composta apenas por vegetais. Aponta as diferenças entre a carne repleta de vícios) e os vegetais (repletos de virtude). Mudando um pouco de assunto, encerra o texto criticando o pensamento de que a instrução pública de sua época devesse ensinar a língua italiana para as crianças e jovens, tendo em vista o grande número de imigrantes italianos no Brasil. O objetivo central do texto é, partindo de assunto da greve dos açougueiros (assunto em alta na semana em questão), criticar as propostas entabuladas nas discussões entre os senhores Capelli e Maia Lacerda sobre lecionar, na instrução pública brasileira, o idioma italiano. O autor usa de seu sutil sarcasmo ao construir o texto, concluindo em tom de sugestão:

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano a povo, antes ensinar nossa língua aos italianos. Mas, posto que isso não tenha nada a ver com o vegetarianismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

Poder relativo

Publicada em 20 de abril de 1885, nela o autor justifica seu posicionamento acerca de ter seu nome citado nas listas de sugestão para o Ministério e defende sua vontade em ingressar na política. Mesmo falando sobre si mesmo, machado ironiza:

Creia o leitor só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce.

Crônica que deixa de lado o ato de narra ou comentar os acontecimentos da semana, o autor concentra-se apenas em falar sobre seus desejos de ingressar na vida política.

Antropofagia

Publicada em 1 de setembro de 1895, a crônica discorre sobre as notícias de enforcamento de um professor de inglês que devorou algumas crianças em Guiné. Como de costume, o autor utiliza-se da ironia ao cogitar que talvez, o professor, ao devorar as crianças, estivesse apenas tentando explicar de modo prático o que era a antropofagia. A seguir, faz apontamentos sobre casos semelhantes de canibalismo ocorridos no Brasil. A crônica parte de tal fato para, num tom sutil criticar o academicismo e a intelectualidade, como vemos no trecho:

Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou um pequeno e comeu-o. os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos. É o que em pedagogia se chama ‘lição das coisas’.

Se fosse assim, deveríamos antes lastimar o sacrifício que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas.

Uma fábula persa

Publicada em 11 de agosto de 1878. O autor traça uma comparação entre o partido republicano e uma lenda persa, em que um jovem decide plantar limas para vender. Como as mesmas não se desenvolvem, ele passa a culpar o sol ao invés do solo, do adubo ou de sua própria inexperiência como lavrador. O sol foi assim escolhido por ser a razão mais visível, que lhe servil ao desabafo e que pudesse gritar e esbravejar seu ódio mesmo que não fosse culpado. O jovem arranca as ervas do solo e fica sem ofício. O autor conclui, numa relação mais do que direta ao Partido Republicano, afirmando que o mesmo deve conhecer toda a política social antes de entrar na vida política do país, para que num problema causado por sua própria incapacidade, um inocente não seja acusado injustamente.

Devaneio de um rei

Publicada em 11 de março de 1894. Partindo da história da colonização da ilha de Trindade, o autor defende que, se fosse rei, o preferiria ser sem súditos. Viver em uma ilha apenas com sua rainha e seu cozinheiro. O texto é uma crítica aos bajuladores dos poderosos, afinal, se ele desejava ser rei sem súditos era apenas para livrar-se tanto de petições e burocracia quanto de bajuladores, como fica evidenciado nas palavras do autor. Tratar-se, portanto, de uma forte crítica à conduta humana, sobretudo, quando levamos em conta o assédio bajulatório característico de pessoas que buscam um reconhecimento social através de “amizades” com homens públicos, para obterem respaldo e, quem sabe, posição pública favorável:

Quando nascesse uma espinha na cara, não haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma açucena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; (...) Se eu perdesse um pé, não teria o prazer de ver coxear os meus vassalos.

A forma irônica e picante com que o narrador se pronuncia nessa passagem demonstra sua habilidade em detectar e expor as falhas e os interesses humanos, que se apresentam como seres fracos e venais, não escolhendo postura ética ou moral para que possam ascender-se a alcançarem reconhecimento perante a sociedade.

Sobre a morte e o morrer

Publicada em 6 de setembro de 1896. Influenciado pela lembrança das mortes dos amigos Alfredo e Artur Gonçalves, o autor faz considerações sobre o envelhecer e o morrer. Versa sobre o número cada vez mais crescente de mortes que permeiam sua época:

Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O livro da semana foi o obituário, e não terás lido outra coisa, fora daqui, senão mortes e mais mortes.

Prossegue falando sobre os homens que matam uns aos outros e encerra discorrendo não sobre a morte impingida de um homem a outro, e sim à morte causada pela própria natureza:

E ainda não como aquele gênero de morte que nas mãos dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribuí-la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida por um terremoto, com a gente que tinha.

Aqui podemos observar uma forte tendência do escritor: o questionamento existencial e a reflexão acerca do sentido da vida. Não podemos deixar de referir-nos ao fato de que o autor vivenciou as contradições do fim do século, deixando-se, portanto, impregnar-se de angústia e desilusão em relação à euforia materialista que tomou conta do mundo desde a segunda metade do século XIX. Não é de se estranhar que em várias narrativas do autor aparecem personagens que passam pela angústia do viver e que buscam no tempo, na solidão e na própria escrita literária uma forma de exorcização de suas certezas metafísicas.

PARTE II – MUNDO MODERNO

Nesta parte, encontram-se aquelas que versam sobre os aspectos da época e da sociedade em que o autor viveu: o transporte através dos bondes, a visita de personalidades importantes em sua época e fatos marcantes que ocorreram em tais dias, como um famoso caso de bigamia, um homem que deu à luz e outros ocorridos relevantes em seu tempo. O autor não deixa de se preocupar, como bom cronista, com a nova realidade por que passava o país. A urbanização, o cosmopolitismo gerado pelo capitalismo, o processo de desenvolvimento social e científico, tudo vai ser captado com a perspicácia e visão crítica desse escritor carioca, considerado pela crítica como “o implacável crítico da consciência humana” e o grande observador da sociedade de sua época.

Como comportar-se no bonde

Publicada em 4 de julho de 1883. O autor, de modo lúdico, constrói um conjunto de regras para todos que queiram usar os bondes como meio de locomoção. O texto se baseia em 10 artigos que definem como deve se portar desde os passageiros com resfriado, até aqueles que queiram ler jornal durante a viagem. Critica a sociedade e suas atitudes cotidianas. Partindo de algo simples como usar um bonde, o autor ironiza a própria sociedade e sua falta de respeito, educação e cortesia ao tratar a se mesma. É, como sabemos, a função do cronista, ou seja, captar um flagrante social e expor de forma analítica e crítica. É o escritor do dia-a-dia.

Visita de um anarquista

Publicada em 20 de outubro de 1895. Narra a viagem da anarquista Luísa Michel ao Brasil. Conta um incidente ocorrido entre ela e um grupo de locatários. Os capitalistas vão até a anarquista e pedem-lhe ajuda, expondo as amarguras financeiras que lhes são impostas por seus inquilinos. Ao ouvir tal relato, a anarquista vibra de emoção, julgando o anarquismo já consumado no Brasil. O texto ironiza a ignorância dos locatários ao demonstrarem sequer saber o que é anarquismo e, mesmo assim, o temerem. Critica também o fato de que, aos olhos da anarquista, o anarquismo já se consumou no país. Com tal postura, o autor nada mais quis do que atacar a falta de ordem que dominava a sociedade, o que, aos olhos de uma estrangeira era algo nunca antes visto. Ele relacionou a doutrina política com o significado pejorativo que o termo “anarquismo” adquiriu com o passar dos anos. O autor versa sobre a realidade política brasileira e a (des)organização pública de nosso país.

Um acontecimento inusitado

Publicada em 7 de julho de 1878. Crônica que analisa o caso de um quadragenário da cidade de Caravelas, na Bahia, que dera à luz a uma criança:

(...) sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da criatura, que não chegou a viver.

Depois, de um modo bem humorado, mas com teores de ponderação, o autor concluiu:

E porque não suponho que ocaso de Caravelas deve ser o único, acontece que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que vai me cair nos braços e bradar (...) “sou mãe”. Esta palavra retine-me os ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz (...)

Aqui se percebe um caráter profético, bem pouco cultivado por autores da época. Não esqueçamos que o autor foi um dos maiores críticos da ciência, do positivismo, sobretudo.

Progresso

Publicada em 15 de março de 1877. Narra a inauguração do sistema de bondes em Santa Teresa, fazendo uma referência à modernidade e, a seguir, de modo bastante descontraído, afirma que os bondes farão bem a santa Teresa, que agora “vai ficar à moda”. Percebe-se que, por trás do aparecer ar de felicidade, existe uma forte crítica do narrador.

Espiritismo

Publicada em 5 de outubro de 1885. O autor narra uma incursão ida a um encontro espírita de um modo bastante inusitado: sua alma desprende-se de seu corpo e vai à reunião, mas, ao retornar, encontra seu corpo possuído pelo diabo o qual, depois de fazer insinuações sobre a doutrina espírita, devolve o corpo ao espírito.

O texto versa sobre o espiritismo, comparando-o a um medicamento novo, que promete curar as doenças de modo eficaz que todas as medicações antigas. A crônica pode ser vista, também, como uma crítica a todos aqueles que, ao manterem um primeiro contato com uma nova religião, aceitam – sem questionar – todas as suas doutrinas e ensinamentos, suplantando, com eles, suas antigas crenças. Não se pode deixar de observar, por outro lado, a obsessão e o interesse do autor pela metafísica. Afinal, em várias de suas narrativas esse tema salta aos olhos. Podemos citar narrativas como A cartomante, A igreja do Diabo, O enfermeiro, por exemplo.

Verbas públicas

Publicada em 1 de setembro de 1878. Crônica que fala sobre a atitude da Câmara Municipal de negar o fornecimento de jantar para o júri quando as sessões se prolongassem até tarde. O autor se mostra a favor do fato, complementando que isso desordenaria a mente dos jurados e encerra seu texto afirmando:

O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há processos longos e juízes famintos? Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperam alguns mais.

O texto também pode ser visto como uma crítica ao comodismo da sociedade e sua necessidade de sempre receber algo em troca do serviço que esteja prestando, não importa qual seja ele.

Direitos dos burros

Publicada em 10 de junho de 1894. Ao sair em seu jardim, o autor encontra um burro. O animal dirige-lhe a palavra e pede que ele, como homem da imprensa, interceda por sua espécie tão injustiçada. A crônica critica a disparidade existente na aplicação de penas existente entre ricos e pobres. Os primeiros, não importa o que façam, safam-se da justiça mediante seus recursos financeiros, os outros, por mais insignificantes que sejam seus crimes, cumprem penas exageradas. Em outro momento, Machado de Assis aproveita para criticar as propostas de ensinar o inglês nas escolas públicas, afinal, para alguns professores de seu tempo, tal idioma possuía mais importância que o português.

O boi

Publicada em 1 de outubro de 1876. Fragmento de crônica que critica a opinião pública para representar. O autor usa a figura do boi para representar a pecuária criticada pela opinião pública, partindo de tal analogia, ele ressalta o papel do boi em tal embate, afirmando que ele nada tem a ver com tal debate, afinal, seu interesse nunca importa, sempre estando subordinado aos interesses do produtor, do intermediário e do consumidor.

Caso de bigamia

Publicada em 23 de setembro de 1894. Partindo de um suposto caso de bigamia que não pode ser comprovado perante a lei (já que existe um atestado de óbito para a primeira esposa do homem), o autor defende que o único meio de se chegar até a verdade é através do espiritismo. O texto critica o fato de que apenas levamos a sério, ignorando-as. Veja, por exemplo, o que acontece com o personagem “Camilo”, de A cartomante.

