quinta-feira, 4 de junho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (As Mentiras que as Mulheres Gostam de Ouvir)


– SANTINHA, MEU BEM, EU TE AMO. NÃO POSSO viver sem ti, sem teu amor ao meu lado. Creia, no que agora direi: nunca te trai. Nunca! Se o fizesse, estaria enganando, não a mim, mas a Deus.

– Me ama tanto assim?

– Amo!

– Muito?

– Demais. Tu és o amor da minha vida.

– Jura?

– Por tudo quanto é mais sagrado. Decididamente não posso viver sem ti.

– E se eu morresse?

– Com certeza eu sucumbiria de profundo desgosto. Dois caixões seriam enterrados num mesmo dia e hora.

– Você não sente uma quedinha por aquele seu antigo caso?

– Santinha, entenda. Só tenho olhos para ti. Tenho ciúmes até das roupas que usas. Quer saber de um detalhe? Quando te vejo conversando com outros caras, principalmente os mais jovens que eu, penso comigo: “será que ela está querendo me trocar?”. Decididamente serás a última.

– E você o meu derradeiro. A propósito: teria coragem de me bater?

– Nem com uma flor.

– Já beijou outra mulher, ou melhor, outra boca, depois que está comigo?

– Só minha mãe e minhas irmãs. E, mesmo assim, no rosto.

– Nenhum selinho com uma amiguinha mais safadinha?

– Tu és e serás eternamente a minha eterna safadinha. Lembra sempre disso.

– E se uma vagabunda lhe desse bola, no meio da rua, o que faria?

– Chutava...

–... Pra gol?

– Claro que não, Santinha. Tu és, repito, a minha princesa. Com certeza, chutaria, mas para escanteio. O dia que tu faltares, juro, morrerei de tédio. De solidão. De tristeza. Deixarei de comer, de beber... Serei capaz de chegar aos extremos: por fim à vida. Meu amor, por ti, é eterno. Quando estou contigo, a meu lado, “estou nos braços da paz”. Lembra desses versos? É de uma música interpretada pela Maria Bethânia.

– E quando brigamos?

– Mais me apaixono por ti...

–... Me acha chata?

– Chata é a mulher do vizinho.

– Eu engordei além da conta?

– Qual o quê! Mesmo rechonchudinha não te troco por nenhuma magrinha.

– Então, estou certa. Você me acha uma baleia? Eu sabia...

–... Claro que não, minha deusa. Olha que corpinho de sereia, que sorriso, que olhar, que meiguice, que voz suave e macia... Tu és a mulher mais bonita deste mundo. Aliás, a única.

– Só deste?

– E de outros mais que por acaso existirem. Ponha na tua cabeça o que vou dizer e grava bem: Santinha, tu és a paixão da minha vida. O meu sol, o meu vento, o meu tudo... Resumindo: tu és a mulher dos meus sonhos. Sem tua presença constante ao meu lado, sou vazio profundo, caminho sem volta, dia sem sol... Noite sem estrelas...

– Nossa, como você está romântico!

– É o meu amor por ti que me faz ser assim, um eterno carente. Apaixonado, embasbacado. Confesso, amada minha. Fiquei, ou melhor, não fiquei: sou cativo de tua beleza.

– Vem cá. Me beija...

– Não havia reparado em teus cabelos. Puxa! estás maravilhosa, eu diria divina...

Risos.

– Percebi que hoje você fez a barba.

– Só para não te arranhar.

– Cortou o bigode...

–... Para veres melhor meu sorriso estampado e nunca esquecer que esse sorriso só existe porque tu estás aqui. Vamos fazer amor?

– Agora?

– Já.

– Não tomei banho. Eu estava na cozinha fazendo seu papazinho...

–... Que diferença isso faz? Te quero do jeito que estás. Sujinha, suada, cheirando a cadelinha molhada, os pés com chulé...

– Só um banho!

– Depois. Temos a noite toda...

– Preciso lavar a...

–... Nada disso. Quero teu corpo agora e pronto. Me transformarei no teu cachorrinho. Vou abanar meu rabinho, e, em seguida, te lamber da raiz dos cabelos aos dedos dos sapatos. Miau!

– Espere. Isso que você fez aí não é a voz de um cãozinho, mas de um gato. Em qual dos dois vai se transformar, afinal?

– Em ambos. É pra sentires como sou louco e como é grande, grande, muito grande o meu amor por ti.

– Meu Roberto!...

–... Minha Isolina!...

–... O quê? Quem é essa Isolina...?

–... Eu... Eu... Eu...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 282


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXX


Carlos Drummond de Andrade (Na Escola)


Democrata é dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que não vou contar, e mesmo o nome de dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.

Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:

— Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser?

— Pode — a garotada respondeu em coro.

— Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um pensa. Está bem?

— Está — respondeu o coro, interessadíssimo.

— Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola?

— Acho que não deve — respondeu, baixando os olhos.

— Por quê?

— Porque é melhor não usar.

— E por que é melhor não usar?

— Porque minissaia é muito mais bacana.

— Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.

— Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?

— Mas aqui dentro é outro lugar.

— É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara.

— Um a favor. E você, Aparecida?

— Posso ser sincera, professora?

— Pode, não. Deve.

— Eu, se fosse a senhora, não usava.

— Por quê?

— O quadril, sabe? Fica meio saliente…

— Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo.

— Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho.

— Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça?

— A favor 100%.

— Você, Peter?

— Pra mim tanto faz.

— Não tem preferência?

— Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.

— Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter; nem contra nem a favor, antes pelo contrário.

Assim iam todos votando, como se escolhessem o presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspecção. A vez de Rinalda:

— Ah, cada um na sua.

— Na sua, como?

— Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende?

— Explique melhor.

— Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de mídi, de máxi, de short, venho. Uniforme é papo furado.

— Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?

— Evidente. Cada um curtindo à vontade.

— Legal! — exclamou Jorgito. — Uniforme está superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.

— Não pode — refutou Gilberto. — Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.

Respeita, não respeita, a discussão esquentou, dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de história do Brasil.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 15


O OLHAR DELA...

MOTE:
Vou navegar estes mares,
de calmaria e procela
para ver se entre os olhares
encontro aquele olhar dela.

Clênio Borges
Porto Alegre/RS


GLOSA:
VOU NAVEGAR ESTES MARES,
vou navegar na emoção,
quero escutar os cantares
do meu próprio coração!

Nesse meu mar de esperança,
DE CALMARIA E PROCELA
é forte e doce a lembrança
que chega num barco à vela!

Por meios particulares
eu me ponho a procurar,
PARA VER SE ENTRE OS OLHARES
está quem quero enxergar!

Com amor e com ternura,
termino a nossa novela,
pois no fim desta procura,
ENCONTRO AQUELE OLHAR DELA.
****************************************

FORTUNA DO PERDÃO

MOTE:

Bendito seja o sujeito
que traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!

Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG


GLOSA:
BENDITO SEJA O SUJEITO
que nunca guarda rancor,
é sinal de que ele é feito
só de amor, de muito amor!

Esse ser, mesmo tristonho,
QUE TRAÍDO PELO IRMÃO,
não destrói o grande sonho
que mora em seu coração!

Continua satisfeito,
pajeando a felicidade,
TIRA DO FUNDO DO PEITO
uma rosa de amizade!

A amizade verdadeira
é feita de doação,
e enriquece a terra inteira
A FORTUNA DO PERDÃO!
****************************************

PERFUME DELA

MOTE:

Ela voltou... penso... enfim!
Mas, a brisa me revela,
são as rosas do jardim,
usando o perfume dela.

Lila Ricciardi Fontes
São Paulo/SP


GLOSA:

ELA VOLTOU... PENSO... ENFIM!
Meu coração pulsa forte,
quase nem cabendo em mim,
sorrindo com tanta sorte!

Penso, ser o seu perfume,
MAS, A BRISA ME REVELA,
quase chorando de ciúme,
entrando pela janela...

Chega ao fim o meu festim,
pois os perfumes que eu sinto,
SÃO AS ROSAS DO JARDIM,
mais as mil flores de absinto!

Bem fundo, em meu coração,
esse perfume se anela,
são lembranças de emoção,
USANDO O PERFUME DELA.
****************************************

RENÚNCIA

MOTE:

Se a renúncia em seus degredos,
meus sonhos cobre de pó,
dou-me as mãos... enlaço os dedos
e finjo não estar só...

Otávio Venturelli
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:

SE A RENÚNCIA EM SEUS DEGREDOS,
me faz sofrer e chorar,
enrolado nos meus medos
eu me incito a continuar!

