segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guimarães Rosa (Sorôco, sua mãe, sua filha)


Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos.

A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m. As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo - o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns 70. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele parente nenhum.

A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe.

Para o pobre, os lugares são mais longe.

O agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - "Vai ver se botaram água fresca no carro..." - ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: - "Eles vêm! ..." Apontavam, da rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se dizer das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfurnada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: - "Deus vos pague essa despesa...” O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência, Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alivio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. -"Ela não faz nada, seo Agente.. ." - a voz de Sorôco estava muito branda: - "Ela não acode, quando a gente chama.. ." A moça, aí, tornou a cantar, virada para, o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma; que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem fazer, na viagem comprida, eram o Nenego, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer mingua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenego ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas nao haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçoo do canto das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado e enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco.

Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.

Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram:

- "O mundo está dessa forma.. ."

Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta. Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido - ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E foi sem combinação em ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

Fonte:
João Guimarães Rosa. Primeiras Histórias. Publicado originalmente em 1962.

domingo, 31 de julho de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 2

 

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 10

As folhas secas rolando,
dão-me a nítida impressão,
de ver fantasmas brincando
de mãos dadas pelo chão!
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Cabeça cor de algodão,
cabelos da cor de neve,
relendo em cada estação
as regras que o tempo escreve!
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Contemplo a tarde morrendo
e, aos poucos, paro e medito,
ao ver a noite bebendo
a luz do Sol no infinito!!
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Depois de crucificado,
ferido e morto na cruz,
aos cegos, pelo pecado,
Deus mostra o perdão da Luz!
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Entre ilusões, sonhos vãos,
e um sonho que não se alcança...
Vão ficando em minhas mãos,
as tuas mãos, por lembrança!
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Faminta, com pés descalços,
roupinha suja, rasgada,
três dos mais tristes percalços
da criança abandonada!
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Hoje, quarenta e três anos
de casamento, completos;
mesma esposa, mesmos planos,
três lindas filhas, dois netos!
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Já venci tão duras penas
nas caminhadas que fiz,
que hoje, até mágoas pequenas
me fazem ser mais feliz!
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Mãos abertas balançando,
no mar, o velho coqueiro,
é um lenço verde acenando
à espera do jangadeiro!
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Mesmo apesar da distância,
em meio a tantas esperas...
A primavera da infância,
é a melhor das primaveras!
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Meu velho amor, vinde e vede,
como a ausência me castiga;
Meu armador, na parede,
mudou o tom da cantiga!
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Não conto como castigos
as rugas aprofundadas;
são velhos trilhos amigos
dos rastros das madrugadas!
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Não me causam queixa alguma,
os que pedradas, me dão;
eu retribuo uma a uma,
com pedradas de perdão!
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Na tapera abandonada,
berço dos primeiros passos...
Vi minha sombra sentada
sorrindo e me abrindo os braços!!!
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Noite adentro, e entre nós,
há um silêncio tão agudo,
que ao longe, se escuta a voz
do silêncio, em quase tudo!
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No poente, o Sol, em seus passos,
antes que a tarde se amoite,
cansado, estende os seus braços
e abraça os braços da noite!
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O mar se agita, se alteia,
e entre fortes vendavais...
O jangadeiro vagueia,
sem saber se volta ao cais!
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Pergunto à tarde serena,
no instante triste do adeus;
Por que de mim não tens pena,
Se há penas nos versos meus?!...
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Quando a seca, alonga o estio,
na aridez do meu sertão...
Há muito leito vazio,
poucos rastros pelo chão!
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Se a solidão apertasse,
dobrava a dor que doía...
Se a mãe, no sonho, sonhasse,
que alguém na porta batia!
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Se em teus braços me agasalho,
nada no mundo me afeta;
sem teu amor, nada valho,
mas, mesmo assim, sou poeta!
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Sem teu amor, que ainda espero,
o mundo perde o esplendor;
se eu disser que não te quero,
perco a essência desse amor!
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Ser poeta é cantar o grito
que há na voz dos oprimidos!...
E sentir Deus no infinito
e até nos sonhos perdidos!
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Sozinha... sempre sozinha...
Cansada e contando os passos,
vai para a igreja a velhinha
puxando a fé pelos braços!
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Tua ausência, ainda caminha,
sem rédeas, no meu presente!...
Minha alma, escrava e sozinha,
finge esconder, que não sente!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

sábado, 30 de julho de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 10

 