História de bichos

Publicada em 1 de julho de 1894. O texto narra outro dilúvio. O autor reuniu sete casais de cada animal e, pondo-os em uma arca, tentou conter as diferenças entre eles, no final, soltou uma pomba pela janela e ela não voltou, soube assim que o dilúvio havia acabado e liberou os animais que saíram juntos, alguns enroscados amigavelmente em outros e outros, por sua vez, oscilando entre vôos e saltos de felicidade. A crônica trata das diferenças entre aqueles que, à primeira vista, são semelhantes, dos desentendimentos surgidos pela superlotação e, sobretudo, da alegria daqueles que sobrevivem a acidentes e desastres, uma alegria que derruba todas as barreiras.

PARTE III - PALAVRAS E PENSAMENTOS

Nesta terceira e última parte do livro, encontram-se as crônicas de Machado de Assis que versam sobre o poder das palavras, do discurso, da escrita e, sobretudo, suas influências na sociedade. Existem também em algumas crônicas certas incursões metalingüísticas feitas pelo autor acerca do ofício do cronista e todos os fatores que compõem esse gênero textual.

Pergunta e resposta

Publicada em 5 de novembro de 1883. Sempre que sai na rua, algum curioso se acerca do autor e lhe indaga: “o que há de novo?”. Cansado de responder a tais perguntas, decide pôr um plano em prática; sempre que alguém lhe perguntar as novidades, ele conta um fato passado, como o terremoto de Lisboa e a morte de Gonçalves Dias. Os curiosos, como queriam saber de fatos novos e não passados, param de fazer tais perguntas ao autor. O texto é uma crítica explícita aos curiosos e mexeriqueiros da sociedade daquela época, pessoas curiosas que viam no autor – por ser um homem da imprensa – a oportunidade de se inteirarem nas últimas novidades e acontecimentos de seus dias. É também uma crítica ao descaso para com o passado, como se o que um dia aconteceu pouco valor tivesse hoje quando comparado com os mexericos da corte. Não se pode ignorar também o destaque que o autor dar às palavras, à influência que exercem no comportamento das pessoas.

Impostos

Publicada em 16 de maio de 1885. O autor encontra-se com os impostos inconstitucionais de Pernambuco. Os impostos estavam no Rio de Janeiro há quatro ou cinco meses e, tristes por terem sido expulsos da Câmara de Deputados, o autor os consola dizendo que o que os define como anticonstitucionais é apenas um adjetivo e se ele fosse escolhido o líder da nação aboliria o uso dos adjetivos e eles seriam apenas “impostos”. O poder das palavras é explorado pelo autor, afinal, sem adjetivos para qualificar as coisas, a linha que define se são boas ou más é apagada. Ele usa o caso dos impostos inconstitucionais para metaforicamente provar que, caso seja da vontade dos donos do poder, algo negativo pode ser visto com bons olhos por todos, através apenas, do uso de uma palavra adequada, que não pejorative o objeto.

O cronista e a semana

Publicada em 16 de setembro de 1894. O autor é visitado por uma semana pobre e esta vem lhe dizer que, enquanto ela durou, seu único ocorrido foi o escorregão de um homem numa casca de banana. O autor põe-se a lembrar da visita que teve anteriormente de uma semana rica. Ela (a semana rica), sempre ruidosa e enfeitada, contou que enquanto ela durou, ocorreram tragédias da pior espécie. Depois ela se despede e sai de seu escritório, o autor pede ao seu criado que, se a semana rica voltar, diga-lhe que ele não se encontra. No começo do texto o autor afirma preferir as semanas pobres às ricas, afinal, o que marca o caráter de pobreza da primeira é exatamente a ausência de assuntos trágicos,quando na segunda,o que a torna rica é exatamente a ocorrência de tais fatos. Há, na abordagem de tal temática em uma crônica,um velado exercício de metalinguagem, já que o cronista necessita de fatos para construir seus textos, e geralmente os melhores fatos dessa espécie ocorrem nas “semanas ricas”. A posição de Machado é uma auto-ironia, pois, mesmo preferindo as semanas pobres, elas pouco material lhes dão para suas crônicas.

O nascimento da crônica

Publicada em 1 de novembro de 1877. O autor fala sobre a crônica e conjectura suas origens, depois narra sua ida ao cemitério num dia quente.Participa de um sepultamento e,entrando em seu carro e indo para casa,repara em alguns coveiros que cavam uma sepultura sob um sol a pino e indaga-se:

Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres diabos,durante todas as horas quentes do dia?

Há, como no texto anterior, outro exercício metalingüístico, afinal,ele começa seu texto discorrendo sobre como fazer uma crônica,o que dizer a princípio e que a direção seguir e,por fim,infere onde surgiu a crônica. No decorrer do texto fala sobre se queixar da situação em que se vive e afirma que, por mais que seja penoso afirmar, sempre existirão pessoas em situação pior que a nossa, como comprova ao narrar sua ida ao cemitério.

Conto-do-Vigário

Publicada em 31 de março de 1895. O autor fala sobre um homem que passa a perna em outro e cogita onde terá surgido o famoso conto-do-vigário. Faz uma relação entre o conto literário e o conto-do-vigário e afirma que não é o tamanho do segundo que faz a sua obra,e sim de que maneira ele é feito. Uma vez mais
o autor explora o poder das palavras,poder que faz esse um homem arrancar dinheiro de outro sem que esse perceba.

Reflexões de um burro

Publicada em 8 de abril de 1894. O autor vê um burro à beira da morte, deitado sobre os trilhos dos bondes, ao seu lado foi colocada água e capim, mas o animal ignora isso, pondo-se a pensar em sua condição de burro, sua vida, suas tristezas e alegrias e falar sobre sua vida, sobre tudo aquilo que fez ou sobre o que deixou de fazer. A contragosto – tamanha era a sabedoria daquele animal – o autor se afasta, indo trabalhar. No outro dia, ao passar pelo mesmo lugar, encontra o animal morto e já estado de decomposição. O enfoque principal de tal crônica é ressaltar o poder das palavras, da oralidade, do discurso e a beleza que se encerra na comunicação oral, quando o orador domina a palavra a tal ponto que chega a enternecer seu público. Ao mesmo tempo, o autor volta ao mesmo tema de comparar veladamente o animal (neste caso, o burro) ao ser humano, suplantado pelo poder do tempo, da vida que transcorre e o faz envelhecer, definhar e morrer.

Touradas

Publicada em 15 de março de 1877. Machado ironiza a decisão de se fazer uma tourada em caridade aos necessitados, afinal, para prestar uma boa ação ao povo, fazem uma má ação aos animais. Desse modo, critica uma vez mais aqueles que, através de causas nobres (neste caso ajuda aos pobres) buscam angariar a simpatia do povo e galgar, assim, os degraus da vida política. Mais uma vez o autor exercita a metalinguagem ao definir o cronista, ou seja, como “um historiador da quinzena”, alguém que vive de contar – sob o prisma que seja – os eventos ocorridos que marcaram a sociedade neste intervalo de tempo.

Analfabetismo

Publicada em 15 de agosto de 1876. O autor trata das diferenças existentes entre as palavras e os números, afirmando que enquanto as primeiras são mais maleáveis, suscetíveis à interpretações diferentes e a mal-entendidos, os segundos são mais práticos, diretos, impossíveis de ser interpretados de outra maneira que não seja a da lógica e do bom-senso.

Grito do Ipiranga

Publicada em 15 de setembro de 1876. Um amigo do autor lhe fala que o grito do Ipiranga, que marcou a independência do Brasil, como conhecemos não ocorreu do mesmo modo que se disse, foi, na verdade, um apanhado de fatos dispersos que o povo achou melhor resumir miticamente no famoso “grito”. O autor posiciona-se justificando ironicamente:

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autentica. A lenda todo o fato da in dependência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima.
Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

Mais uma vez, o cronista fala sobre as palavras e seu poder, no entanto, partindo agora sobre um enfoque entre a escrita e a oralidade, entre história transcrita em todas as suas minúcias para o papel e a versão oral que resume e, de modo generalizador, dá seus tons épicos ao ocorrido.

Neologismos

Publicada em 7 de março de 1889. Critica a tentativa do senhor Castro Lopes, famoso latinista brasileiro de sua época, em criar uma série de neologismos para substituir as palavras e as frases oriundas do idioma francês – tão comuns no vocabulário dos brasileiros letrados da época. Ironiza o uso de determinadas palavras e, por fim, encerra seu texto defendendo sarcasticamente que, por mais que não se queira aceitar, muitos destes termos e expressões francesas já foram assimilados pelo nosso vocabulário, como é o caso de palavras como “reclame” ou “croquete”.

A última crônica versa sobre o poder universalizante de algumas palavras, que rompem as fronteiras de sua nação de origem e adentram em outras nações, as quais possuem seu próprio idioma. Uma das críticas mais presentes em todo o texto é o fato de que o senhor Castro Lopes repudiava o uso apenas das expressões francesas, fazendo pouco caso sobre o uso de palavras como “xale”, de origem persa.

Fonte:
Passeiweb

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XIV


OS RISONHOS

Pastores e camponesas
De rudes almas esquivas
Passam entre as candidezas
Das estrelas fugitivas.

Parece que nada os punge,
Nada os punge e sobressalta.
A lua que os campos unge
No firmamento vai alta.

E eles passam sob a lua,
De queixas desafogados,
A cabeça livre e nua,
Na florescência dos prados.

Seres meigos e singelos,
Mulheres de lindo rosto,
Lábios cálidos e belos,
Do quente sabor do mosto.

Pastores de tez morena,
Queimados ao sol adusto:
Claridade bem serena
No fundo do olhar bem justo.

Neles tudo é riso e festa,
Neles tudo é festa e riso,
Frescuras brandas de giesta
E graças de Paraíso.

Simples, toscas e felizes,
Sem ter um laivo de mágoa:
Almas das verdes raízes,
Limpidez de gota d'água.

Neles tudo é paz de aldeia
E ri com os risos mais frescos...
O céu inteiro gorjeia
Idílios madrigalescos.

Seduzido por miragens
Caminha o bando risonho
Dessas virentes paragens,
Levado na asa de um sonho.

Nele tudo ri sem ânsia
E com doçura secreta;
E como uma nova infância
Cantantemente irrequieta.

Encantos de mocidade,
Saúde, fulgor, vigores,
Dão-lhe a doce suavidade
Maravilhosa das flores.

Os corações, florescentes,
Vão nesses peitos cantando
E rindo em festins ardentes
E dentre os risos sonhando.

Ri na boca, ri nos olhos,
Nas faces o bando, rindo
O bom riso sem abrolhos,
Que lembra um campo florindo.

Rindo em sonoras risadas,
Rindo em frêmitos vivazes,
Rindo em risos de alvoradas,
Rindo em risos de lilazes.

Os campos entontecidos
Nos vinhos da lua clara
Ficam bizarros, garridos,
De vitalidade rara.

As águas claras das fontes
Vibram lânguidas sonatas
E as nuvens vestem os montes
Das visões mais timoratas.

Na copa dos árvoredos,
Nas orvalhadas verduras
Há sonâmbulos segredos
E murmuradas ternuras.

E o bando festivo passa
Rindo, alegre, casto e suave,
Iluminado de graça,
Mais leve que um vôo de ave.

Podeis rir, almas ditosas,
Almas novas como frutos
De vinhas miraculosas
De pomares impolutos.