Se essa renúncia enfadonha,
MEUS SONHOS COBRE DE PÓ,
minha alma, então, já nem sonha
uma tristeza sem dó!

Mas eu tenho os meus segredos,
segredos do coração:
DOU-ME AS MÃOS... ENLAÇO OS DEDOS
e invento nova emoção!

Por precisar de alegria,
do pranto, eu aperto o nó,
e me faço companhia,
E FINJO NÃO ESTAR SÓ…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Contos e Lendas do Brasil (Gongo-Velho)


— É de ouvido que vou contar, pois essas coisas não são do meu tempo. Ouvia-as de minha mãe um sem número de vezes, em serões como este. — disse o velho africano.

Gongo-Velho — prosseguiu — se chamava antigamente um pequeno córrego que ia desaguar no Rio das Mortes. Agora, tem outro nome que o coração manda calar para que não se saiba ao certo o lugar onde se desenrolou este drama, onde tanta lágrima foi vertida. Esse córrego passava pelas terras de dois irmãos que tinham chegado do Reino com uma cadeia de escravos e ali se estabeleceram, numa existência tão solitária e recolhida que não parecia de criaturas humanas.

Havia multo ouro na redondeza e Gongo-Velho ficou-se chamando toda a terra dos irmãos recém-chegados. Foi de muito trabalho os anos que se seguiram. Minerava-se no Gongo-Velho com verdadeira fúria de amontoar tesouros. Nunca ninguém soube da vida daqueles dois portugueses, também nunca se soube que eles se metessem com a vida dos outros.     Apenas cá fora, aquém dos muros do retiro, que era um verdadeiro presídio, transpiravam vagos rumores de cenas horrorosas, narrações de bárbaros castigos a que repugnava ao mais embrutecido ouvinte dar inteiro crédito. Com certeza — pensava-se — havia muito exagero nessas descrições.

Quando algum desgraçado conseguia, iludindo a severa vigilância dos algozes, evadir-se, ia pedir asilo em paragens bem distantes daqueles vales, cujas quebradas repetiam os ecos dos soluços de agonia dos seus irmãos de infortúnio.

Os dois moços envelheceram. Tinham um capataz de confiança, português como eles, que conduzia a tropa carregada de ouro a Vila Rica.    Ninguém mais saia do retiro e ninguém mais entrava a não ser o capataz, quando voltava, trazendo as mais das vezes, novo contingente de pretos para a escravatura.    No entanto, até ali o Gongo-Velho não tinha estória.

Já estavam bem velhos os dois irmãos quando se deram os acontecimentos por que se tornaram famosas as lavras do Gongo-Velho.

O principio do episódio ninguém sabe ao certo,    pois não sobrou um só de tantos para contá-lo ao mundo.    O que se sabe é que uma vez, à noitinha, os cativos se rebelaram e, num sítio afastado onde se encontravam depois do trabalho do dia, atacaram um dos senhores, aquele que costumava feitorear o serviço; atiraram-no por terra e lhe estraçalharam o corpo.

Consumado o crime, o bando revoltoso tomou o caminho da casa e entrou pelo retiro como uma horda de selvagens, aos berros, agitando no ar a ferramenta do trabalho, a gotejar o sangue do seu senhor. O outro fazendeiro, que estava à frente da casa esperando os escravos, viu logo que se tratava de uma rebelião. E, como o irmão não aparecesse, compreendeu logo que ele tinha sido vitima da sanha dos escravos rebelados.

Então, precipitou-se para a turba ululante com os punhos cerrados e, numa explosão de palavras ásperas, conseguiu impor-se e dominar a rebelião. Diante dessa atitude inesperada os escravos submeteram-se, perdendo a liberdade que haviam conquistado por algumas horas. E, restabelecida a ordem, recolheram-se á senzala, mais parecendo uma procissão de penitentes.

No dia seguinte, os escravos foram levados pelo capataz para trabalhar num lugar que ficava do lado oposto àquele em que, na véspera, se haviam rebelado e onde deviam jazer os despojos do velho que fora assassinado.

Conta-se que o irmão, solitário e em lágrimas, dirigiu-se ao local da tragédia e recolheu os restos sangrentos do companheiro, sepultando-o numa cova aberta por suas próprias mãos.

E tudo pareceu mergulhar no esquecimento. Uma tarde, tendo chegado a gente das lavras, o senhor em pessoa foi presidir à distribuição do rancho. Chegou e foi logo dizendo:

— Não sei porque sinto na alma uma alegria tão grande... Quero que vocês todos comam à farta!

Nesse dia foi da melhor qualidade a comida que serviu.

A um canto, o capataz, com o queixo apoiado no cabo do rebenque, olhava espantado para o amo, pensando que, com certeza, ele tinha enlouquecido.

Terminado o repasto, o próprio fazendeiro, tomando ao capataz as grossas chaves que ele trazia à cinta, abriu a porta da senzala e assistiu à entrada dos escravos. Todos, um a um, homens, mulheres, velhos e crianças, elevando humildemente as mãos negras e calosas iam pedindo sunscristo, com um grunhido deformado pelo uso.

Depois que o último escravo entrou, o velho meteu na fechadura a chave ferrugenta, fechou a senzala e atirou para o terreiro as chaves restantes. Encostou uma escada, a muro maciço, de taipa, subiu até lá acima e abriu um buraco no sapé da coberta. Então, seus olhos pouco a pouco puderam ver o interior da senzala, alumiado por candeeiros de azeite, presos à parede sem reboco.

Na meia claridade do recinto, lombrigou pelo chão como um tumultuar de vermes. Em diversos pontos já iam brilhando as labaredas de pequenas fogueiras de cavacos. Mais habituada a vista, agora o fazendeiro distinguia os corpos dos escravos acomodando-se pelo chão, numa promiscuidade animalesca de homens e mulheres, velhos e crianças. Súbito, um grito lancinante quebrou o silêncio daquele sepulcro de vivos. Todos voltaram-se para o lado de um infeliz que, de um salto, tendo desdobrado a estatura hercúlea no meio da senzala, estorcia-se horrivelmente, erguendo-se ou caindo de rastros, como a procurar meter-se pelo chão a dentro.

Não demorou e outro grito se fez ouvir. Depois, novo grito igualmente espantoso. E, numa sucessão aterradora, os prisioneiros iam caindo no chão negro da senzala, bracejando numa confusão infernal. Eram centenas de fantasmas numa dança macabra, numa agonia indescritível.

Durante certo tempo, o fazendeiro, lá de cima do teto, espiando pelo buraco que fizera no sapé, teve diante dos olhos uma visão do inferno.

Dali a pouco toda aquela agitação foi amainando e só ficou um indefinível resfolegar, soluçado e trêmulo, que por sua vez diminuiu até tornar-se em sepulcral quietude, em silêncio de morte.

Sem compreender o que estava se passando, o capataz colava o ouvido à porta da senzala, ou mergulhava o olhar pelo estreito orifício da fechadura. No fundo, sentia medo de acertar com a explicação daquele mistério. Quando tudo lhe pareceu terminado, lembrou-se do fazendeiro. Subiu pela escada e foi encontrá-lo estendido na coberta, com a cabeça metida no buraco que fizera no sapé encardido pela fumaça.    Parecia inteiramente absorvido nas cenas monstruosas que se tinham passado lá embaixo, no interior escuro da senzala.

Chamou por ele. Como não tivesse resposta, chamou-o de novo. Nada. Então, sacudiu-lhe o corpo. Estava morto. Tirou-o dali. O velho apresentava os olhos esbugalhados, mas extintos. Naquele espelho embaciado, devia ter ficado sua última visão: a dança macabra de tantos homens, mulheres, velhos e crianças, envenenados e presos, que chegaram à morte ao longo de horripilantes sofrimentos.

— Façamos oração, meus camaradas, para que seja aliviado em seu penar sem fim o velho fazendeiro, cuja alma sem descanso deve andar a estas horas vagando nas proximidades daquele sitio.

E, persignando-se, voltou à primitiva postura.

Fonte:
Rodrigo Otávio. Contos de Ontem e de Hoje. RJ: Ed. Guanabara, 1932.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 281


Cláudio de Cápua (Esses Adultos)


A confirmação de mais um casamento desfeito foi o pronunciamento do divórcio por incompatibilidade de gênios. Da separação permaneceu entre o casal um único elo, uma linda menininha com menos de dezoito meses.