Athos Fernandes (Poemas de Amor) 2

SONETO A ADRIANO CÉSAR

Senta-te aqui, meu filho, e ouve o teu velho pai:
esta vida, querido, é duro embate, é luta
em que as regras morais não entram na disputa
e o império da ambição sempre crescendo vai.

E aqui, tal como ali, - Roma, Paris, Xangai, -
é o ouro o ditador das normas de conduta.
E entre as leis do Direito e as leis da força bruta,
quem acaso não sabe onde a razão recai?

É triste esta verdade, ó filho meu! No entanto,
quero que sejas bom e honesto como um santo,
que ames a Pátria, o humilde e protejas o só.

E assim aprenderás esta lição que prezo:
se há muito de Mamon no coração de um Creso,
há muito mais de Deus, no coração de um Jó!
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SONETO À ELISÂNGELA

As Musas convoquei dos montes do Parnaso,
para dar a você, querida, um bom soneto,
que da primeira quadra ao último terceto
fosse pleno de amor de pai, de que me abraso!

Mas eis que o estro me foge e a claudicar me atraso.
E sinto que entro mal no segundo quarteto.
Vou pedir rouxinóis ao velho Capuleto
e rosas ao jardim, crisântemos ao vaso.

Pois só o teu sorriso, ó meiga filha, é tudo!
Se do riso infantil alguém fizesse o estudo
no afã de descobrir tudo quanto traduz,

Por certo saberia este alguém, sem tardança,
que lê diz que este mundo é nada sem criança,
como um verso sem rima e a Igreja sem Jesus!
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BRUNO ROGÉRIO

Bruno Rogério Magalhães Monteiro,
é o nome todo do meu novo filho,
raio final de um sol que perde o brilho
e já se esconde por detrás do outeiro.

Que importa que ele seja o derradeiro?
O que importa é que siga honesto trilho,
que colha a espiga onde plantou seu milho,
que regue a flor nascida em seu canteiro.

Que seja puro e nobre. E ame a Virtude!
E à sua mãe dê tudo o que eu não pude
de bens terrenos dar, porque não os tinha...

Que preste culto a Deus e à Liberdade!
Que seja um bom no ardor da mocidade,
qual tento eu ser nesta velhice minha!
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MATER

Faz muito tempo já! Era no outono...
Folhas soltas levadas pelo vento...
Em nossa casa o luto, o desalento,
o vazio do tédio e do abandono!

Foi quando, ó mãe! Ao derradeiro sono
levou-te a morte, em meio ao sofrimento.
Mas ficaste vivendo em pensamento,
e em nossos corações, como num trono.

Que importa o tempo transcorrido? Importa
é que a mãe viva, mesmo estando morta,
pois vai além da morte o seu dulçor.

Santo nome imortal que nos encanta!...
Quer viva ou morta, a mãe é sempre santa,
- na santificação do seu amor.

TRÊS SONETOS DE AMOR

I


Chegaste em minha vida em hora amarga,
quando o estio se fora ao vir do inverno,
e a minha estrela, peregrina e pura,
por meu mal deixará o céu vazio!

Chegaste à minha vida quando as flores
murchas jaziam pelo chão nevado,
quando os meus lábios, trêmulos, cantavam
o cantochão dos tristes misereres.

Chegaste à minha vida solitária,
quando se fora a última esperança
no adeus final do derradeiro porto.

Chegaste à minha vida e a iluminaste
com teu sorriso de trigal maduro,
com teu olhar de estrela matutina!