Podeis rir, almas eleitas
Que os anjos percebem tanto
Lá das esferas perfeitas
Nas harmonias do Encanto.

Almas brancas, Páscoas leves,
Alvos pães de áureos altares,
De mais candidez que as neves
E a madrugada nos mares.

Almas sem sombras ferozes
Nem espasmos delirantes.
Eco das bíblicas vozes,
Caminhos reverdejantes.

O vosso riso é bendito,
Os vossos sonhos são castos,
O estrelamento infinito
De mundos claros e vastos.

Podeis rir, peitos ufanos,
Belas almas feiticeiras,
Vós tendes nos risos lhanos
O trigo das vossas eiras.

A vossa vida é planície,
Não tem declives funestos:
Sois torres que a superfície
Assenta nos dons modestos.

A nossa vida é bem rasa,
Preso à terra o vosso esforço;
Nem mesmo um frêmito de asa
Vos faz agitar o dorso...

Sois como plantas vencidas
Conquistadas pela terra,
Dando à terra muitas vidas
E tudo que a Vida encerra.

É do vosso sangue moço
Que na terra se derrama,
Que sobe o rubro alvoroço
De ocasos de sóis em chama.

Manchas, ao certo, não tendes
E nem trágico flagício,
Almas isentas de duendes,
Lavadas no Sacrifício.

Das pedras, nos vossos ombros,
A rigidez não carrega.
Em jardins tornam-se escombros
E em luz a crença que é cega.

Desses perfis adoráveis,
Na curva casta dos flancos
Brotam viços inefáveis
Dos florescimentos brancos.

Podeis rir! ó benfazeja
Bondade de nobre essência,
Deus vos chama e vos deseja
Na estrelada florescência.

Um anjo vos acompanha
Nessa estrada matutina
E convosco a ideal montanha
Sobe da graça divina.

O flagelo deste mundo,
Nesses corações não pesa.
Enquanto o Horror vai profundo
Vossa alma tranqüila reza.

Contritos e de mãos postas,
Humildemente de joelhos,
O Demônio, pelas costas,
Não vem vos dar maus conselhos.

Vós sois as sagradas reses
Votadas ao azul Sacrário.
Deus vos olha muitas vezes
Com o seu olhar visionário.

Mas quando, como as estrelas,
Adormecerdes um dia,
Voando mais perto a vê-las
Na Paragem fugidia.

Quando na excelsa Bonança
Afinal adormecerdes,
Nos olhos toda a esperança
Levando dos prados verdes.

Quando lá fordes, subindo
Para as límpidas Alturas,
Profundamente dormindo,
Em busca das almas puras.

Praza aos céus que nos caminhos
Da eterna Glória, das palmas,
Mais brancas que os claros linhos
Possais encontrar as almas!

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo V – Pedrinho


V Pedrinho

Chegou afinal o grande dia. Na véspera viera para dona Benta uma carta de Pedrinho que começava assim:

“Sigo para aí no dia 6. Mande à estação o cavalo pangaré e não se esqueça do chicotinho de cabo de prata que deixei pendurado atrás da porta do quarto de hóspedes. Narizinho sabe.

Quero que Narizinho me espere na porteira do pasto, com a Emília no seu vestido novo e Rabicó de laço de fita na cauda. E tia Nastácia que apronte um daqueles cafés com bolinhos de frigideira que só ela sabe fazer.”

Em vista disso Narizinho levantou-se muito cedo para preparar a recepção de acordo com as instruções da carta. Enfiou em Emília o vestido novo de chita cor-de-rosa com pintinhas e enfeitou Rabicó de duas fitas — uma ao pescoço e outra na ponta da cauda.

Pac, pac, pac... Pedrinho apareceu na porteira, trotando no pangaré, corado do sol e alegre como um passarinho.

— Viva! — gritou a menina, correndo a lhe segurar a rédea. — Apeie depressa, senhor doutor, que temos mil coisas a conversar!

Pedrinho apeou-se, abraçou-a e não resistiu à tentação de ali mesmo abrir o pacote dos presentes para tirar o dela.

— Adivinhe o que trouxe para você! — disse, escondendo atrás das costas um embrulho volumoso.

— Já sei — respondeu a menina incontinenti. — Uma boneca que chora e abre e fecha os olhos.

Pedrinho ficou desapontado, porque era justamente o que havia trazido.

— Como adivinhou, Narizinho?

A menina deu uma risada gostosa.

— Grande coisa! Adivinhei porque conheço você. Fique sabendo, seu bobo, que as meninas são muito mais espertas que os meninos...

— Mas não têm mais muque! — replicou ele com orgulho, fazendo-a apalpar a dureza do seu bíceps que a ginástica escolar havia desenvolvido. E concluiu: — Com este muque e a sua esperteza, Narizinho, quero ver quem pode com a nossa vida!

Os presentes dos demais foram também distribuídos ali mesmo. Rabicó teve uma fita nova, de seda — e os restos do farnel que Pedrinho trouxera (e foi isso o que ele mais apreciou). Emília recebeu um serviço de cozinha completo — fogãozinho de lata, panelas, e até um rolo de folhear massa de pastel.

— E para vovó que é que trouxe? — perguntou Narizinho.

— Adivinhe, já que é tão adivinhadeira — disse ele.

— Eu só adivinho quando é você mesmo quem escolhe os presentes. Mas o presente de vovó aposto que não foi você quem escolheu, foi tia Antonica...

Pela segunda vez Pedrinho abriu a boca. Aquela prima, apesar de viver na roça, estava se tornando mais esperta do que todas as meninas da cidade.

— Tem razão. É isso mesmo. O presente de vovó quem o escolheu e comprou foi mamãe. Você precisa me ensinar o segredo de adivinhar as coisas, Narizinho...

Nesse momento dona Benta apareceu na varanda e Pedrinho correu a abraçá-la.

Dali a pouco estavam todos reunidos na sala de jantar, ouvindo notícias e histórias da cidade. Tia Nastácia trouxe da cozinha a gamela de massa, para não perder uma só palavra ao mesmo tempo que ia enrolando os bolinhos. Súbito, uma brisa soprou mais forte e um ringido se fez ouvir — nhem, nhim...

Pedrinho interrompeu a conversa, de ouvido atento.

— O mastro de São João!... — murmurou enlevado. – Quantas vezes no colégio me iludi com os ringidos das portas, imaginando que era a bandeira do nosso mastro!... Como vai ele?

— Já desbotado pelas chuvas e com um rasgão na bandeira bem em cima da cabeça do carneirinho — respondeu a menina.

O dia de São João era o grande dia de festa no Sítio do Pica-pau Amarelo. Reuniam-se lá todas as crianças dos arredores, para soltar bombinhas e pistolões e dançar em torno da fogueira. Pedrinho jamais faltou a essa festa anual, como jamais deixou de queimar o dedo.

Um ano em que não queimou o dedo ficou muito admirado.

Nos últimos tempos era Pedrinho quem pintava o mastro, caprichando em formar arabescos de todas as cores, cada ano dum estilo diferente. Também era ele quem fornecia a bandeira com o retrato de São João menino, de cruz ao ombro e cordeiro no braço.

Trazia-a da cidade, depois de percorrer todas as casas de negócio a fim de comprar a mais bonita.

— Está bem — disse dona Benta logo que soube das principais novidades. — Pode ir brincar com Narizinho, que tem um mundo de coisas a contar.

Os dois primos dirigiram-se ao pomar aos pinotes. Era lá, debaixo das velhas árvores que trocavam confidências e planejavam as grandes aventuras pelo mundo das maravilhas.

O assunto do dia foi o extraordinário caso da boneca.

— Parece incrível! — dizia Pedrinho. — Quando recebi sua carta contando que Emília falava, não quis acreditar. Mas hoje vejo que fala e fala muito bem. É espantoso !

— No começo — explicou Narizinho — Emília falava muito atrapalhado e sem propósito. Agora já está melhor, mas, mesmo assim, quando dá para falar asneiras ou teimar, ninguém pode com a vidinha dela. Sabe que já é condessa?

— Sim? Condessa de quê?

— De Três Estrelinhas, nome que ela mesma escolheu. Mas estou com vontade de mudar. Condessa é pouco. Emília merece ser marquesa.

— Marquesa de Santos?

— Não. Marquesa de Rabicó.

— É verdade!... Podemos fazer de Rabicó um marquês e casar Emília com ele!

— Isso mesmo. Tenho pensado muito nesse arranjo e até já o propus à Emília.

— E ela aceitou?

— Emília é muito vaidosa e cheia de si. Mas eu sei lidar com ela. Quando chegar a ocasião darei um jeito.

Terminado o assunto Emília, começou o assunto Reino das Águas Claras. Narizinho contou a série inteira daquelas maravilhosas aventuras, despertando em Pedrinho um desejo louco de também conhecer o príncipe-rei. De nada se admirou, conforme o seu costume. Tanto ele como Narizinho achavam tudo tão natural! Só estranhou que o Pequeno Polegar tivesse fugido da sua historinha.

— Isso, sim, não deixa de me intrigar — disse ele. — Se Polegar fugiu é que a história está embolorada. Se a história está embolorada, temos de botá-la fora e compor outra. Há muito tempo que ando com esta idéia — fazer todos os personagens fugirem das velhas histórias para virem aqui combinar conosco outras aventuras. Que lindo, não?

— Nem fale, Pedrinho! — exclamou a menina pensativa. — O que eu não daria para brincar neste sítio com a menina da Capinha Vermelha ou Branca de Neve...

— Eu só queria pilhar cá o Aladino da lâmpada maravilhosa, para tirar a prosa dele! — ajuntou Pedrinho que voltara da cidade com fumaças de valentia.

— E eu só queria Capinha. Tenho tanta simpatia por essa menina... Aqueles bolos que ela costumava levar para a vovó que o lobo comeu — que vontade de comer um daqueles bolos...

Uma voz conhecida veio interrompê-los:

— Narizinho! Pedrinho! O café está na mesa.

— Duvido que fossem melhores que os de tia Nastácia! — disse o menino erguendo-se.

E dispararam para casa.
–––––––––
Continua... A Viagem

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Olivaldo Junior (Projeto)

Pintura de Salvador Dali
Um dia, eu vou estar à sombra do mundo,
e tudo o que vivi de mal será um sol sem sal,
que não me aquece, nem me ilumina mais.
Mais ainda: eu serei menino que quer Natal,
serei rapaz cujo carnaval é todo o mundo
que se põe fenomenal, mas sem nada de mais.
Mais ainda: eu serei adulto que quer amor,
serei senhor cujo coração é o bem profundo
que queria ter feito, e fez.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Simone Athayde (A Ilha Triste)


Emanuel andava apressado, esperando que aquela última oportunidade que lhe tinham acenado fosse real. Por tantos dias vagara, sem rumo e comida, que o espírito já lhe fraquejava e ele não sabia mais quanto tempo ia suportar viver daquele modo ingrato.

Não tinha nada naquela vida: nem estudo, nem dinheiro, nem tampouco lugar pro pouso noturno. Virara pouco mais que um vagabundo, e se ainda não roubara é que sua mãe, quando viva, soubera lhe ensinar o que era certo. Preguiça não tinha, era capaz de fazer qualquer serviço, mas havia tanta gente mais necessitada que ele, tanto desemprego, que só podia pôr a culpa naqueles tempos difíceis.