A jovem mulher dispensara a pensão e o auxílio, pois, alta funcionária federal, não precisava de esmolas. Queria mesmo era sua liberdade. Assim sendo, ficou feliz da vida. Ele, por sua vez, herdara a fazenda do pai, no interior, e ia pra lá a fim de administrá-la. Como bons companheiros, apertavam as mãos sem ressentimentos.

A menininha ficou com a mãe, indo morar em Santos, pois Laura para lá havia sido transferida. Daí em diante, cada um levou a vida que pediu a Deus.

Ela encontrou outro príncipe encantado, afinado com o seu jeito de ser, um professor universitário, homem bom, que logo se afeiçoou à menina, que, inocentemente, o chamava de tio Victor.

Pouco mais de dois anos decorridos, a menina ouviu de sua mãe:

- Ana Maria, vá tomar seu banho. Vista roupinha nova, hoje você vai conhecer seu pai, que chegou de viagem.

A menina, com cerca de 4 anos, chega, pela mão da babá, até o pai, que a esperava no carro estacionado em frente ao prédio. Aquele homem elegante, bronzeado, que pela primeira vez via e chamava de pai, logo a cativou. Disse-lhe ele ter vendido a fazenda no interior e que, agora, iria ficar perto da filha, morando na cidade vizinha, São Vicente. Administrava uma firma construtora.

A presença do pai passou a ser uma constante nos fins de semana e isso já durava mais de um ano. Ana Maria estava feliz, ganhava bonecas, revistas, doces e passeios. E com o passar do tempo, mais e mais se apegava ao pai.

Ocorreu-lhe uma ideia. A pessoa de quem mais gostava depois da mãe era, inegavelmente, o pai. Que tal se conseguissem dar um passeio com a mãe e o pai juntos?

Assim ficou atenta, à espera de uma brecha para concretizar seu sonho.

Num dos sábados, ao sair para o passeio, passou pela sala e ouvia a mãe ao telefone:

- É da pizzaria Micheluccio? Gostaria de encomendar uma pizza de atum para viagem. Passo ai para pegá-la por volta das dezenove horas.

Como de costume, o pai perguntou-lhe o que queria fazer.

- Eu gostaria de ir ao cinema ver o filme do Batman e, depois, comer uma pizza de champignon no Micheluccio. Essa pizzaria fica ali na Conselheiro Nébias. Eu adoro a pizza de lá!...

Após o cinema, foram à pizzaria. Saboreada a pizza, a menina, esticando o programa, pediu mais um guaraná e depois uma mouse de chocolate.

O pai observava a filha um tanto inquieta, a indagar as horas várias vezes, sem tirar os olhos da porta.

Foi quando entrou Laura. Ana Maria levantou-se e, pegando a mãe pela mão, levou-a até a mesa onde estava o pai.

- Olá, Gilberto - disse Laura. Estão se divertindo?

Gilberto levantou-se, cumprimentando-a com um aperto de mão.

Ana Maria ficou imóvel.

Laura pediu desculpas pela pressa, pegou a pizza e saiu.

- Que foi querida? A mousse não está boa?

O que Ana Maria acabara de presenciar era muito decepcionante! Fizera de tudo para apresentar seu pai à sua mãe... e eles já se conheciam, sem nunca lhe dizerem nada!

- Esses adultos!...

(Revista Santos, Arte e Cultura - Janeiro 2008)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 2


E a gente sai devagar a divagar pelos caminhos - esquinas, ribaltas, encruzilhadas - e não se dá conta de que talvez sejamos mais um autômato a estar perguntando como o OUTRO, da novela NOITE (Érico). "Quem sou ? De onde venho ? Para onde vou ? ".

Na verdade este mistério chamado vida, que ainda não conseguimos decifrar, é um enigma para o qual os seres que se dizem os inteligentes do planeta, não encontram respostas.

Como "donos", cultivam a ganância, o egoísmo, o preconceito. Armas poderosas que põem em risco a velha humanidade pelos séculos a fora.

TEMOS A EXALTAÇÃO DA BARBÁRIE.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (Poemas Avulsos) 1


A MORTE DE SAMUEL RICARDO
Para Kivitz, o temeroso da morte

Estou sentado solitário em meu sofá,
nesta sexta-feira da longa Paixão,
e ao contemplar a janela,
a luminosidade que ela deixa passar
filtrada pela diáfana cortina de linho,
penso que um dia a Morte entrará
por esta mesma janela, arrombando-a;
será talvez pela tarde, uma tardezinha
de paz e livros e solidão como esta.
Entrará epifânica, com um estrondo
de trovão, a Morte – um dragão
de escamas lindas, azuis como o céu e o mar.
Entrará arrombando os ferros,
explodindo a casa, ela a Morte,
a coisa mais desejável depois do Rei.
****************************************
 
CREPÚSCULO DOS DEUSES: RAGNARÖK

Um Dia feito da escuridão
de todos os dias
o Dia em que Odin-o-exaurido
será devorado pelo lobo Fenris,
Thor-do-trovão tombará sobre o cadáver
da serpente-sem-fim, Iormungand

Você é um dos homens
eleitos pelo deus, guerreiro?
Afie pois os dois caminhos de sua espada,
as duas asas de seu machado firme
e caia como vaga sobre o conflito:
será tudo em vão,
pois ao fim e ao cabo
como a Ordem venceria o Caos?

Mas você terá combatido,
você terá deveras combatido
e não foi afinal para isso e para este Dia,
ó boneco de pó predestinado,
que o pai Odin criou os homens?
****************************************

LAMENTO À MANEIRA ANTIQUA

Um coração de tipo e viés cigano
valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas taças de cristal
sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;
recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.
****************************************

MAR OCIDENTAL

Em meio à praça
Em meio ao mar
Espero com flores
O cortejo passar

E além (a)dentro
(d)os livros, Álcoois de Guillaume*
E Paul**, no Cemitério Marinho
Ou no Waste Land
calçando as botas de Eliot***

Meu amor acabou
E perambulo pelo cais,
Praças e mares
mercando narcóticos e livros

E em silêncio busco a Ti,
Deus maltrapilho,
Para que me ressuscite
- - - - - -
*Guillaume Apollinaire
**Paul Valéry
***T.S. Eliot

****************************************

CANTIGA DOS MOLEQUES FRUTEIROS

Pedrinho tem fome de mato,
das frutinhas que tantas dão por lá:

Cajuí, taperebá, araticum e cajá
Cambuci, guabiroba, cagaita e maracujá

Juca menino erradio
pulou a cerca do sítio,
e lá se foi, frutas a roubar:

Pindaíva, marôlo, sorvinha e biribá
saguarají, feijoa, sapoti e joá

Gustinho não poupa ninguém
nem atina se a fruta é veneno;
se tem polpa pouca
ou se nem polpa tem,
a de vez ele come,
a passada também:

Mangaba, guriri, tucum e butiá
uarutama, bacupari, marmelinho e ingá

Renato é um bicho-do-mato:
chafurda nas matas,
rompe pelos florestins
sabe o tempo de cada fruta,
e deita sozinho a fazer seus festins:

Babaçu, inajá, catolé e bacuri
sapota, cupuaçu, araçá e cacauí

Fernandinho é moleque mateiro:
gosta é de pelar pé de árvore
no pomar da avó.
É fruta que não acaba tão cedo
e lá vai ele, arteiro, trepar no arvoredo:

Grumixama, cubíu, marmixa e abiu
guaburiti, pitangatuba, murtinha e camu-camu

Saltam riacho, cerca de roça,
mata fechada e o que se lhes dá;
Comem de tudo e tudo sem pressa,
sorvendo o bom doce de tudo o que há:

Acumã, pequiá, jameri e jaracatiá
aboirana, curriola, fruta-de-tatu e cambuiú.

Fonte:
Sammis Reachers. Pulsátil: poemas canhestros & prosas ambidestras. e-book. 2014.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Marcha da Produção


Maringá, 18 de outubro de 1958. Tudo pronto para a partida da Marcha da Produção, rumo ao Rio de Janeiro, para um protesto em frente ao Palácio do Catete, então sede do governo federal. Juscelino Kubistchek era o presidente da República. Seria um evento épico, provavelmente o mais marcante de toda a história da cafeicultura.

Produtores de café convalesciam de uma série de desoladoras geadas, situação agravada por longas secas e incêndios nas áreas rurais. A economia da região, que dependia fundamentalmente da rubiácea, padecia fortemente as consequências da crise. Para completar, o governo JK parecia insensível e batia pesado nas costas da agricultura com uma perversa política de preços para os produtos do campo e, pior ainda, impondo sobre o café um malfadado confisco cambial. Daí estarem todos com os nervos à flor da pele, criando clima para a preparação de um vigoroso movimento a que se deu o nome de “Marcha da Produção”.