II

Chegaste e me disseste: - “eis que te trago
uma esperança nova à tua vida.
Serás o meu Boaz* e eu serei Rute,
farta será de amor nossa colheita!

Venho da Shangri-La dos teus sonhares,
da terra da perpétua juventude.
O sangue quente que me aquece as veias
duplicará os grãos da tua eira.

Serei a tua Agar. E nova estirpe
há de nascer do nosso amor fecundo,
num consórcio de outono e primavera.

Serei tua Vestal, esposa e amante.
Mantendo deste amor acesa a pira,
com nardo e mirra incensarei teus deuses!”

III

Assim disseste e assim ficaste. E agora,
que o estio retornou, passado o inverno,
já estão voltando as musas forasteiras
que me haviam deixado o lar vazio.

Cresce a colheita em grãos centuplicados!
Já preparo o lagar para a vindima.
Os deuses lares já tem mirra e incenso.
Arde a pira no altar. Volta a alegria!

É o milagre do Amor ressuscitado!
É a esperança que chega e toma assento,
que se hospeda comigo, e janta e fica.

Não mais entoarei canções de outono,
que a primavera esplende em teu sorriso,
e há fartura de espigas na seara!...
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* Boaz é um personagem do Antigo Testamento da Bíblia, citado no livro de Rute.
 
Fonte:
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 14: Rotina

 

A. A. de Assis (Apóstolo honorário)

De repente me deu de pensar no grande apóstolo que teria sido Aristóteles caso ele tivesse convivido com os seguidores de Jesus Cristo. Na minha imaginação, vi-o lá na velha Grécia entrando no túnel do tempo e logo após desembarcando na Galileia, pronto para de imediato matricular-se como discípulo na escola do Mestre dos mestres.

Com o seu admirável currículo, foi recebido de braços abertos. Pediram-lhe apenas que antes aceitasse participar de uma rápida sabatina. Sem problema. O filósofo grego, hábil orador, em breve discurso resumiu suas ideias:

1. O ser humano foi criado para ser feliz. Para tanto, desde o início da história vem passando por um longo processo de aperfeiçoamento. A esse processo dá-se o nome de “educação” (do latim “ex-ducere” = trazer à luz; ou seja: trazer à tona e pôr em ação um conjunto de virtudes potencialmente contidas num ser originalmente rústico).

2. Desenvolve-se a educação mediante o que chamamos de “civilização” (do latim “civilis”), de onde temos também civismo, civilidade, cidade, cidadania.

3. Pode-se, assim, entender educação como evolução do ser humano do estágio de “zoon” para o estágio de “anthropos” – transformação do animal em homem e do homem em cidadão.

4. Simplificando: entende-se educação como o empenho em criar nas pessoas, desde a infância, o hábito de gostar das coisas justas e boas (“ethos” > ética), preparando-as para uma convivência harmônica no que nós gregos chamamos de “pólis” (= cidade) – comunidade de pessoas livres, pacíficas, democráticas, honestas, prestativas, sociáveis, generosas.

5. Desde sua origem até o estado em que atualmente se encontra, o ser humano vem mantendo uma contínua e sofrida luta interior, na qual se confrontam defeitos (egoísmo, ódio, inveja, ira, arrogância etc.) e virtudes (amor, bondade, ternura, alegria, solidariedade etc.).

6. Mediante a educação, busca-se reduzir ao mínimo os defeitos e ampliar ao máximo as virtudes. Quanto maior a predominância das virtudes, mais alto o grau de felicidade.

Pedro bateu o martelo: “Pode parar aí. Já deu para sentir que você é um pensador do bem. Precisa apenas familiarizar-se com a nossa linguagem. Por exemplo: o que você chama de ‘civilização’ nós chamamos de ‘salvação’ (do latim ‘salvare’, que vem de ‘salvus’ > ‘salus’, de onde temos saúde, sadio, salutar, sanidade, santidade, são. Em outras palavras: você associa educação com ‘civilização’ (entendida como fortalecimento da saúde moral); nós associamos educação com ‘salvação’ (entendida como fortalecimento da saúde espiritual)”.