Enfim, com a cabeça estourando com o calor daquela terra, com o estômago nas costas de não comer nenhuma refeição decente em muitos dias, chegou ao tal porto, que apesar de ter muitos barcos velhos, muito peixe sendo limpo ali mesmo na praia, dava até gosto de ver: um mar azul que era uma lindeza só.

Parou perto do primeiro barco que viu e perguntou ao homem, que de tão ocupado com o que fazia, nem se preocupou em fitá-lo:

“Bom dia. Fiquei sabendo de um serviço lá na ilha Triste. Queria saber se o senhor pode me levar até lá.”

O homem levantou os olhos, perscrutando o jovem.

“Só quem faz essa viagem é o Preto Genésio, mas o senhor deve estar com muita precisão pra querer trabalho naquele lugar.”

“Ah, isso tô mesmo! Mas onde encontro o tal homem?”

“O barco dele sempre fica de frente pro bar. É pertinho, não tem como errar.”

Então Emanuel agradeceu, e estava tão satisfeito que não percebeu que o homem lhe queria falar mais alguma coisa, que parecia preocupado. Foi andando mais rápido até avistar o tal bar e um homem negro enrolando um cigarro de palha, sentado no barco sem se preocupar com o balanço excessivo produzido pelas embarcações que chegavam ou partiam. Alheio ao balanço das águas e ao movimento do mundo.

“O senhor é Seu Genésio?”

“Pode falar “Preto”. Preto Genésio é como todo mundo me chama”, disse o homem sem levantar a cabeça.

“Tarde. É que quero ver o serviço lá na ilha Triste. Um moço me falou que só o senhor é que faz essa viagem.”

“Verdade. Vai ter que conversar com o dono. Se ele gostar de você, te dá o trabalho.”

“Ele vai gostar. Mas o senhor pode me levar lá agora? E quanto custa? Não posso pagar muito.”

“Você me paga quando receber. Eu estou sempre indo praquelas bandas mesmo, não vai me faltar oportunidade de cobrar.”

Emanuel riu e pulou pro barco. A viagem começou e o preto ia lento, lentamente. O jovem tinha ficado atrás dele, de modo que não podia ver o rosto escuro enquanto conversavam. Não que falassem muito, na verdade, demorou bem uns dois minutos até que o barqueiro começasse uma cantiga triste, e mais uns três até que resolvesse falar.

“Tá vendo a ilha?”

“Tô. É uma lindura! Por que um lugar tão bonito pode ter um nome tão triste?”

Mas o homem não respondeu, e continuou com a cantiga.

“Há de ser um serviço duro. Veio uma chuva brava, uma ventania louca, e derrubou o barracão do homem trabalhar.”

“Não tenho medo da lida. É bom que tenha muito trabalho mesmo, porque assim fico uns dias de barriga cheia.”

“Também não há de lhe pagar muito, mas não é tratante. Se acertar, paga.”

“Antes pingar que faltar.”

Por fim chegaram. A beleza daquele lugar e o vento bom que soprava ali caíram nele como feitiço. Abriu os pulmões pra respirar fundo aquele ar, e quando olhou de novo pra ilha, viu sobre um pequeno monte, uma mulher que parecia um anjo. Tinha os cabelos da cor do ouro, tão longos e lisos que, com o vento, voavam. O rosto era tão perfeito que não parecia real. No instante em que ele se virou para perguntar ao preto quem era aquela maravilha, eis que ela desapareceu.

“Você viu, Preto? Quem é aquela?”

O barqueiro ficou muito sério. Só então Emanuel reparou nos olhos dele, que eram opacos, quase brancos.

“Quer um conselho, amigo? Não vá atrás de aparição. Faça seu trabalho, que o mais pode ser muito perigoso. Venho aqui toda semana trazer mantimentos e pegar as peças que o homem faz. Ele é artista. Na minha próxima viagem posso levar você de volta, se tiver terminado o serviço. E não enrole, quanto menos conversar e mais rápido andar, melhor pra você. Até logo.”

“Não vai me esperar?”

“Não vai ser preciso. Ninguém mais ia querer esse serviço. O homem sabe disso.”

Então Emanuel agradeceu, um pouco encabulado com tantos conselhos. Ao estender a mão pra cumprimentar o homem, sentiu um calafrio: o preto era mesmo cego.

Emanuel atravessou a areia e a parte pedregosa que vinha depois até avistar a casa. Era uma construção muito simples, não parecia ter sido feita com capricho. Havia um cômodo na parte superior e, da janelinha aberta, Emanuel pôde ver que alguém o observava. Bateu palmas e chamou. Como demorassem pra atender, andou por trás da casa, até chegar ao barracão que havia sido destruído pela chuva.

“Um estrago e tanto, né?”

Emanuel levou um susto, mas logo se recompôs. Com o chapéu nas mãos, abaixou a cabeça num cumprimento. O homem olhava-o severo, não lhe deu nenhum sorriso.

“Foi uma chuva como nunca se viu, pensei que não ficava vivo. Mas a minha casa é mais bem construída. Esse barracão foi eu que fiz e por isso não resistiu. Agora preciso de alguém que saiba trabalhar, porque não posso levar prejuízo de novo.”

“ Metade do cômodo se foi”, disse Emanuel observando atentamente. “Mas posso fazer isso ficar uma belezura.”

“E quanto tempo demora?”

“Pra um homem sozinho é serviço pra duas semanas, no mínimo.”

“Tá brincando”, disse o homem, muito irritado. “Te dou uma semana, e te ajudo se for preciso. Se não der conta pode ir dando o fora.”

Emanuel pediu calma. Sabendo que não haveria como ir embora, disse que poderia dar conta do serviço no prazo estabelecido. Então o homem, que apesar de ser forte, já tinha muitas rugas, cabelos brancos e uma barriga proeminente, começou a lhe explicar melhor o serviço, as regras que deveria cumprir, e o quanto pagaria. Disse que não gostava de conversa, nem que ficassem de andanças na sua ilha, nem que fossem na sua horta e comessem seus frutos, que já eram poucos, e que dormisse ali mesmo no barracão porque não gostava de se misturar com ninguém. Vivia sozinho que era como gostava.

Emanuel sentiu vontade de perguntar da moça, mas achou melhor não, e depois de ouvir tamanha ladainha, pensou que poderia se dar a um pequeno atrevimento.

“Posso começar agora mesmo, moço, mas é que estou com muita fome. Será que o senhor pode me arrumar nem que seja um pedaço de pão?”

O homem mandou que ele começasse a trabalhar, que logo lhe traria o que comer. E assim foi feito. Emanuel começou com a lida e algum tempo depois lhe veio uma refeição completa e farta, tão gostosa que não parecia ter sido feita por um homem que dizia viver sozinho. Depois que comeu, descansou alguns minutos e trabalhou sob a vista do patrão o resto do dia. Só parou com o escuro, porque o outro não tinha lampiões de sobra. Quando perguntou onde podia tomar um banho, teve que ouvir mais desaforos.

“Você gosta de mordomias, heim, moço? Do lado esquerdo da praia aonde vocês chegaram, tem um riachinho, que é de onde tiro minha água. Não é fria nessa época do ano, é até muito aprazível.”

Emanuel resignou-se, mas estava tão cansado que acabou por dormir depois da refeição noturna, tão boa e farta quanto a anterior. No outro dia, acordou com a aurora, e foi logo procurar o riachinho. Era um lugar bonito, agradável, e a água realmente não era fria. Ficou nu e se demorou por lá, até que viu, já com a luz plena da manhã, a mesma moça do dia anterior. Tratou de vestir-se, mas ela não estava envergonhada de vê-lo nu. Porém, quando foi conversar, ela fugiu.

Não contou nada pro patrão, mas passou o dia inteiro pensando naquela jovem. Quando foi jantar, descobriu, debaixo do arroz, um bilhete escrito com letras tortas e feias:

“Vá se banhar a meia-noite”.

E assim Emanuel fez. Mas não se banhou nu, por pudor ou medo, e acabou rápido pra esperar uma nova aparição. Ela demorou, mas veio. Desta vez chegou perto, e tinha olhos tristes.

“Quase não pude vir. Ele não dormia.”

“O que ele é seu?”

“Meu pai. Mas parece um monstro, porque me tranca nesse lugar maldito e nunca, nunca deixa que ninguém me veja. Sou tão infeliz...”

“Por que ele faz isso?”

“Diz que é pra me proteger. Diz que nunca vai me entregar para homem algum.”

“Quer que eu te ajude?”

Então ela sorriu, e Emanuel soube que poderia ser tragado por aqueles olhos verdes profundos.

“Quero que me conte coisas. Me fale sobre o que acontece do outro lado do mar.”

Emanuel começou a falar da sua vida, do que as pessoas faziam no continente. Lara, como ela se chamava, encantava-se com tudo, empolgada como criança.

“Tenho que ir”, disse, ao se assustar por ver que o dia amanhecia.

“ Não vá ainda.”

“Volto amanhã, na mesma hora.”

E ficou tão perto do rosto de Emanuel que ele pôde sentir o hálito de alecrim que exalava do sorriso dela.

“Me beija”, ela pediu.

O jovem obedeceu, mas ao invés de sentir-se feliz, teve um estranho pressentimento. Lembrou-se das palavras do preto, e soube que ali começava sua perdição.

A outra noite chegou e novamente conversaram muito, mas Lara não deixou que Emanuel a beijasse, para que ele não pensasse mal dela. E foi no quarto dia que aconteceu o acidente, que mudaria o rumo da vida de Emanuel (ou talvez o rumo de sua vida já estivesse traçado antes que ele colocasse os pés no barco do Preto).

Enquanto o patrão ajudava a carregar umas vigas pesadas para reconstruir a última parte do telhado, eis que não suportou o peso da madeira. Ao tombar, a viga caiu sobre seu tórax, num impacto que o fez urrar como um animal. O homem empalideceu e continuou gritando, sentindo muita dor. Seu sofrimento foi tanto que chamou atenção de Lara, que da casa, ouviu os gritos e achou melhor acudir. Chegou desesperada, mas quando o homem a viu, deu-lhe grande bronca.

“O que está fazendo aqui? Já para dentro.”

“Fiquei com medo que morresse.”

Enquanto isso Emanuel não sabia se tirava a viga de cima do homem, ou se admirava a beleza de Lara, mas por fim pediu:

“Moça, me ajude aqui. Esta viga é pesada, tem que ser tirada com jeito, pra não machucar mais ele.”

Sem que pudesse protestar, o homem viu os dois se ajudarem até conseguir livrá-lo. Depois, não se importou mais de ser amparado por eles até a parte interna da casa.

No quarto, que ficava no andar superior, havia uma cama de casal enfeitada com uma colcha muito bonita. Lara ajeitou o homem com tanto carinho que ele relaxou e não se preocupou mais com o intruso.

O rapaz foi ficando por ali, ajudando a jovem a colocar emplastos de ervas. Ela disse que uma costela fora quebrada, pelo menos. Por fim, vencido pela dor e pelo cansaço, o homem dormiu, e Lara e Emanuel foram para a parte de baixo, onde num cômodo único, ficava uma mistura de cozinha e sala. Numa mesa mais afastada, estavam esculturas muito estranhas e belas.

“É ele quem faz. As pessoas do outro lado gostam, é assim que vivemos.”

“São bonitas.”

“Ele tira o barro aqui da ilha mesmo. É o segredo dele: um tipo de barro especial que dá esse tom, esse brilho.”

Depois ela lhe serviu comida, e aproveitaram para se beijar, embora timidamente. Depois de algum tempo o homem chamou-os.