Café não é brinquedo do governo”, diziam as faixas empunhadas por homens, mulheres, jovens, reunidos em Maringá para a partida em direção à antiga capital. O esquema era assim: sairiam daqui duas caravanas, a de Maringá e a de Paranavaí, que se juntariam adiante com as caravanas de Londrina e Jacarezinho. Em Ourinhos, entrariam na Marcha os cafeicultores paulistas, aos quais se somariam mais à frente produtores mineiros, fluminenses e capixabas. Seria um tsunâmi de gente do campo batendo às portas do Catete.

Como tudo o que se referia ao café afetava a vida de toda a população do norte-noroeste do Paraná, o movimento recebeu total apoio dos bispos de Maringá, Dom Jaime Luiz Coelho, e de Londrina, Dom Geraldo Fernandes, bem como de Associações Comerciais, Clubes de Serviços e outras entidades. Na liderança dos cafeicultores, destacavam-se o maringaense Renato Celidônio e o londrinense Álvaro Godoy.

Ao som de rojões, a caravana pegou a estrada após a bênção de Dom Jaime, que de batina branca foi no primeiro jipe, ao lado de Celidônio. Centenas de veículos – jipes, caminhões, automóveis, tratores. A expectativa era chegar ao Rio com cerca de 40 mil pessoas.

Deu-se, porém, que a Marcha foi interrompida antes de chegar a Marialva. O caminho estava bloqueado por uma barricada formada por soldados do Regimento de Infantaria do Exército de Ponta Grossa. Ante os manifestantes, que insistiam em romper a barreira, o major comandante, do alto de um tanque, fez o apelo: “Parem, irmãos, em nome da lei”. Dom Jaime e Celidônio tentaram convencer o militar a retirar a barricada, mas não houve jeito. Para evitar as consequências de um enfrentamento, a Marcha acabou ali.

Acabou, mas não acabou. A repercussão foi enorme em todo o país. O presidente JK tomou um susto ao ser informado do tamanho do protesto. Medidas importantes foram tomadas. Não a ponto de deixar contentes os cafeicultores, mas dando para acalmar um pouco os ânimos.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-4-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 280


Stanislaw Ponte Preta (Pedro — O Homem da Flor)


Se você se enquadra entre aqueles que se dizem boêmios ou, pelo menos, entre aqueles que costumam ir, de vez em quando, a um desses muitos barzinhos elegantes de Copacabana, é provável que já tenha visto alguma vez Pedro - o homem da flor. Se, ao contrário, você é de dormir cedo, então não. Então você nunca viu Pedro — o homem da flor - porque jamais ele circulou de dia a não ser lá, na sua favela do Esqueleto.

Quando anoitece Pedro pega a sua clássica cestinha, enche de flores, cujas hastes teve o cuidado de enrolar em papel prateado, e sai do barraco rumo a Copacabana, onde fica até alta madrugada, entrando nos bares — em todos os bares, porque Pedro conhece todos — vendendo rosas. Quando a cesta fica vazia, Pedro conta a féria e vai comer qualquer coisa no botequim mais próximo. Depois volta para casa como qualquer funcionário público que tivesse cumprido zelosamente sua tarefa, na repartição a que serve.

Conversei uma vez com Pedro — o homem da flor. Já o vinha observando quando era o caso de estar num bar em que ele entrava. Via-o chegar e dirigir-se às mesas em que havia um casal. Pedia licença e estendia a cesta sobre a mesa. Psicologia aplicada, dirão vocês, pois qual o homem que se nega a oferecer uma flor à moça que o acompanha, quando se lhe apresenta a oportunidade? Sim, talvez Pedro seja um bom psicólogo mas, mais do que isso, é um romântico. Quando o homem mete a mão no bolso e pergunta quanto custa a flor, depois de ofertá-la à companheira, Pedro responde com um sorriso:

— Dá o que o senhor quiser, moço. Flor não tem preço.

Como eu ia dizendo, conversei uma vez com Pedro e, desse dia em diante, temos conversado muitas vezes. Ele sabe de coisas. Sabe, por exemplo, que a rosa branca encanta as mulheres morenas, enquanto que as louras, invariavelmente, preferem rosas vermelhas. Fiel às suas observações, é incapaz de oferecer rosas brancas às mulheres louras, ou vice-versa. Se entra num bar e as flores de sua cesta são todas de uma só cor, não coincidindo com o gosto comum às mulheres presentes, nem chega a oferecer sua mercadoria. Vira as costas e sai em demanda de outro bar, onde estejam mulheres louras, ou morenas, se for o caso.

O pequeno buquê de violetas — quando as há — é carinhosamente arrumado pelas suas mãos grossas de operário, assim como também as hastes prateadas das rosas. Saibam todos os que se fizeram fregueses de Pedro — o homem da flor — que aquele papel prateado artisticamente preso na haste das rosas e que tanto encanta as moças foi antes um prosaico papel de maços de cigarros vazios, que o próprio Pedro recolheu por aí, nas suas andanças pela madrugada.

Sei que Pedro ama a sua profissão, tira dela o seu sustento, mas acima de tudo esforça-se por dignificá-la. Não vê que seria um mero mercador de flores! Lembro-me da vez em que, entrando pelo escuro do bar, trouxe nas mãos a última rosa branca para a moça morena que bebia calada entre dois homens. Quando os três levantaram a cabeça ante a sua presença, pudemos notar — eu, ele e as demais pessoas presentes — que a moça era linda, de uma beleza comovente, suave, mas impressionante. Pedro estendeu-lhe a rosa sem dizer uma palavra e, quando um dos rapazes quis pagar-lhe, respondeu que absolutamente não era nada. Dava-se por muito feliz por ter tido a oportunidade de oferecer aquela flor à moça que ali estava. E sem ousar olhar novamente para ela, disse:

— Mais flores daria se mais flores eu tivesse!

Assim é Pedro — o homem da flor. Discreto, sorridente e amável, mesmo na sua pobreza. Vende flores quase sempre e oferece flores quando se emociona. Foi o que aconteceu na noite em que, mal chegado a Copacabana, viu o povo que rodeava o corpo do homem morto, vítima de um mal súbito. Só depois é que se soube que Pedro o conhecia do tempo em que era porteiro de um bar no Lido. Na hora não. Na hora ninguém compreendeu, embora todos se comovessem com seu gesto, ali abaixado a colocar todas as suas flores sobre as mãos do homem morto. Pois foi o que Pedro fez, voltando em seguida para a sua favela do Esqueleto.

Naquela noite não trabalhou.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996.

Antonio Cabral Filho (13º Colar de Trovas) Beijo


Tema: BEIJO

01
Quero beijar na boca,
é uma bela sensação.
Uma vontade muito louca
e até arde o coração.
Madalena Cordeiro - ES


02
Até arde o coração
o beijo, quando bem dado,
acende o fogo, a paixão,
naquele que foi beijado.
Aurineide Alencar - MS


03
Naquele que foi beijado
o beijo deixou raízes,
mas o amor foi arrancado,
só restaram cicatrizes.
Gilberto Cardoso - PB e RN


04
Só restaram cicatrizes,
se foram beijos de Judas,
mas te digo, não te iludas:
melhor saldo é dos felizes.
Antonio Cabral Filho - RJ

05
So restaram cicatrizes,
somos todos aprendizes,
os beijos dão diretrizes:
melhor saldo é dos felizes!....
Luiz Cláudio – RN


06
Melhor saldo é dos felizes,
digo com toda a certeza,
pois o abraço afasta as crises
e o beijo é boa surpresa.
Antonio Francisco Pereira - MG


07
O beijo traz boa surpresa,
eis o que me aconteceu:
trouxe bem mais que riqueza
O beijo que ela me deu.
Gilberto Cardoso – PB e RN

 

08
O beijo que ela me deu
tinha sabor de hortelã.
Me beijou e prometeu:
se quer mais, volte amanhã.
Antonio Francisco Pereira - MG


09
Se quer mais, volte amanhã!
Prometeu, mas não cumpriu,
mostrou de longe a maçã,
mas nem a porta me abriu.
Petrônio Oliveira - MG

 

10
Mas nem a porta me abriu!...
Beijou-me, mas sem calor.
Seu beijo não me atraiu.
Bom mesmo é com muito amor.
Gilberto Cardoso – PB e RN

 