João pediu um aparte: “Vocês falam em excelência do caráter, nós falamos em excelência da alma, porém queremos o mesmo: ver os homens e as mulheres convivendo como irmãos e irmãs, num clima de mútuo respeito e amorosa colaboração. Enfim, queremos todos alcançar a plena felicidade, que costumamos chamar de bem-aventurança – no tempo e na eternidade”.

Pedro encerrou a sessão: “Dê cá um abraço, caríssimo Aristóteles. Você é muito gente boa. Além de avalizar sua matrícula como discípulo, pedirei ao Mestre Jesus que lhe conceda um upgrade, promovendo-o logo de início a Apóstolo Honorário”.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 21-7-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiane Braga Lima e Samuel da Costa(Mais uma vez Eliza [em recaída])


Verão a pino e o calor estava insuportável e eu decidi pegar a velha bicicleta e sair para tomar um pouco de ar, decidi tomar a tranquila alameda ao fim da alameda. Inconscientemente mudei de rumo e enfrentei a agitada avenida, a três quarteirões além, um pouco mais adiante, estava o prédio onde Bruno, um amor antigo, morava com a família. Parei, e da rua pude vê-lo bem, ainda estava jovem, estava feliz brincando com os filhos pequenos, no parquinho do condomínio fechado. Curiosa que estava eu queria saber mais, e sem que ele notasse, passava sempre ao final da tarde para espiá-lo, ele ainda chamava minha atenção.

Lembrei da época quando estudávamos juntos em um rígido colégio particular. Havia seção para meninos e a seção para meninas, a gente só se encontrava no recreio para brincar juntos, sobre olhares atentos de inspetores. Crescemos separados, mas um pouco mais crescidos em baile ou festa, sempre nos encontrávamos e trocamos olhares e breves palavras. Então na festa de formatura entre sorrisos e abraços, entre as comemorações da realização pessoal e familiar. Onde os olhares rigorosos, deram descansos para todas e todos, em um rompante amávamos noite a fora em um ato de rebeldia!

Mas, a vida dá voltas, nos separamos e cada um seguiu seu próprio caminho. Hoje, vendo-o novamente, meu coração disparou, voltei novamente ao passado remoto. Passado distante em tempo e espaço, no qual nunca foi bom para mim, cheio de mentiras, meias verdades, traições e de tudo que poderia ter sido e não foi, tudo mexeu com nosso lado psicológico.

— Elizabety, sou eu o Bruno, entre vamos beber algo. — De repente escuto a voz dele me chamando para o tempo presente, para a realidade dura e cruel! Ele notou a minha presença por fim.

— Como estás Bruno?! — Eu estava constrangida, pois não sabia quando Bruno tinha sentido a minha presença. Ele se aproximou do portão do prédio, parecia que tinha esquecido por completo a prole atrás dele. E os filhos nem se deram conta que o pai deles estava conversando com uma completa estranha parada no meio da rua.

— Estou bem! Sinto muito a tua falta. — Como senti a tua falta!? Pensei calada, sempre viveu de mentiras, sua vida era uma farsa! — Não, não, e não preciso ir embora. — Corri, nunca mais voltei a passar no prédio de Bruno e nunca mais o encontrei.

Recomecei a minha vida, longe daquele homem fraco, que vivia me enganado com juras falsas de amor eviterno, foi apenas uma recaída e nada mais. Não voltei para olhar para trás!

Para recomeçar é necessário evoluir, é preciso ter amor próprio para dar a largada. Que haja em nossos corações vontade de recomeçar, não apenas vontade, mas também muita coragem! Quanta a Bruno!? Já não sentia mais nada por ele....! Apenas uma certa curiosidade.