“Rapaz, obrigada por me socorrer. Eu devia ter deixado você me ajudar com o peso, mas fui teimoso. Agora você já conhece meu tesouro: essa é minha mulher, Lara. Pode comer aqui conosco até terminar seu serviço, e pode se banhar aqui em casa se quiser. Mas sou um homem ciumento. Não admito falta de respeito.”

“De maneira nenhuma, senhor, não sou homem de cuspir no prato que come”, disse isso enquanto ainda se embasbacava com o que o homem dissera, de ser Lara mulher dele, e não filha.

Despediu-se e reparou que Lara movia os lábios, sem emitir som, pedindo que fosse ao riacho.

Na hora costumeira ela chegou. Emanuel ficou lívido ao vê-la nua. Ela o abraçou e disse, desconsolada:

“Ele mentiu sobre eu ser mulher dele, mas é um monstro, dorme comigo. E agora que já você já sabe, quero que fique comigo.”

Emanuel quis negar, quis sair correndo, mas afundou-se naquele corpo macio, que amava, e sentiu tanto contentamento quanto angústia.

O patrão continuava de repouso, mas permanecia na parte térrea da casa, de olho em Lara. Por causa do acidente, o trabalho de Emanuel atrasou, e findada a semana, ele teve que ir com a mulher até o barco do Preto. Este levou tanto susto quando percebeu que eles estavam juntos, que perdeu o costume de ficar mais calado, e falou aflito.

“O que você faz com essa perdição, filho?”

Emanuel contou só do acidente, mas o preto, com seu instinto de cego, sentiu neles o cheiro do amor, e soube de tudo o mais.

“Ele vai descobrir. Você tá perdido.”

“Ora, descobrir o quê?”, perguntou a bela.

“Você sabe. Quer desgraçar a vida dele igual desgraçou a minha?”

“Do que você tá falando, Preto?”

¬“Da minha cegueira. Foi o homem dela quem fez isso comigo, só porque um dia, depois de muito tempo que vinha aqui, vi ela e disse que era a coisa mais linda do mundo. Ele me enfiou o canivete nos olhos, me colocou no barco, e o empurrou pro mar, e disse que aquilo era pra eu aprender a não desejar o que era dele.

Emanuel ficou pálido feito cera, aterrorizado com a história, mas Lara ficou desmentindo, nervosa.

“Por que não ficou quieta no seu canto? Você gosta é de desgraçar os outros.”

“Não vê que é mentira, Emanuel? Se fosse verdade, por que ele voltaria aqui depois de tudo?”

“Porque é o único caminho que sei fazer sem meus olhos. O caminho que já sei de cor dentro da minha alma; e porque seu homem nunca mais me amolou, e me paga direito.”

Lara não deixou o preto falar mais. Puxou Emanuel, carregando os mantimentos na outra mão. Mais na frente pararam. Emanuel estava dos mais acabrunhados.

“Vai deixar de me amar por causa disso?”

Emanuel a abraçou, sem ter coragem de perguntar de novo se aquela história era verdadeira, mas sabendo que mesmo se fosse, Lara não tinha culpa.

“Foge comigo, Lara, na próxima viagem.”

“A gente não precisa esperar até lá. Ele tem um barco escondido lá nas bandas do riachinho.”

“Então a gente pode ir agora mesmo, se você quiser. Ele nunca vai descobrir nosso rumo.”

Lara abaixou a cabeça, e Emanuel viu que ela não tinha muita certeza se queria fugir.

“Eu vou, mas não hoje, com ele tão doente. Quero que melhore mais.”

“Se melhorar muito, pode descobrir nosso plano.”

“Não. Daqui a dois dias. E vamos pra casa, que já demoramos muito.”

Viveram normalmente até o dia combinado, encontrando-se enquanto o homem dormia. Quando chegou a tal noite da fuga, caiu uma chuva violenta e Emanuel ficou chateado, achando que não poderiam ir. Foi jantar na cozinha, como o patrão permitira.

“O serviço tá indo bem.”

“É, mais dois dias e tá pronto.”

“Não vai ter jeito de você dormir lá essa noite. Pode ficar aqui na cozinha. Eu e Lara vamos nos deitar.”

Emanuel concordou, abaixando a cabeça, ressabiado em pensar que sua bela ia dormir com aquele. Aninhou-se num canto perto do fogão, que era onde estava mais quente, e só acordou com Lara chamando. A ilha parecia tremer com tanto trovão e relâmpago que caia do céu.

“Que pena. Acha mesmo que não dá?”

“Era procurar a morte nesse mar.”

“Então me beija.”

“Aqui não, Lara, é perigoso ele acordar.”

“Ele dorme feito pedra.”

E Lara começou a beijá-lo, apesar da resistência dele. E tanta era a disposição dela, que Emanuel até se esqueceu do perigo e deixou-se levar. Mas não durou muito tempo. Da rústica escada o homem gritou, com feição assustadora.

Desceu com tanta destreza como se não estivesse machucado, e investiu contra Emanuel com um soco violentíssimo.

Lara gritava, tentando defender o jovem, mas o homem a empurrou e continuou batendo em Emanuel. Este conseguiu desvencilhar-se e aplicou-lhe um golpe nas costelas, que o fez cair no chão com um gemido. Lara e Emanuel ficaram parados, olhando para ele, até que o jovem achou que tinham que ir mesmo embora e puxou a bela pelas mãos. Mas o homem levantou-se e sem que Emanuel percebesse, pegou uma faca sobre a mesa e avançou contra ele. Lara gritou, avisando-o, e Emanuel teve tempo de se defender, esmurrando o homem e jogando a faca longe. Porém, o outro era muito forte. Prensou o jovem contra a parede, enquanto tirava da cintura uma arma antes escondida, o canivete.

Emanuel segurava o braço dele, mas não tinha forças para resistir muito mais. Pediu desesperado:

“A faca, Lara! A faca!”

Mas Lara não se mexeu. Permaneceu grudada à parede, e seus lindos olhos nem piscavam.

Então Emanuel perdeu as forças, e o homem cravou-lhe o canivete muitas vezes, até perceber que se esvaia. E Lara permaneceu encostada à parede, silenciosa.

Então o homem descansou poucos minutos. Depois, sem dizer uma só palavra, carregou o corpo até a horta, que Emanuel em vida nunca pudera visitar. Com uma pá cavou um buraco, ao lado de quatro canteiros altos, onde estavam plantados pés de alecrim, e onde havia quatro cruzes.

O homem, molhado pela chuva e pelo suor, parou um pouco seu trabalho para olhar em direção à janela, e sorriu. E Lara lhe sorriu também.

Fonte:
http://www.simoneathayde.com.br/contemas.asp

57a. Feira de Livros de Porto Alegre (Programação de 8 de novembro, terça-feira)


5ª Expo AEILIJ - Cores e Formas que Contam Histórias
08/11/2011 - 00:00
A mostra estará exposta do dia 8 ao dia 13 de novembro, no Hall da Casa do Pensamento

O Autor no Palco
08/11/2011 - 09:00
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

Mostra do Programa de Leitura Adote um Escritor
08/11/2011 - 09:00

Encontro com autor
08/11/2011 - 10:30
Bate-papo sobre História

Sessão de autógrafos da EMEF Granja Esperança - Cachoeirinha
08/11/2011 - 10:30

Dom Quixote e Dulcinéia contando Histórias
08/11/2011 - 10:30
João Sortudo, dos Irmãos Grimm e O Macaco e a Velha, de Ivo Bender

O Autor no Palco
08/11/2011 - 10:30
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

A Arte Levada a Sério
08/11/2011 - 10:30
Projeto Música Ação Inclusão da SMED Cachoeirinha - Encontro com autor

Oficina: Libertando a escrita criativa
08/11/2011 - 13:30
Através de jogos e exercícios, a oficina busca remover bloqueios e levar à produção de textos que evidenciem o potencial criativo de cada participante. Módulo 1/3

4ª Oficina de fotografia Click da Leitura
08/11/2011 - 13:30

Encontro com autor
08/11/2011 - 14:00

O Autor no Palco
08/11/2011 - 14:00
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

A Arte Levada a Sério
08/11/2011 - 14:00
Projeto Música Ação Inclusão da SMED Cachoeirinha - apresentação de coros do município

Objetos & Memórias
08/11/2011 - 14:00

Urtiga no rabo do cavalo
08/11/2011 - 14:30

Menina Bonita do Laço de Fita, de Sílvia Ortofy
08/11/2011 - 15:30

Encontro com autor
08/11/2011 - 15:30
Bate-papo sobre história

Lançamento do livro Virando a Página, escrito por estagiários da FASE no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre
08/11/2011 - 15:30

Cine SESC
Exibição do filme O pequeno Nicolau
15:30

O Autor no Palco
08/11/2011 - 15:30
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

Jornalismo Digital: audiovisual, convergência e colaboração
08/11/2011 - 15:30

Somente Números
08/11/2011 - 15:30

Fragmentos do Passado
08/11/2011 - 15:30

Doktors, contos de memória
08/11/2011 - 16:00
A história de médicos europeus que chegaram ao Rio Grande do Sul no período entre-guerras e deixaram importante legado cultural e material, auxiliando no desenvolvimento da medicina no estado

Oficina: Introdução à arte de escrever
08/11/2011 - 16:00
Iniciação à arte da escrita, visando despertar o processo criativo e transmitir técnicas de aperfeiçoamento. Módulo 2/3

A Arte Levada a Sério
08/11/2011 - 16:00
Projeto Música Ação Inclusão da SMED Cachoeirinha - Encontro com autor

A garça em branco e preto
08/11/2011 - 16:00
Antologia de Prosa e Verso da Segurança Pública
08/11/2011 - 16:00

Bens Culturais - Temas contemporâneos
08/11/2011 - 16:30
Gestão e políticas culturais, direitos de autor e bens culturais

Oficina: Haikais - imagens poéticas de Porto Alegre
08/11/2011 - 16:30
A produção de haikais a partir de imagens de Porto Alegre. Módulo 2/2

Por que não agora?//Fica ficando
08/11/2011 - 16:30

Educação dos Sentimentos - O caminho das virtudes
08/11/2011 - 16:30

Oficina: Higienização de acervo bibliográfico
08/11/2011 - 17:00
Higienização básica de acervo bibliográfico, dicas de conservação e cuidados básicos com os livros e acervos em papel

Doktors, Contos de Memória
08/11/2011 - 17:30

Teatros da história
08/11/2011 - 18:00
Análise do teatro como elemento historiográfico e artístico

Heine, Hein?
08/11/2011 - 18:00
Aula-recital sobre a vida e obra de Heinrich Heine

Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo
08/11/2011 - 18:00

360 graus - Inventário astrológico de Caio Fernando Abreu
08/11/2011 - 18:30
Presença da astrologia na obra do escritor, seu mapa astral e leituras de textos e cartas de Caio F.