11
Bom mesmo é com muito amor
No estômago borboletas
Colorindo a alma de cor
na boca são agulhetas.
Mirlene Andrade - SE


12
E na boca são agulhetas,
acupuntura sem par.
Entra no rol dos caretas
Quem não gosta de beijar.
Gilberto Cardoso – PB e RN


13
Quem não gosta de beijar,
não pode ser boa gente,
nunca vai se aproximar
de algum amor bem decente!
Talita Batista - RJ


14
De algum amor bem decente
guardo na minha lembrança
um beijo bem caliente
quando ainda era criança!....
Luiz Cláudio – RN


15
Quando ainda era criança
à minha avó eu beijava.
Depois, cheio de esperança,
algum trocado aguardava.
Gilberto Cardoso – PB e RN


16
Algum trocado aguardava
o pedinte na calçada.
Um beijo não esperava,
e a tez ficou ruborada.
Oliveira Caruso - RJ


17
E a tez ficou ruborada,
porque você disse adeus,
mas logo fui abraçada,
e uni meus lábios aos seus.
Madalena Cordeiro - ES


18
Uni meus lábios aos seus,
no seio da noite escura,
mas foi por obra de Deus,
que não fizemos loucura.
Antonio Cabral Filho - RJ


19
Que não fizemos loucura,
mas beijando eu fico louca,
só me beija com ternura,
me puxe e beija-me a boca.
Mirlene Andrade - SE


20
Me puxe e beija-me a boca,
cubra meu corpo de beijos,
deixe minha alma bem louca,
pra saciar seus desejos.
Antonio Cabral Filho - RJ
 

21
Pra saciar seus desejos,
no seu corpo, a minha mão,
vaga enquanto em lampejos,
a beijo em sofreguidão.
Zé Ferreira - RN


Fonte:
Trovadores do Brasil

Aparecido Raimundo de Souza (W ou B?)


O ESTILISTA CAPILAR QUE ME ATENDEU NA NOVA barbearia que inaugurou esta semana, na sobreloja do prédio onde tenho meu escritório para empresários que precisam lavar dinheiro e enganar a Receita e a Polícia Federal, na Avenida Presidente Vargas, quase colado à Candelária, a primeira impressão que me deixou foi a de que não tinha nádegas. Pelo menos o suficiente para ser notado. A jeans bege que usava, preso a um cinto de couro preto, bem acima do umbigo, juntamente com a camisa branca, por dentro da calça, dava a ele, ares de uma linguiça mal empetecada e seca e, ainda por cima, amarrada pelo meio.

A única coisa que não combinava com a calça, nem com o cinto, tampouco com a camisa e os sapatos amarelos, era o celular minúsculo no bolso. Os cabelos longos que lhe caíam até a altura da região ínfero-posterior da cabeça estavam presos por uma pregadeira vermelha em formato de peixinho, coincidentemente da mesma cor da capinha que protegia o aparelho telefônico.

Diante dos espelhos enormes, a figura do barbeiro se destacava. Sentado na cadeira de assento verde, com almofadas e bolinhas da mesma cor, eu podia observá-lo de todos os ângulos. Visto pela traseira, parecia um pau de arrimo que comumente as pessoas idosas usam para se locomoverem. Não se distinguiam os contornos de um ser normal, ou seja, onde terminava as costas, emendava o que deveria ser o traseiro, e onde este acabava, tinha início as pernas. Mas, no conjunto, um perfeito e estranho varapau.

Na realidade, o cidadão se assemelhava a uma dessas tábuas usadas em andaimes de prédio, posta em pé, ora se movendo de um lado, ora de outro. De frente, lembrava um periscópio de submarino na posição em que os marinheiros o colocam para observar a superfície. Se olhado pelas laterais, principalmente à direita, vinha, à cabeça, a figura de um cachorro vira-lata fujão, depois de ter revirado o lixo na cozinha e esparramado o que havia dentro, pela casa afora.

Verdade seja dita: tirando essas bizarrices todas, o cara era ágil, desembaraçado e veloz, na tesoura. Cortava meu cabelo com a precisão de um profissional que conhece profundamente o serviço que executa. Devido à sua destreza, mal dava para acompanhar os movimentos cadenciados de suas mãos na tesoura, trabalhando o couro cabeludo, aparando as pontas aqui e ali até ficar tudo do jeitinho como lhe havia ordenado.

De repente interrompeu o desbaste e perguntou muito solícito, se aceitava um café quentinho saído naquele exato momento. Optei pela água gelada. Uma moça simpaticíssima, estatura mediana, rosto claro, olhos pretos e grandes, acondicionada num vestido azul-marinho colado ao corpo, deixando entrever os contornos de uma calcinha minúscula, veio lá de dentro, com uma bandeja, e me serviu, zelosa e apressurada. O traje da elegante, em contraste com a severidade do patrão, não excluía, de forma alguma, a graça e a formosura do feitio. Em seguida fui galardoado com o jornal todo desfolhado com relatos de alguns dias atrás.

– Escuta, companheiro, não foi na semana passada que o Lula botou na cabeça o boné do MST?

– Acho que sim, senhor...

– E não foi também, na mesma época que o Papa João Paulo II pregou a castidade para os jovens?

– Sim, senhor. Por que as perguntas?

– Esse jornal é velho demais. Por favor, amigo, devolva ao lugar de onde veio.

O rapaz ainda tentou substituir a tal publicação por uma leitura mais em voga, contudo a revista igualmente era tão antiga que trazia resenhas de uma novela chata que havia acabado mês anterior.

Não sei se alguém já atentou para um fato corriqueiro, mas de vital importância, se levado a sério: em recepções, sejam de hotéis, casas de massagens, imobiliárias, instituições bancárias, consultórios médicos e dentários, salões de beleza e barbearias, as revistas e os jornais destinados ao público “esperante” nunca são do dia. Geralmente essas velharias ficam espalhadas pelos assentos, ou jogadas pelo chão, à espera que um boboca, para matar o tempo, se ocupe em lhe desfolhar as páginas. É raro chegar num desses lugares e dar de cara com alguma coisa realmente digna de ser lida.

Para não deixar o sujeito chateado, resolvi puxar conversa.

– Qual é seu nome, amigo?

– Bilson, senhor...!

–... Wilson?

– Não. Bilson. Bilson de Freitas.

– Com B ou com W?

– Com W, de Bilson.

Graças a Deus não precisei dar continuidade ao papo, pois a minha sessão havia terminado. Antes de me despachar, dando lugar a outro, o rapaz pegou um espelho redondo e o colocou por detrás das orelhas, a altura que eu pudesse ver se a coisa ficara a gosto. Aprovei com um aceno de cabeça e ele pareceu se alegrar com a minha satisfação.

Paguei o corte, agradeci a água, dei uma olhadela de cima em baixo para a secretária de vestido de colante azul-marinho e prometi solenemente voltar outras vezes. Não por ele, mas pelo sorriso indescritível da bela potranca, que devolveu com um tchauzinho maroto e um piscar de olhos discreto, a minha observação detalhada às suas enormes pernas roliças.

Lá fora, enquanto espiava a vitrine de uma loja de conveniências, pensei com meus botões:

– “Bem, acho que esse barbeiro tem problemas com a voz. É de fato fanhoso, ou não sabe escrever o próprio nome. Ou via outra: está a fim de tirar um sarro com os meus cornos. Ou com os meus córneos. E por que não? Bilson com W. Onde já se biu?”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

domingo, 31 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 279


Luís Alberto Saavedra (Revelação)


Ela havia marcado a consulta por telefone naquela manhã e tinha urgência de ser atendida. Eu, para me valorizar, disse a ela que tinha horário de encaixe apenas à tarde (na verdade a minha agenda estava livre desde a manhã). Ela topou.

Chegou pontualmente no horário, Imaginei que tivesse cinquenta e poucos anos, vestida de forma sofisticada e com bom gosto. Tinha um belo sorriso. Em resumo, uma mulher bonita. O seu nome era Catarina.

Apresentações feitas, disse-me que tinha me escolhido por eu ser jovem e, por essa circunstância, esperava que eu pudesse entender melhor seu problema. Deixo de relatar questões mais íntimas da história dessa paciente, por razões óbvias, e me atenho apenas aos aspectos mais gerais, que não expõem sua intimidade. Devo dizer que, desde logo, se estabeleceu uma grande empatia entre mim e ela. Isso é importante e decisivo na construção do vínculo entre terapeuta e paciente.

Com desenvoltura começou narrar sua vida e a razão pela qual tinha vindo ao meu consultório.