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Versejando 117

 

Lima Barreto (Um fiscal de jogo)

Conheci e conheço Antunes Segadas Bustamante. Quando, porém, o conheci, há anos, era um pronto, mais pronto ainda do que eu. Era cuidadoso com o seu corpo e a sua roupa e tinha meios e modos de sempre andar com ternos novos e bengalas de apuro. Ninguém sabia como ele arranjava aquilo, tanto mais que todos o sabíamos honesto.

Ele viera ao Rio de Janeiro estudar qualquer coisa, mas não se formara em nada. E, como quem não se forma em nada tem a mania de que é poeta e jornalista, dado a frequentar as rodas de poetas e jornalistas. Não tinha jeito para a coisa, aos poucos foi deixando de publicar sonetos nas revistas e crônicas insulsas (insossas) nos jornais de pouca circulação. Não era nem mau, nem bom rapaz, era um simples e tolerável companheiro. Não fumava, não bebia. Sentava-se no café, ouvia o que os mais sábios diziam, guardava-lhes as opiniões e ia repeti-las em outro grupo como sendo dele.

A sua ambição era um emprego e casar bem, e para casar bem, era preciso ter um bom emprego. Uma coisa era função da outra. Por isso, ele desdenhava os empregos de amanuense e escriturário e “cavava” coisa melhor. Era tenaz e nunca cedeu em tal propósito, no que fez bem, como veremos.

Veio a agitação nacionalista e ele logo se alistou num dos muitos clubes que têm esse qualificativo. Com a força que dá falso entusiasmo, Antunes conseguiu sobressair na “causa”. Aproximou-se das altas personagens da República, fez-se conhecido delas, não deixava de cumprimentá-las na rua, frequentava-as e procurava sempre. Enfim, mostrava-se.

Surgiu a regulamentação do jogo, com impostos sobre as respectivas casas, fiscais e todo um aparelho de sociedade, para tornar sério o pano verde e dar dinheiro ao Estado severo e paternal.

Bustamante logo ambicionou um lugar de fiscal, cargo lucrativo e, para obtê-lo, pôs em campo todas as suas relações e toda a sua tenacidade.

Interessou fulano na sua pretensão, rogou a beltrano, falou a sicrano e conseguiu a coisa.

Depois de nomeado, foi há dias que o encontrei e, após os cumprimentos, perguntei-lhe:

— Como te tens dado com o lugar?

— Magnificamente! Ceio lautamente todas as noites, vejo lindas mulheres e bebo champanhe a rodo. Tudo isto de graça. Não é bom?

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 2a. edição. Publicado originalmente em 1951.

Fabiano Wanderley (Glosas) – 4

A REDINHA RESPLANDECE,
DO CASTELO D'ALVAS DUNAS.


Quando a aurora se oferece,
num raiar de um novo dia,
diante a tanta magia,
a Redinha resplandece.

O verde mar se engrandece,
formando vastas colunas,
zingando, passam escunas,
mil cores, uma aquarela,
tudo visto da janela
do castelo D'alvas Dunas.

(De propriedade, do poeta amigo, o imortal, Ubiratan Queiroz)
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 CABELO BRANCO É SAUDADE,
DA MOCIDADE VIVIDA.


Eu sinto o peso da idade,
em meus pelos prateados,
pelo tempo desbotados,
cabelo branco é saudade.

Ele é na realidade,
a lembrança de uma vida
da juventude incontida,
no clamor de uma paixão,
das ânsias de um coração,
da mocidade vivida.
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EU NÃO SEI VIVER SOFRENDO,
DEIXA DISSO E VEM ME VER.

Não vês que estou me abatendo
por você, que está distante?
Que definho a todo instante,
eu não sei viver sofrendo.

Passo o dia te querendo,
procurando te entender,
pois, de tanto padecer,
já me sinto o próprio lixo,
para com esse capricho,
deixa disso e vem me ver.
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NÃO TENHO MEDO DA MORTE
POR QUE SEI QUE VOU MORRER.