Oficina: Tradução Literária, um mal necessário
08/11/2011 - 18:30
Como dizia Borges, os livros intraduzíveis não tem importância. Módulo 2/3

Bens Culturais: Temas Contemporâneos
08/11/2011 - 18:30

Presença de Henri Loevenbruck
08/11/2011 - 19:00
Traduzido para mais de 15 idiomas, autor francês fala sobre thrillers, romances de aventura e fantasia e música

Oficina do livro - O livro passo a passo
08/11/2011 - 19:00
Dicas e orientações para produção de um livro. Módulo 2/3

Cine Santander Cultural
08/11/2011 - 19:00
Sessão Comentada

3º Seminário AEILIJ - Por um espaço especial para a literatura na escola
08/11/2011 - 19:00
Bibliotecas escolares, teoria e prática irradiando leitores e leituras - A leitura dentro e fora da escola

Sessão de Autógrafos da Escola Leonardo da Vinci Beta - Porto Alegre
08/11/2011 - 19:00

Conversas Ilustradas
08/11/2011 - 19:00

Encontro com o Professor Vol.6
08/11/2011 - 19:30

Memórias do Anonymus Gourmet
08/11/2011 - 19:30

Chegaram os Americanos
08/11/2011 - 19:30

Um pequeno rio não corre para o mar
08/11/2011 - 19:30

J.Guinsburg, A Cena em aula - Itinerário de um Professor em Devir
08/11/2011 - 19:30

Retalhos da Vida
08/11/2011 - 19:30

Cordão da Saideira: Exorcismos urbanos - Histórias da cidade oculta
08/11/2011 - 20:00
Descubra antilugares, conheça histórias e participe de um novo mapeamento das cidades.
Canja-trilha da banda Dingo Bells

Sarau literário musical com Marlon de Almeida e Cláudio Levitan
08/11/2011 - 20:00

Fonte:
http://www.feiradolivro-poa.com.br/

domingo, 6 de novembro de 2011

Nemésio Prata Crisóstomo (Trova Ecológica 41)

Carlos Drummond de Andrade (Conselhos de um Velho Apaixonado)


Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.

Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.

Se o 1º e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Algo do céu te mandou um presente divino : O AMOR.

Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e,em troca, receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas Lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida.

Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado... Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...

Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado... Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela...

Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida. Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente. É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais.

Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR !!! ame muito..... muitíssimo....... Beija alguém de quem gostas quando receberes esta mensagem, mesmo que seja em pensamento.

(Assim seja !!!)

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes VI)


BELA

esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfêmia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé,
engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.

BOCA

Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro que ris de mim,
no milímetro que nos separa,
cabem todos os abismos.

Boca: se meu desejo
é impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inútil.

Boca amarga pois impossível,
doce boca (não provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade.

BOITEMPO

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

BOLERO


Segure minha mão
com firmeza,
mas com carinho.

Olhe nos meus olhos
bem fundo
enquanto eu te olho
no fundo dos seus olhos.

Enxergue minha alma
enquanto traduzo seus sonhos
e deixe que a gente flutue
bem juntos
em uma só energia.

Vamos dançar juntos
como se voássemos
em uma nuvem exclusiva
toda nossa.

E enquanto dançamos,
eu te beijo
e você me beija
e a essa altura
já não sou eu, nem você.
Somos nós dois, em um apenas.
Dois seres, dois corpos,
um sentimento,
uma dança,
uma alma única.

BRINQUEDOS PARA HOMENS


Embora eu seja adulto,
não me seduzem os brinquedos eletrônicos
que a moda, irônica, me oferece.
E excogito:
Que brinquedo inventar para o adulto,
privativo dele, sangue e riso dele,
brinquedo desenganado mas eficiente?
Tenho de inventar o meu brinquedo,
mola saltando no meu íntimo,
alegria gerada por mim mesmo,
e fácil, fluida, pluma,
pétala.

Sem o pedir às máquinas e aos deuses,
que cada um invente o seu brinquedo.

CASO DO VESTIDO


Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.
O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.
Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!
Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.
Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,
se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,
chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,
me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,
mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.
Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,
beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.
Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,
me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,
que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...
Nossa mãe, po que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.
Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.
Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.
Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.
E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.
Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.
Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,
só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.
Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.
Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.
O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,
mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.
Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.
Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.
Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,
visitei vossos parentes,
não comia, não falava,
tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.
Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca.
perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce.
minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram.
minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.
Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.
Um dia a dona soberba
me apareceu já sem nada,
pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.
Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,
que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,
última peça de luxo
que guardei como lembrança
daquele dia de cobra,
da maior humilhação.
Eu não tinha amor ele,
ao depois amor pegou.
Mas então ele enjoado
confessou que só gostava
de mim como eu era dantes,
Me joguei a suas plantas,
fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,
me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,
me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,
bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,
dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.
Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito
de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.
Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.
Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?
quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?
quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?
quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?
Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.
Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.
Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada
vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,
mal reparou no vestido
e disse apenas : Mulher,
põe mais um prato na mesa,
Eu fiz, ele se assentou,
comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,
comia meio de lado
e nem estava mais velho.
O barulho da comida
na boca, me acalentava,
me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito
de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.
Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

Simone Athayde (Encontro com o Contador de Histórias)


(trecho do livro O Aprendiz de Tiradentes)

Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, 1782

Ainda não eram sete horas da manhã e a rua já estava movimentada. Havia chovido a noite anterior e, por isso, a cerração que descia dos montes íngremes e do pontiagudo Itacolomi, que rodeavam a cidade de Vila Rica, enchia o ar de uma umidade fria, que estremecia a pele mal coberta do rapazinho.

Como fazia há três dias, ele colocou uma pedra grande que achara ali mesmo, na calçada, abaixo da janela e, subindo na pedra, deixou-se ficar espiando o trabalho do cirurgião. Só o cabelo claro, a testa e os olhos miúdos se alinhavam por cima da janela e, mesmo assim, porque se esforçava para equilibrar-se nas pontas dos pés. Saía dali somente quando as pernas ficavam dormentes ou quando as costas exigiam um descanso.

Às vezes, o garoto notava que o tira-dentes olhava em direção à janela; então, ele escondia-se rapidamente. Porém, naquele dia, olhava desavisado para os detalhes da sala que servia de consultório e demorou a perceber que o homem o encarava com feição dura. Desceu de seu pedestal improvisado e resolveu ir embora.

Quando estava passando à frente da porta do cirurgião, onde algumas pessoas esperavam por falta de espaço dentro da casa, um homem negro, que possuía o lado direito do rosto deformado, o segurou pelo braço. O rapaz já o havia visto antes, mas isso não impediu que levasse um enorme susto. Pensou que o tal homem fosse lhe dar uma bronca ou lhe bater por ordem do cirurgião. Tentou soltar o braço da mão grande e pesada que, sem nenhum esforço, o mantinha preso. O jovem começava a ficar apavorado, ensaiava já pedir ajuda, quando o escravo abriu um sorriso torto, afrouxou um pouco o braço magro e perguntou:

— Você conhece meu patrão?

— O cirurgião?

— Sim, ele mesmo – disse o homem, com toda pompa, enchendo o ar com sua voz forte.

— Escute, eu só vim aqui porque gosto de ver seu patrão trabalhar. Não estava fazendo nada de errado.

Como se o homem não tivesse ouvido o que o garoto dissera, falou, com ar compenetrado, quase encostando o rosto cheio de marcas horríveis perto do dele:

— Você quer que eu conte uma história? Eu gosto de contar histórias.

Já que o escravo não o libertava, o rapazinho soube que a resposta tinha que ser "sim".

"Meu patrão, quando mais jovem, era tropeiro, vivia por essas terras, vendendo mercadorias. Em uma de suas viagens, enquanto atravessava a cidade de Minas Novas, viu um mercador castigando um de seus escravos. O homem era ruim como o demônio: já havia matado muitas pessoas...

O tropeiro não tinha nada a ver com aquilo, porque, segundo a lei, escravo não é gente, mas nem quis saber se teria problemas: parou a cavalgada, desmontou com esperteza, num pulo, e foi para cima do malvado que pisava sem dó a cara do infeliz. Socou a cara do mercador, o deixou prostrado no chão e mandou que não fizesse mais aquilo. Depois foi acudir o ferido. A cara do patrão, quando viu o estado da cara do homem, virou um pavor. Foi até o cavalo, pegou uma água curativa e, com uns trapinhos limpos que levava, começou a cuidar das feridas abertas, arreganhadas. Falou que precisavam costurar aquilo.

O mercador, que tinha o coração duro, conseguiu se levantar e chicoteou as costas do patrão. Eles começaram uma briga de socos. Era capaz de um matar o outro, se os militares não tivessem chegado. O tropeiro, abatido, olhou para o escravo, cheio de piedade, e pediu desculpas por não poder fazer a costura. Patrão não sabia que nessa vida, muitas vezes, não se faz o bem sem se pagar por isso: além de ficar uns dias preso, perdeu os cavalos e as mercadorias, um pouco por causa dos furtos, outro tanto para pagar sua liberdade. Por causa disso, moço, ele ficou falido e teve que se alistar na tropa paga.

Um dia, estava andando pela feira da cidade de Mariana, quando ouviu: "Tropeiro da água santa, tropeiro da água santa!" Mesmo vestido com a roupa de alferes, não foi difícil para o homem saber que estavam chamando por ele, porque a fama de fazedor de remédios milagrosos já havia se espalhado por esse pedaço de Minas. Quando foi procurar quem o chamava, viu um escravo amarrado a muitos outros e reconheceu, pela cara horrível, aquele que ele ajudara meses antes. O prisioneiro não podia conversar com os passantes, mas conseguiu, com esforço, dar um sorriso todo errado, e dizer, com os olhos cheios de lágrima: "obrigado".

O alferes não deu sinal nenhum de importar-se com ele. Indiferente, saiu dali caminhando mais rápido, como se quisesse fugir da figura ridícula. O cativo ficou triste, mas compreendia o homem e compreendia também, àquela altura da vida, que viver arrastado pelo mercador, entre os intervalos de tortura, seria seu destino, porque, com aquela cara e com uma perna manca, não ia conseguir mesmo ser vendido.

Mais tarde, quase na hora do sol se pôr, aparece um frei com sua roupa preta puída e começa a olhar um escravo aqui e outro acolá. Faz o mercador abrir a boca deles para mostrar os dentes, pergunta o preço de vários e acha todos muito caros. Finalmente, vê o homem deformado, aponta para ele e pergunta o preço.

O mercador teria lucro se deixasse o coitado ser levado de graça, pois pouparia a pouca comida que dava para ele. Mas a sede de dinheiro era nele uma doença: pediu uma quantia absurda. Quando viu que o padre ia embora, foi andando atrás dele, abaixando o preço, abaixando mais, até que o religioso fez uma oferta e abriu a mão com as poucas moedas que tinha. Ofereceu também orações pela alma do mercador.

Com muito esforço, o pobre conseguiu seguir o padre que andava rápido e reclamava do atraso para a missa. Quando chegaram à igreja, foram direto a um cômodo que ficava ao lado da sacristia. O lugar, uma espécie de biblioteca, era abafado e mal cheiroso, mas possuía tantas estantes e tantos livros acomodados nelas, que o cativo começou a esquecer sua situação e ficou admirando aquilo. Só depois de um tempo reparou que um homem, sentado perto da porta, esperava por eles. Era o tropeiro da água santa.

— Não sei o que pretende fazer com isso – disse o padre – mas aqui está ele, e você me deve cinco moedas.

O patrão andou até o escravo, tocou os ombros dele, sorriu e disse:

— Seu rosto não precisava ter ficado tão ruim. Dos nossos prejuízos, você ficou com a pior parte.

E virando-se para o padre:

— Cônego Vieira, traga pão e vinho para esse filho de Deus. Deixa este faminto fazer a
comunhão.

— Sacrílego!

E o padre saiu reclamando, mas foi buscar a comida.

O rapazinho, envolvido pela história e pela maneira simpática como o homem de feições medonhas a contava, não havia percebido que seu braço estava livre.

— O escravo da história é você?

— Sim, e aquele lá dentro é o homem que me salvou.

O jovem ficou calado. Tímido e ainda com medo, apesar de estar curioso para saber mais sobre o cirurgião, esperou que o escravo se distraísse e correu para longe dali.