- Eu sou uma mulher bem sucedida na minha profissão. Trabalho como gerente de vendas de um grande magazine. Apesar desse fato, na minha vida amorosa nunca tive muita sorte, pois eu me envolvi com homens que traíram a minha confiança. Essas experiências negativas me fizeram uma pessoa desconfiada e insegura. Passei um bom tempo sem ter ninguém. Tinha perdido a esperança.

- Compreendo.

- Há alguns meses conheci um homem maduro, quinze anos mais velho do que eu. Está sozinho. Estamos no início, sei pouco ainda da sua vida. Ele é viúvo. A minha intuição me diz que ele é diferente, até por ser uma pessoa bem sofrida. Cuidou da sua esposa com câncer até o fim. É assim que eu espero que um homem cuide de mim. Ele foi aos poucos conquistando a minha confiança, sem pedir nada em troca. O envolvimento foi acontecendo aos poucos. As minhas barreiras caíram e eu permiti que ele entrasse. Confiei a ele os meus sentimentos e sonhos. Porém, a coisa está ficando mais séria agora e voltou o pânico. Quando ele me convidou para conhecer seus filhos tive um grande susto e por reação impulsiva saí correndo sem me despedir. Depois liguei me desculpando e aceitei o convite.

Nesse ponto começou a chorar e eu lhe alcancei a caixa de lenços de papel.

- Tu sabes a causa desse teu repentino medo? Não estás te sentindo pronta para assumir um compromisso? - perguntei.

- Eu acho que tenho medo de que os filhos dele não me aceitem, pois sei que a mãe deles era muito legal. A minha cabeça está confusa. Não quero tomar o lugar de ninguém! Quero apenas ser uma amiga. - E começou a chorar de novo. Agora soluçando.

- Suponho que os filhos dele sejam adultos e saibam entender o momento da vida do pai. Para eles o importante é que pai esteja feliz. Eles também fizeram livremente suas escolhas. Não é mesmo?

- Acha mesmo isso?

Nesse ponto tivemos que interromper a consulta, pois o horário já tinha ido. Ela se despediu contente, dando-me um abraço efusivo. A nuvem tinha se dissipado.

Saí correndo do consultório para jogar tênis. Depois fui jantar com minha namorada no Barranco. Quando chegamos, vi meu pai numa mesa adiante, nem percebi que estava acompanhado. Como era natural, fomos cumprimentá-lo. Foi um choque, pois ele estava jantando com Catarina, nada mais nada menos, que a minha nova paciente.

Fonte:
Escrita Criativa

Luís Vaz de Camões (Sonetos) 3


Soneto 043

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.
****************************************

Soneto 071


Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
—Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
—Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?—Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
—Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.
***************************************

Soneto 086

Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina formosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudes versos podem tanto
que possam prometer te longa história
daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.
****************************************
 
Soneto 093

Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de u’a amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se depois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.
****************************************

Soneto 097


Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
depois vim a chorar porque cantara
e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa-me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas que passara
tenho pela ‘mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?
****************************************

Soneto 104


Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturvaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
u’as coisas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.
****************************************

Soneto 159


Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana formosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplendor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tão formosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre coisa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,
por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já se lhe devia.

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Sonetos. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.

Sílvio Romero (A Princesa Roubadeira)


Havia um pai que tinha três filhos. Um deles plantou um pé de laranjeira, outro um pé de limeira, e o terceiro um pé de limoeiro.

Lá num dia, o filho mais velho foi ao pai e lhe disse:

— Meu pai, eu já estou moço feito. Quero sair pelo mundo para ganhar a minha vida.

O pai o aconselhou para não fazer aquilo, mas o moço insistiu e afinal o velho lhe disse:

— Pois bem, meu filho, vai, mas tu que queres: a minha bênção com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito?

O moço respondeu que queria a maldição com muito dinheiro e assim o pai fez. O moço disse aos irmãos que quando a sua laranjeira começasse a murchar, era ele que estava em trabalhos e lhe acudissem. Partiu.

Chegando adiante, já muito cansado e com muita fome, avistou uma fumacinha ao longe e para lá se encaminhou. Era a casa de uma senhora muito rica. Pediu um agasalho e o que comer. A senhora mandou dar-lhe de jantar.

Acabada a janta, o convidou para dar um passeio em sua horta. Antes de chegar a ela, tinha de passar um riachinho. Aí a moça, que era a princesa roubadeira, suspendeu bastante o vestido a ponto de deixar ver um tanto das pernas. Passeavam na tal horta, que só tinha couves e mais nada. De volta, a princesa perguntou ao hóspede:

— Então, o que achou mais bonito na minha horta?

Ele respondeu:

— Couves.

A moça convidou-o depois para o jogo, no qual lhe ganhou todo o dinheiro que levava. Acabado o jogo, mandou-o prender e sustentar de couves.

Lá em casa do moço, a sua laranjeira começou a murchar. O irmão do meio, vendo isto, foi ao paí e disse:

— Meu pai, meu irmão está em trabalhos. Eu quero ir atrás dele.

O pai custou muito a consentir e afinal perguntou:

— Tu o que queres: a minha bênção com pouco dinheiro ou a minha maldição com muito dinheiro?

Ele quis a maldição com muito dinheiro. O pai assim fez. O moço partiu.

Depois de andar muito, já cansado e com fome, avistou ao longe uma fumacinha e caminhou para ela. Apareceu-lhe, num palácio, uma linda moça, a qual ele pediu de comer e um agasalho. Ela mandou-o entrar e servir-lhe de jantar. Depois convidou-o para dar um passeio na horta e ele aceitou. Ao passar o riachinho a princesa suspendeu os vestidos, deixando ver as pernas. De volta, ela perguntou ao hóspede:

— Então, o que viu de mais bonito em minha horta?

Ele respondeu:

— Couves.

Lá consigo a moça disse: "Este é como o outro". Convidou-o para jogar. Ganhou-lhe todo o dinheiro e mandou-o prender e cevar de couves.

Lá na casa dele a limeira começou a murchar, e o irmão mais moço, vendo isto, foi ao pai e disse-lhe:

— Meus irmãos, que foram ganhar a vida, estão em perigo e eu quero ir ao seu encontro.

O pai observou:

— Meu filho, eu já estou velho, e sendo tu o meu filho único, não te vás também embora.

O moço insistiu e o pai lhe falou:

— Então o que queres: minha maldição com muito dinheiro ou minha bênção com pouco?

O filho respondeu:

— A bênção com pouco dinheiro.

Partiu. Chegando bem longe, encontrou uma velhinha, que era Nossa Senhora, que lhe disse:

— Aonde vai, meu netinho?

Ao que respondeu:

— Vou ganhar a minha vida.

A velha lhe deu uma toalha, dizendo:

— Quando tiveres fome, pega nela e diz: "Põe a mesa, toalha!" e a mesa aparecerá.

Deu-lhe mais uma bolsa, dizendo:

— Esta bolsa tem o mesmo préstimo.

Deu também uma violinha, dizendo:

— Quando se acabar a toalha e a bolsa, põe-te a tocar nela e não hás de ter fome.

O moço seguiu o seu caminho. Ao longe avistou uma fumacinha e dirigiu-se para lá. Foi ter a uma casa onde estavam presos os seus dois irmãos. Aí descansou e jantou. A princesa roubadeira o convidou para dar um passeio na sua horta. O moço aceitou e foram. Ao passar o riachinho, a linda moça levantou os vestidos e mostrou as pernas quase todas. O moço botou os olhos com cuidado. De volta, a princesa perguntou-lhe:

— Então, o que viste mais bonito em minha horta?

— Com licença da senhora, foram as suas pernas.

Lá consigo disse a moça: "Este me serve". Seguiu-se o jogo em que ela lhe ganhou todo o dinheiro e mandou-o prender. Quando chegou a hora de dar de comer aos presos, indo a negra com a comida para ele, não a quis, dizendo:

— Leve lá à sua senhora, que eu não preciso dela.

Pegou na toalha e foi muita comida que apareceu logo. Os presos todos, que eram muitos, e que andavam mortos de fome, comeram a fartar-se e guardaram muita comida. A negra, vendo aquilo, foi ter com a senhora e lhe disse:

— Não sabe, minha senhora?! Aquele preso de ontem tem uma toalha que basta ele pegar nela para aparecer muita comida e da melhor. Só vosmecê é que devia possuir aquela toalha, minha senhora princesa.

A princesa roubadeira disse à negra:

— Vai perguntar se ele a quer vender.