Fonte:
Simone Athayde. O Aprendiz de Tiradentes. Disponível em http://www.simoneathayde.com.br/contemas.asp

Simone Athayde (O Aprendiz de Tiradentes)


O Aprendiz de Tiradentes é um romance histórico. O enredo trata da vida de Hélio, rapaz pobre que vai aprender o ofício de cirurgião com Tiradentes, na Vila Rica de 1782, quando começavam a fervilhar com mais ousadia ideias revolucionárias na Colônia. Sem querer, Hélio começa a testemunhar a vida e os planos de Tiradentes e de outros inconfidentes e mergulha na tragédia que disso resultaria.

A ideia de escrever O aprendiz de Tiradentes começou há muitos anos, quando li, em um jornal da classe odontológica, um artigo sobre Joaquim José da Silva Xavier.

Na minha época de criança, aprendíamos que Tiradentes foi um mártir que tentou libertar o Brasil do jugo português. A sua semelhança com Jesus impressionava, tanto a física, por causa da barba e do cabelo crescidos, quanto por seu martírio suportado com dignidade. Era bom saber que havíamos tido um grande herói.

O mito Tiradentes serviu e serve, até hoje, aos mais diversos interesses, inclusive aos literários. Mesmo que pesquisas históricas sobre a Inconfidência Mineira pretendam desmistificar esse evento e suas personagens, as lacunas produzidas pelo espaço de tempo excessivo e pela escassez de documentação da vida (e não apenas de fragmentos de vida) dos homens e mulheres que participaram desse episódio não poderão ser totalmente preenchidas. Sempre haverá um "se", novas suposições e contradições sobre essa matéria.

É graças às lacunas da História que o ficcionista pode usar a fantasia para criar a sua história, que pode ter, ou não, maior ou menor conexão com a "realidade". João Pinto Furtado, em seu livro Manto de Penélope, história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9, diz: "a representação artística não tem, nem deve ter, os mesmos compromissos com a objetividade da historiografia".

Como já disse antes, neste livro trato da história de Hélio, um personagem fictício que teria conhecido Tiradentes e com ele convivido. Além dele, são fictícios Anna, Joana, Tempestade, Tonho, o pequeno Joaquim e outros personagens secundários. Todos os demais existiram realmente.

Mesmo que a versão que eu apresente dessas personalidades e da Inconfidência Mineira seja romanceada, ou seja, mesmo que eu tenha trabalhado a História com a liberdade que a literatura oferece, devo esclarecer que tentei, a partir de extensa pesquisa em diversos livros e fontes documentais, descobrir e apresentar ao leitor a versão mais coerente que eu conseguisse. Apesar de ter criado personagens e situações fictícios, o pano de fundo histórico dará aos leitores uma ideia de como e por que surgiram as ideias revolucionárias, qual o papel dos inconfidentes considerados líderes e quais as relações entre eles e o governo português.

Desse modo, será comum que o leitor se depare com frases que foram ditas realmente; com cenas inspiradas em outras descritas nas Cartas Chilenas ou em historiografias sobre a Inconfidência; com a transcrição, para o romance, de partes de alguns poemas de Tomás Antônio Gonzaga e de documentos da época. São exemplos disso: a descrição física e psicológica que faço de Tiradentes e de outras personagens, baseadas em pistas históricas, as várias "fanfarronices" do governador Cunha Menezes, também narradas nas Cartas Chilenas; o primeiro encontro, descrito por Lima Jr., de Gonzaga com Maria Dorotéia, que teria acontecido graças a um ferimento no dedo da jovem e que a Lira XX da parte primeira de Marília de Dirceu mostra imagem parecida; a cena da velha que vê a sorte no copo com a clara de ovo, que aparece nesta mesma obra; e o diálogo entre Joaquim da Maia e Thomas Jefferson, que foi elaborado a partir do conteúdo das cartas reais escritas por eles. As datas e o transcorrer de alguns acontecimentos foram modificados para se adequarem melhor ao andamento do enredo.

Termino esta apresentação com a frase de Tobias Monteiro, para reflexão do leitor: "A gente fica a pensar se a História não será em grande parte um romance de historiadores".

Fonte:
http://www.simoneathayde.com.br/

Simone Athayde


Simone Athayde é goiana, casada e mãe de dois filhos. Formada em Odontologia, graduou-se também em Letras para aperfeiçoar-se na arte da escrita. Em sua poesia Dramática podemos perceber o amor dessa escritora pela Literatura:

“Há versos em minha garganta, sufocando-me
há prosa em meu sangue, hemoglobina literária
letras no lugar de células
há sinapses de palavras em meu cérebro
neuro-linguística
sou toda lírica, épica, narrativa
sou dramática.”

Em 2008, Simone lançou seu primeiro romance, Calipso e Ulisses, publicado pela editora Kelps, de Goiânia. Esta obra faz um diálogo com a mitologia grega para contar uma história contemporânea, a qual se desenvolve em forma de uma prosa poética. O reconhecido escritor goiano José Mendonça Teles fez o seguinte comentário sobre este romance:

“Estimada Simone, li seu livro no supetão, não tinha como parar. Cada página me atraia mais e após a leitura, ainda no calor da emoção, tentei passar-lhe um e-mail expondo todos os meus sentimentos. A narrativa envolvendo Calipso, Carlos, Ligia e Ulisses faz com o leitor ame seu livro, que tem lugar garantido na literatura brasileira. Você tem jeito para a coisa. Conte comigo, seu leitor amigo”. José Mendonça Teles. 29/03/09

Além do romance Calipso e Ulisses, atualmente Simone trabalha na finalização de um livro de contos, A ilha triste e outras histórias, e de um romance histórico, além dos livros infantis O espelho amalucado e A pescaria dos sapos, que estão em fase de ilustração.

A ilha triste e outras histórias
Editora R&F - 2010
Contos e Poemas / 97 páginas

A ilha triste e outras histórias é um livro de contos. São nove pequenas histórias que gostei muito de escrever. A minha preferida? Bom, tenho um carinho especial pelo conto O matador de árvores.

Esse conto foi escrito "mentalmente" durante uma viagem a Goiânia. Na estrada, percebi, com enorme tristeza, que uma grande faixa de mata virgem estava sendo destruída para a construção de um lago artificial que abastecerá a capital. Logo que tive uma chance, peguei papel e caneta e fiz meu manuscrito.

O matador de árvores é, portanto, meu singelo protesto contra a destruição das árvores, mas é também, sobretudo, um testamento aos homens, que ainda teimam em não ver a natureza como mãe.

Fonte:
http://www.simoneathayde.com.br/

Clevane Pessoa (A Pocã)


(À mesa, semblantes severos. Tios e tias de luto. O patriarca se fora e mal ousavam falar. Para a morte, alguns eufemismos: partir, passar para, descansar. E lá merecia o velho feroz algum descanso, pensava a adolescente retirada no meio da noite do leito morno e quase surpreendida em sua doce lascívia das mãos curiosas sob os lençóis? Ainda bem que no dia seguinte, deveria apresentar o trabalho de pesquisa sobre a Guerra do Irã (ou seria Iraque?). Quase nada pesquisara, mesmo pela Internet, pois a Pat fizera quinze anos na véspera e batera pé para a festinha na cobertura ser no mesmo dia, não no sábado. A mãe não pudera com a birra, temendo ser catalogada de atrasada, em relação à sua própria, que não ousara proibi-la ao ser comparada à da Pat, tão "in". Combinação de meninas: uma citava a mãe da outra para conseguir qualquer coisa... Cada mãe, temente de ser "out" e perder o amor da filhota mimada.

Levanta os olhos de grandes pestanas douradas, meio desfocados. Avalia os comensais. Um deles faz o mesmo e a apanha na teia de aranha que se instala entre ambos, de imediato. Ele aponta com o queixo, os demais, faz movimentos cômicos, taxando-os de chatos. Ela aquiesce mudamente, sorriso a meio, pronto para desmanchar-se se alguém a surpreendesse no mudo colóquio.

Ele apanha farinha e escreve "fofa", sobre o feijão frio. Ela devagar, lambe os lábios, coração disparado. Pat lhe dissera, com a sabedoria das mocinhas de quinze anos, que os homens ficavam maluquinhos quando viam a ponta da língua. Por isso chamavam as mulheres de gatinhas. Ele arregala mais ainda os olhos sombreados, passa as mãos pelo queixo onde espetam centenas de fios de barba. Também fora acordado no meio da noite para o enterro do avô. O telefone vibrara logo após uma "petit mort". Seqüente a um grande gozo.

Subitamente, deixa o sapato do pé direito cair, sem alarde algum. Mocassim fácil de tirar. Estende a perna e deixa o pé descansar sobre as coxas úmidas da adolescente. Esbarra com calças jeans. Ela estremece. Ele escreve com a farinha: "Tira". A garota o interroga com o olhar. Escreve então, da mesma farinheira: Como?

O moço ri. Apanha uma pokã. Descasca-a sem pressa. Pega dois gomos e mostra-os com calma à quase menina. Entreabre-os. Coloca entre eles, o polegar. A garota estremece de prazer. O coração parece que desceu e pulsa nela, lá em baixo, entre os gomos túmidos.

Tenta, sob a toalha de linho, imensa, fazer o mínimo possível de gestos, muito devagar, vai desabotoando os botões de metal. A calça apenas cobre o púbis. Consegue ir levantando as nádegas. Puxa as pernas da calça. Noite abafada na sala de fazenda, sem ventiladores. Acomoda o pé invasor. Segura-o como se isso bastasse para impedir um abuso maior. Mas tem vontade de acariciar o pé, um mini corpo. Quando se distrai, é tocada, qual uma corda de violão. Estremece e geme. Todos a olham, de súbito. Está vermelha. A mãe pergunta, preocupada:

— O que foi?

Ela fala baixinho, só para a inquisidora ouvir:

— Cólicas...

O pé já se recolhera. A mãe se aproxima e pergunta alto: Onde ela vai dormir? A tia mais velha conversa com outra, decidem logo e ela é convidada a ir tomar banho, antes de deitar-se. As adultas agora estão num canto, falando de absorventes, coisas de mulher. O primo primogênito apanha os gomos do desejo e os põe na boca. Todos se levantam. A empregada, ao recolher a louça, vê sobre o feijão escuro, a frase: Que pena! No quarto da donzela, sob o chuveiro, ela revê esses gomos sumarentos ao fechar os olhos. E com os olhos dos dedos, imita os dedos do sedutor.

Em pé, na varanda, ele pensa na fêmea madura que deixara à sua espera. Enquanto come os últimos gomos da dourada pokã...

(*) Forma como é grafada nas feiras livres e nos mercados do interior do estado de S. Paulo a tangerina poncã.

Fonte:
http://www.clevanepessoa.net/blog.php

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 387)


Uma Trova Nacional

Existe tanta união
entre os teus sonhos e os meus,
que só não és meu irmão
por um descuido de Deus!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Uma Trova Potiguar

Auroras da juventude
o tempo de mim levou;
quis repeti-las, não pude,
a velhice não deixou.
–FRANCISCO MAIA/RN–

Uma Trova Premiada

2007 - São Paulo/SP
Tema: TEMPO - Venc.