A escrava foi, e o preso respondeu:

— Diga à sua senhora que para ela não é nada. Basta que me deixe dormir uma noite na porta do quarto dela do lado de fora.

A escrava levou o recado. A senhora tomou aquilo por grande desaforo, mas a negra lhe disse que não desse atenção àquilo, que não queria dizer nada e ela ficaria com a sua toalha. No dia seguinte, ao levar o almoço, não o quis, e puxou pela bolsa e foi comida por cima do tempo. A negra, que via aquilo, correu e foi contar à senhora:

— Não sabe, princesa minha senhora?! O preso está terrível. Puxou agora por uma bolsa que só vosmecê possuindo... É melhor que a toalha.

A ambiciosa mandou oferecer compra pela bolsa. O preso lhe mandou dizer que para ela não era nada. bastava deixá-lo dormir no seu quarto do lado de dentro, junto da porta. A roubadeira ficou muito insultada e pôs-se a rosnar. Foi preciso que a escrava lhe dissesse:

— Ô xente! minha senhora, que mal faz? Vosmecê dorme em sua cama e aquele tolo lá no chão.

Fez-se o negócio e o maganão dormiu dentro do quarto da princesa. No dia seguinte, indo a negra levar o almoço, ele puxou pela viola e pôs-se a tocar e todos os presos a dançar, e a negra largou os pratos no chão e pôs-se também a dançar, e demorou-se muito, a ponto da roubadeira mandar chamar a negra, admirada daquela demora. A preta lhe respondeu:

— Minha senhora, aquele preso está com o diabo. Tem agora uma violinha que só vosmecê possuindo...

A princesa mandou logo oferecer dinheiro por ela; o preso não quis, dizendo:

— Esta... só se ela casar comigo!

A negra foi dar o recado. A moça arrufou-se, mas afinal consentiu e casou-se. Depois disto todos os presos foram soltos. Houve muita festa. Eu lá estive (diz a narradora) e trouxe uma panelinha de doce, que caiu ali na ladeira.

Entrou por uma porta
Saiu por um canivete
Manda o rei, meu senhor
Que me conte sete.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 278


Cláudio de Cápua (Tudo pela Literatura)


Após o jantar em casa, Norberto encaminhou-se para sua mesa de trabalho, onde, aborrecido, ficou contemplando as folhas brancas de sulfite.

Às vezes, desviava o olhar para as estantes que o rodeavam, repletas de livros.

Andréa tocava, ao lado, uma suave sonata.

- Com mil demônios! bradou Norberto - Não consigo!

- Que há, querido? Perguntou Andréa, parando de tocar.

- Estou estressado, não consigo escrever minha crônica para o periódico.

Andréa abandonou o piano e foi sentar-se ao lado do marido.

Norberto confidenciou-lhe que, após escrever dez anos, diariamente, para o jornal, não encontrava, por mais que procurasse, o tema para seu artigo.

- Acho que estou precisando descansar...tirar umas férias.

Já focalizara recordações da infância e dos tempos de juventude na faculdade, assim como histórias e casos de família. Mas, agora, por mais que forçasse a memória, nada conseguia.

- Querida, as pessoas possuem alguns casos reais, experiências adquiridas no dia a dia, mesmo você que é um anjo de bondade e um talento musical, não teria, talvez algum episódio que pudesse me ajudar a fugir desse sufoco profissional?

Andréa concordou, com um sorriso:

- Casei-me com você porque o amei e continuo com você, porque o amo - essa é a minha história.

- Querida, você é gentil, mas eu falo do antes de mim, antes dos seus 21 anos. Veja se me entende, quero torná-la minha colaboradora. Afinal, seja lá o que haja acontecido antes de mim, não me importa!

Ante tais argumentos, Andréa capitulou:

- Está bem, entendo os nobres interesses da literatura. Vou contar-lhe um fato anterior ao nosso relacionamento mas, por favor, não me interrompa... caso contrário, não irei até o fim.
    Fui apaixonada por mais de 3 anos...Não feche a cara. Era uma paixão louca, de jovem. Não um caso sério, de amor, como o nosso.

- Continue!

- Não sei, estou envergonhada...

- Continue.

- Querido, essa confissão é um sacrifício que faço para ajudar. O maestro Sílvio, meu professor de piano, era casado e eu queria, a toda força, separá-lo da Leonor. Se hoje sou boa, naquela época fui má. Como você sabe, o primo Antenor era e é grande conquistador e eu procurei aproximar o primo da Leonor e ele acabou por seduzi-la. Atingi meu objetivo que era a destruição daquela feliz união.

- Chega de infâmia! gritou Norberto - Você foi capaz de tal canalhice?

Andréa olhou o marido e riu com ternura.

- Claro que não, nunca existiu em minha vida um Sílvio, professor de piano, e muito menos a seduzida Leonor, foi tudo armação, tudo por você e pela literatura.

No domingo, Norberto indagou ao sogro, com naturalidade, durante o almoço:

- Dr. Celso, que fim levou aquele maestro, que dava aulas particulares de piano para Andréa em solteira?

- Silvano e a esposa Leontina, disse-lhe o sogro, tinham ficado muito amigos de Andréa e do meu sobrinho Antenor, mas, de repente, sumiram e, mais tarde, fiquei sabendo que o casal se havia separado.

Norberto empalideceu, enquanto Andréa, com voz macia, lhe dizia ao ouvido.

- Querido, não vai acreditar, vai? Foi tudo pela literatura.

(Revista Santos Arte e Cultura – Março 2009)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Nilton da Costa Teixeira (Os Sacis)


Os trilhos das estradas onde ainda hoje correm remanescentes dos trens de ferro das Cias. Mojiana e São Paulo e Minas estão sendo retirados e transferência de todo o acervo dessas cias. passando as suas estações a funcionarem no bairro do Tanquinho, local onde já se inicia o movimento de trens na nova estação ferroviária. Ambas as estações do centro estão praticamente desertas e os leitos das mesmas que se localizam na parte central, acham-se abandonados e as partes mais longínquas despovoadas e tristes... Algumas taperas já se desmantelando moldam o correr do caminho e dão ao cenário um aspecto lúgubre... Várias cruzes lúgubres plantadas aqui e ali testemunham vinganças que existiam em épocas já perdidas no tempo. Os caminhos íngremes, sinuosos e cobertos de matos, são agora, segundo a crendice popular, palcos de habitações de assombrações e sacis de risos convulsos e escaninhos e de assobios estridentes e profundos. Nesse local também existem almas penadas de choros e lamentos dolentes que causam estranhas sensações assustando o caminhante despreocupado que passa em horas tardias e mortas...

No caminho sinuoso e em triste escuridão,
Há sombras que sutis se emergem e amedrontam,
E o caminhante, indo em tristonha solidão,
Vê perspectivas más que sempre lhe despontam...

Esses caminhos trens de ferro transitam,
E agora o caminhante aí, noites escuras,
Vê sempre esgueirar- entre os vagões que ficaram
Um negrinho a saltar e fazer diabruras.

As cambalhotas, sobre uma perna, fugaz,
Assusta o caminhante e segue em disparada,
Pulando a gargalhar satânico e mordaz,
Deixando quem o vê estático na estrada...

Assobios toda a noite se sucedem,
E, ruidosamente, há alguém que sempre ri,
Enquanto vozes já exaltadas perseguem
quem á noite tiver que transitar aí.

Em grande vozerio e aos gritos de terror,
As chusmas de sacis, em um vaivém constante,
Produzem algazarra e fazem tal clamor
Que acabam por prostrar o pobre viandante.

Fonte:
Nilton da Costa Teixeira. Versos a Ribeirão Preto, 1970.
Enviado por Nilton Manoel Teixeira

Malba Tahan (O Sábio da Efelogia)


Durante a última excursão que fiz a Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.

Conheci-o, casualmente, no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrakesh. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros; vestia sempre pesadíssimo casaco de astracã com esquisita gola de peles que lhe chegava até às orelhas. Falava pouco; quando conversava casualmente com os outros hóspedes, não fazia, em caso algum, a menor referência à sua vida ou ao seu passado. Deixava, porém, de vez em quando, escapar observações eruditas, denotadoras de grande, extraordinário saber.

Além do nome — Vladimir Kolievich — pouco se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em “El-Kedim” constava que o misterioso cavalheiro era um antigo notável professor da Universidade de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revolução contra o governo da Letônia.

Uma noite estávamos, como de costume, reunidos na sala de jantar quando uma jovem escritora russa, Sônia Baliakine, que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou:

— Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?

— O quê? rio Falgu?

Ao cabo de alguns momentos de baldada pesquisa, nos caminhos da memória, fui obrigado a confessar a minha ignorância, lamentável nesse ponto, nunca tinha ouvido falar em semelhante rio, apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.

Com surpresa de todos, o misterioso Vladimir Kolievich, que fumava em silêncio a um canto, veio esclarecer a dúvida da encantadora excursionista russa.

— O rio Falgu fica nas proximidades da cidade de Gaya na Índia. Para os budistas o Falgu é um rio sagrado, pois foi junto a ele que Buda, fundador da grande religião, recebeu a inspiração de Deus!

E, diante da admiração geral dos hóspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e
concentrado, continuou:

— É muito curioso o rio Falgu. O seu leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, árido, como um deserto. O viajante que dele se aproxima não vê nem ouve o menor rumor do líquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lençol de água pura e límpida.

E, com simplicidade e clareza peculiares aos grandes sábios, passou a contar-nos coisas curiosas, não só da Índia, como de várias outras partes do mundo: falou-nos, por exemplo, minuciosamente, das “filazenes”, espécie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os habitantes de Madagáscar.

— Que grande talento! Que invejável cultura científica! segredou, a meu lado, um missionário católico, sinceramente admirado.

A formosa Sônia afirmou que encontrara referência ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de Otávio Feuillet.

— Ah! Feuillet, o célebre romancista francês! — atalhou ainda o erudito cavalheiro do astracã — Otávio Feuillet nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco exagerado, são notáveis pela finura das observações e pela concisão e brilho do estilo!

E, durante algum tempo, prendeu a atenção de todos, discorrendo sobre Otávio Feuillet, sobre a França e sobre os escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de Gustavo Flaubert: Salambô, Madame Bovary, Educação Sentimental...

— Não se limita a conhecer só a Geografia — acrescentou, a meia voz, o velho missionário. — Sabe também literatura a fundo!

Realmente. A precisão com que o erudito Vladimir citava datas e nomes e a segurança com que expunha os diversos assuntos não deixavam dúvida alguma sobre a extensão de seu considerável saber.

Nesse momento, começa uma forte ventania. As janelas e portas batem com violência. Alguns excursionistas, que se achavam na sala, mostraram-se assustados.

— Não tenham medo — acudiu, bondoso, o extraordinário Kolievich. — Não há motivo para temores e receios. Faye, o grande astrônomo, que estudou a teoria dos ciclones...

E depois de discorrer longamente sobre a obra de Faye passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones, avalanchas, erupções e de todos os flagelos da natureza.

Senti-me seriamente intrigado. Quem seria, afinal, aquele homem tão sábio, de rara e copiosa erudição, que se deixava ficar modesto, incógnito, como simples aventureiro, numa velha e monótona cidade marroquina?

No dia seguinte, ao regressar da fatigante excursão aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho, no pátio da linda mesquita de Kasb. Não me contive e fui ter com ele.

— O senhor maravilhou-nos ontem com o seu saber — confessei respeitoso. — Não podíamos imaginar, com franqueza, que fosse um homem de tão grande cultura. Na sua Academia, com certeza...

— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei — ou melhor — eu nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra “F”! Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra “F”!

Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?

— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado, e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela, em que me puseram, deixou-me como herança, os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia pouco esse idioma, e — como não tivesse em que me ocupar — li e reli, centenas de vezes, as páginas que possuía. Eram todas da letra “F”. Desde então fiquei sabendo muita coisa, tudo, porém, sem sair da letra “F”: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.

Achei curiosa aquela conclusão da original história do inteligente Kolievich — o negociante de fumo.

Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra “F” de uma velha enciclopédia.

Era, inquestionavelmente, o homem que mais conhecia a ciência que ele mesmo denominara “Efelogia”!

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 277


Rachel de Queiroz (Falar e Escrever)


AGORA MUITO SE DISCUTE a linguagem, ou antes, a falta de linguagem dos jovens, que não falam nem escrevem e ninguém sabe como se comunicam — queixam-se os mestres deles e os entendidos em geral. Ora, talvez se comuniquem por grunhidos e acenos como os chimpanzés, ou por um curto vocabulário de nomes e verbos elementares, como os aborígenes australianos.

A crise é ameaçadora principalmente para nós que da palavra escrita e falada tiramos o nosso pão de cada dia. Mas os meninos — eles — não se queixam. A privação ou pobreza linguística evidentemente não os afeta nem lhes tira a alegria, nem sequer lhes dá complexo de inferioridade perante os mais articulados. Ou, se de alguma coisa se queixam, é de que a falação em torno já está um saco, pô!

A verdade é que nós, os adultos da velha geração, temos que nos conformar com o fato concreto de que as gentis artes da fala e da escrita estão em triste decadência nesta idade do mundo, e a tendência é a situação ficar cada vez pior. E não digo escrita me referindo só ao ato intelectual de botar pensamentos no papel, mas ao ato material de desenhar caracteres, de riscar letras compondo sílabas, palavras e frases, Ninguém tem mais letra, que dirá boa letra, A escrita dos jovens é um arranhar sumário de riscos ilegíveis, que os professores aceitam porque. naturalmente, se cansariam de lutar. Os trabalhos escolares dos meus netos, por exemplo, os poucos que já vi, se eu fosse professora deles punha os dois de penitência, copiando cada letra do ABC vinte mil vezes pelo menos. Mas, como me argumentou o mais novo, toda função sem uso tende a desaparecer e, com a escrita mecânica, a letra de mão não tem mais uso. “Você por caso escreve alguma coisa à mão? Pô.” O melhor, pois, será dar a eles uma máquina assim que se alfabetizarem, ensinar datilografia em vez de caligrafia e não se fala mais no assunto.

Quanto ao discurso e à redação não acho, como li num articulista, que os jovens repelem as nossas formas peremptórias de linguagem, já que nós não escrevemos como se fala. Essa não. Nós, os da minha geração, escrevemos como falamos, ou o mais aproximadamente possível. Quem escreve difícil e arrevesado e ininteligível é a geração meio termo, que ronda os trinta e os quarenta anos, querendo passar por nova, imbuída de tecnicismos, fazendo questão de mostrar cultura pelo uso de palavras raras, ou inventadas, ou mal traduzidas e em geral grotescas.

É entre eles e os muito jovens que se abre o tal vácuo de linguagem; e é contra eles que se insurgem os meninos, no que fazem muito bem. Os jornais e revistas vivem encaroçados de bobagens do pessoal da suposta intelligentsia, um abominável jargão que propriamente não quer dizer nada, e que poderia ser vertido em linguagem comum e bonita, sem o menor prejuízo, antes com lucro. E desses espúrios vocabulários hoje em uso, o pior, me parece, é o falar metido a psicológico ou psicoanalítico; eles não dizem que namoram ou vivem com uma pessoa, mas que “têm relacionamento”; se alguém os oprime ficam castrados (gostam muito da ideia: mãe carrasca é castradora, decepção é castrante, reprimir-se é castrar-se). Falta de educação é agredir, sujeito tímido tem bloqueio, a moça se joga nua da janela porque está carente, quem não se envergonha do que faz se assume. Aliás, fazer análise é o grande sarro, não há vedetinha nem subgalã de novela que não dependa do seu analista, nem há estrela que se respeita que não confesse pelo menos de dez a cinco anos de análise. Análise dá status, e status é uma das palavras mais em moda.

Assim, os meninos que ainda não estão contaminados pelo gongorismo tecnocrático dos seus pais, irmãos mais velhos e professores reagem como podem, reduzindo o seu falar às palavras de quatro letras e aos monossílabos elementares. E por isso mesmo eu não fico apreensiva quanto a essa inarticulação dos muito jovens, antes a encaro como reação natural ao intolerável e vazio pedantismo dos que lhes são imediatamente mais velhos pais, irmãos e professores. (Ah… os professores de ‘‘Comunicação  e Expressão’’, que é a velha gramática em novos termos!)

Talvez dessa recusa os meninos saíam para uma linguagem nova, ríspida e expressiva; à medida em que forem se desenvolvendo, terão necessidade de se exprimir melhor e criarão, ou recriarão, a linguagem necessária ao seu tempo e aos seus sentimentos, livres da enxurrada de bobagens festivas dos preciosos ridículos desta década. E nós, os avós que ainda estivermos vivos, estaremos às ordens para aplaudir e comemorar a rebelião linguística dos meninos; e até a auxiliá-los com alguns arcaísmos úteis, que os pernósticos de entre nós e eles terão posto fora de uso.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.