Tempo, em meu rosto conjugas
os verbos “ser” e “sonhar”:
um na verdade das rugas;
outro, no brilho do olhar.
–ANTÔNIO DE OLIVEIRA/SP–

Uma Trova de Ademar


...E Suas Trovas Ficaram

Eu ...você ...as confidências...
o amor que intenso cresceu
e o resto são reticências
que a própria vida escreveu...
–LUIZ OTÁVIO/RJ–

Simplesmente Poesia

Vela Branca
–ADELMAR TAVARES/PE–

Vela branca, vela branca,
que vais lá longe... no mar...
quem me dera, vela branca,
que me quisesses levar
para tão longe... tão longe,
que eu não pudesse voltar...

Mas uma vez, vela branca,
que não me queres levar,
para tão longe... tão longe...
que eu não pudesse voltar,
leva-me a saudade dela
para o mais fundo do mar.

Estrofe do Dia

Um leirão de cebola numa horta
onde esterco de gado aduba a terra
uma casa encostada ao pé da serra
construída de barro e vara torta
uma estopa vazia fecha a porta
mas me orgulho em dizer: fui eu que fiz,
uma cruz desenhada com um giz
prá poder espantar assombração
eu não troco um pedaço do sertão
pelo resto das terras do país.
–ONILDO BARBOSA/PB–

Soneto do Dia

A Intrusa
–MIGUEL RUSSOWSKY/SC–

Teimava em me seguir, eu bem que percebia...
Tinha modos gentis. Simpática (não bela).
Não queria assustar-me, andava com cautela,
diferente do andar da grande maioria.

Eu sempre recusei lhe fazer companhia,
embora esta mulher me fosse sentinela
em horas de descanso. Eu não gostava dela
pela insistência atroz com que me perseguia.

Seu nome? Não sabia. Apelidei-a a Intrusa.
Eu lhe fechava a porta, exibindo a recusa
de comigo a reter na partilha do lar.

No espelho, certo dia, atrás de mim postou-se...
Quis irritar-me? Sim. Mas disse com voz doce:
- Eu me chamo Velhice e vim para ficar.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. S. Ferreira (Criança, Não Deixes o Verde da Terra Morrer)


Criança, não deixes o verde
Da terra morrer.
Neste solo de aço.
Há sempre um espaço

Para se plantar e colher.
Quando vires uma árvore desfolhada
Fenecendo à beira do caminho,
Trata-a com amor e carinho,

Porque ela é parte da tua vida,
Da natureza, do teu ser.
Quando uma árvore é decepada

É a natureza que se enluta,
É parte do teu ser que se amputa.
É mais uma vida que deixa de crescer.

Fonte:
Helóisa Crespo (organização e programação visual). Ciranda “Criança em Versos”. Campos dos Goytacazes/RJ: 2011. Livreto enviado pela autora

Júlia Lopes de Almeida (O Último Sonho da Rainha)


"There is no one near me to call me Victoria, now". Em toda a extensa biografia da rainha da Inglaterra, a bem amada, que os jornais do mundo inteiro publicaram na ocasião da sua morte, em lamentosa necrologia, nenhuma frase há talvez que mais justamente revele a mulher, do que esta, com que ela chorou a sua viuvez:

— "Agora já não tenho ninguém a meu lado para me chamar Victória."

O seu nome, isolado de toda a cerimônia, proferido de igual para igual, nunca mais soaria aos seus ouvidos, na intimidade franca do amor.

A morte igualitária e justa selava na boca do príncipe o nome da mulher, ficando só para a Vida o da majestade.

Rainha! Não ser mais que rainha, é pouco. Mãe? Não basta. Filhos e súditos têm pela soberana prestigiosa o mesmo respeito incondicional, a mesma obediência passiva.

Ela sente, na sua viuvez, não só a falta do amigo, mas a da sua própria personalidade humana.

Havia uma voz só, entre tantíssimas vozes, que a tratava como a companheira de jornada; a confidente, a alma irmã, a criatura filha de Deus, sujeita ao erro, domável ao conselho, com as qualidades e os defeitos inerentes aos mais; havia só uma voz que lhe lembrava que ela era uma mulher como as outras mulheres, afetiva, nascida para o gozo e para o sofrimento, e que o seu papel na Vida, saía todo do coração.

Dizer somente: Victória, era o mesmo que significar, aos seus ouvidos aturdidos de honrarias e lisonjas confusas: "Para mim tu és mais do que a soberana, apoderosa Rainha da Inglaterra e Imperatriz de todas as Índias; tu és a Mulher, criada à minha semelhança, para companheira da minha existência, bonança dos meus dias, e benção da minha prole. Nasceste para mim; somos iguais, amemo-nos!"

Percebo a sensação de isolamento que a rainha havia de sentir, quando, olhando em torno, só visse cabeças curvadas diante dos seus olhos interrogativos, e joelhos vergados nos degraus do seu trono.

A única voz que a tratava por tu, extinguira-se; e só então ela percebeu como essa expressão de igualdade e de intimidade é doce...

Todas as suas confidencias se voltam para o seu diário.

É preciso abrir uma válvula ao sentimento, — e escreve. É também a única maneira que ela tem de se fazer lembrar a si mesma que ela é — Victória — a mulher de carne e osso, da mesma espécie, portanto, que as pobres camponesas que andam pelos campos ceifando, e vão à tarde para as pontes e as cercas tagarelar com os noivos. Este livro é como que uma janela aberta numa prisão.

Eu gostaria de lê-lo, certa de que ele será um excelente estudo de uma alma, revelação de uma tortura desconhecida e nobre, cuja interpretação é esta: a ânsia de uma rainha por ser antes, e mais que tudo — a Mulher.

Em toda a sua biografia só entrevi, talvez mal, um traço ligeiro de vaidade. Sua Majestade Britânica, oferecendo o seu jornal ao grande romancista Dickens escreveu:

"Como o dom de um dos mais humildes escritores, ao maior de todos."

Talvez que este livro espontâneo, espelho de uma alma em toda a sua intimidade, dê direito ao titulo que a rainha se arrogou.

Que observações finas e curiosas teriam essas páginas comentadoras de atos e de personagens da Corte, se a mão da soberana, trocando o cetro pela pena, a empunhasse, não como derivativo de saudade amarga, mas como um instrumento que tudo revolve em busca da Verdade!

O livro de uma rainha tem de ser nublado pelos preconceitos e as conveniências. Muitas linhas teriam sido riscadas, quando, deixando de ser álbum íntimo, esse confidente discreto passou a ser livro publicado.

Todavia, o que naturalmente o torna encantador, é a sua essência, a expansão ingênua da felicidade ao alcance de qualquer...

Talvez tivesse sido esse o segredo da popularidade da rainha. O povo ama os simples e reverencia, sobre todas, as qualidades do coração.

Não tardará que essas virtudes decantadas, atravessem contos ingleses e canções idílicas, como embrião de formosas e futuras lendas. O tocante episódio da oferta de um brinquedo a filha de um camponês, anos depois de feita a promessa, interrompida por viagens e altas preocupações de estado, servirá de assunto magnífico para histórias do Natal, em que as crianças que hão de vir, antes de conhecer a rainha da História, comecem a amar a mulher do conto...

Assim, a rainha bem amada, surgirá em várias páginas, conduzida pelas mãos daquele a quem ela se associou, chamando-se escritora.

Eu quisera, sempre a exigência da perfeição! Que, para a apoteose de tão clara e amorosa existência, a velha Rainha da Inglaterra e Imperatriz das Índias, soerguendo-se no leito de morte, com o esforço supremo da sua vontade soberana, tivesse pedido aos seus ministros e ao novo rei, seu filho, a terminação da guerra sul-africana.

Dizem que do mal desta guerra se finou a velha senhora. Quero crê-lo; e só assim concebo a suavidade da sua morte.

A dor, que não pôde ser expressa, por conveniências e por orgulhos de Estado, e que ficou abafada no último suspiro, deve vibrar agora, como um remorso na consciência dos que a provocaram.

Triste, o brilhante destino dos reis, que nem os deixa morrer como os demais cristãos: perdoando!

A alma da rainha-imperatriz muito se mostrara ao seu povo para que ele não a conhecesse. Com a percepção aguda do instinto, ele lê nela como em um livro: por isso afirma que era infinito o desgosto da sua soberana ao fechar os olhos para o último sono.

Era infinito o seu desgosto; mas, se em vez de oitenta anos a Rainha Victoria tivesse quarenta, teria sabido morrer de outra maneira.

Então, o rumor surdo das armas em combate, descansando no solo ainda fumegante da batalha, soaria mais alto que todas as orações e que todos os sinos das abadias e das catedrais. Esse devia ter sido o último sonho da Rainha.

Advinhando-o, todo o seu povo se cobre de luto sincero, os jardins do Reino despojam-se das suas flores, e as viúvas e os órfãos não a amaldiçoam.

As virtudes altíssimas do seu espírito e do seu caráter são mencionadas em todas as línguas da Terra; o telégrafo espalha o seu nome pelo mundo inteiro, e há em todo este movimento um respeito singular e profundo pela mulher cujo conselho, cuja prudência e cujo acerto, desenvolveram, ampararam e enriqueceram a mais poderosa nação do Globo, e que afinal, morre calada e triste, por não poder realizar o seu último sonho!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Tarcísio Fernandes (Redação de uma Criança)


I

Sou o sonho e a ansiedade
e o projeto de um casal
que, de um ato sexual,
me tornou realidade,
prova de fertilidade,
o prazer da gestação,
nove meses de tensão,
uma vida despontando,
ou um que vem chegando
numa nova geração..

II

Sou assim como o começo
de uma longa caminhada,
como porta escancarada
ou produto sem ter preço;
como início de endereço
de uma rua em projeção;
como alguém, na multidão,
procurando se encontrar;
como a base ou um pilar
de algum prédio em construção.

III

Tenho um quê de dependência,
apesar de impetuoso.
Vez por outra sou teimoso,
mas me sinto obediência.
Sou um ser que tem carência
e também sou incompleto;
nem ao menos fiz projeto
pra viver o meu futuro;
também sou meio inseguro,
Sonhador e irrequieto.

IV

Não dou bolas para azar,
só viver já me conforta;
e se alguém me "abre uma porta",
aproveito para entrar.
Explorando esse lugar,
centralizo as atenções,
e, me achando com razões,
vou de encontro à disciplina,
pois não gosto de rotina
nem tampouco de padrões.

V

Faço birra se o que eu vejo
para mim, chama a atenção;
não aceito ouvir um não
para aquilo que eu desejo.
Aproveito todo ensejo
para usar a minha idade.
Tudo, em mim, é só verdade;
só o agora me interessa;
pra viver não tenho pressa,
quero, apenas, liberdade.

VI

Nasço, cresço, vivo, morro,
vejo, quero, peço, imploro,
subo, desço, caio e choro,
canto, rio, dou esporro.
Pulo, brinco, jogo, corro,
paro, sento e me levanto.
Meio sonso, meio santo,
entro, saio, vou pro meio,
obedeço ou esperneio
me amuando num recanto.

VII

Tento me virar sozinho
para ver se a vida ensina;
e, se alguém me recrimina,
põe mais pedra em meu caminho.
Se, ao contrário, dá carinho,
ao invés de repressão
e me ajuda, dando a mão,
adquiro confiança
e me sinto a esperança
desse velho mundo cão.

VIII

Quero ser eu de verdade;
quero um não sem lero-lero;
quero ter tudo que eu quero;
quero usar minha vontade.
Quero minha liberdade;
quero dar mais confiança;
quero ser a esperança;
quero ser bem educado;
quero amar e ser amado;
quero, apenas, ser criança.

Fonte:
Helóisa Crespo (organização e programação visual). Ciranda “Criança em Versos”. Campos dos Goytacazes/RJ: 2011. Livreto enviado pela autora