Não me julgo ser um forte,
mas com fé, sou destemido,
com o Senhor me consolido,
não tenho medo da morte.

Minha vida é meu suporte,
quem me faz enobrecer,
e a razão deste viver
é levar-me ao paraíso,
ao meu dia de juízo,
por que sei que vou morrer.
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NASCE AO DIA DEZESSEIS
DO MÊS CHAMADO SÃO JOÃO.


Nem Deus sabe como o fez,
mas o fato é que o danado,
um viril advogado,
nasce ao dia dezesseis.

E o Doutor Vivi se fez,
fez-se assim o garanhão,
com brutal persuasão,
de montar um cabaré,
esse guapo pangaré,
do mês chamado São João!

(No aniversário do Amigo, Dr. Vinícius Cavalcanti,
o grande causídico do nosso grupo).

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CANUTO, O GRANDE POETA,
COM SEUS VERSOS NOS APRAZ.


Do saber que ele arquiteta,
brotam frases com candores
e as expõem com seus ardores,
Canuto, o grande poeta.

Tem estilo de um esteta,
ao primar pelo que faz,
com seu jeito perspicaz,
com seus dotes, seus talentos,
nos transmite ensinamentos,
com seus versos nos apraz.

(Ao amigo poeta, Walter Canuto).
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NOSSO GRANDE ABRAÇO, AMIGO,
NESTA DATA TÃO FESTIVA.


Por convivermos contigo,
sabemos, sim, quem tu és;
ao Rogério, nota dez,
nosso grande abraço, amigo.

Conservas sempre ao abrigo,
um bem-querer que cativa,
que extrapola, que motiva
toda sua gratidão,
parabéns de coração,
nesta data tão festiva.

(Após, nossas aposentadorias do Banco do Brasil conservamos um pequeno grupo que, ainda hoje, é liderado pelo amigo Rogério Vilar. E, no seu aniversário, a nossa justa homenagem).

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos.
Natal/RN, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Machado de Assis (Viagem à roda de mim mesmo)

CAPÍTULO I

Quando abri os olhos, era perto de nove horas da manhã. Tinha sonhado que o sol, trajando calção e meia de seda, fazia-me grandes barretadas, bradando-me que era tempo, que me levantasse, que fosse ter com Henriqueta e lhe dissesse tudo o que trazia no coração. Já lá vão vinte e um anos! Era em 1864, fins de novembro. Contava eu então vinte e cinco anos de idade, menos dois que ela. Henriqueta enviuvara em 1862, e, segundo toda a gente afirmava, jurara a si mesma não passar a segundas núpcias. Eu, que chegara da província no meado de julho, bacharel em folha, vi-a poucas semanas depois, e fiquei logo ardendo por ela.

Tinha o plano feito de desposá-la, tão certo como três e dois serem cinco. Não se imagina a minha confiança no futuro. Viera recomendado a um dos ministros do gabinete Furtado, para algum lugar de magistrado no interior, e fui bem recebido por ele. Mas a água da Carioca embriagou-me logo aos primeiros goles, de tal maneira que resolvi não sair mais da capital. Encostei-me à janela da vida, com os olhos no rio que corria embaixo, o rio do tempo, não só para contemplar o curso perene das águas, como à espera de ver apontar do lado de cima ou de baixo a galera de ouro e sândalo e velas de seda, que devia levar-me a certa ilha encantada e eterna. Era o que me dizia o coração.

A galera veio, chamava-se Henriqueta, e no meio das opiniões que dividiam a capital, todos estavam de acordo em que era a senhora mais bonita daquele ano. Tinha o único defeito de não querer casar outra vez; mas isto mesmo era antes um pico, dava maior preço à vitória, que eu não deixaria de obter, custasse o que custasse, e não custaria nada.

Já por esse tempo abrira banca de advogado, com outro, e morava em uma casa de pensão. Durante a sessão legislativa, ia à Câmara dos Deputados, onde, enquanto me não davam uma pasta de ministro, coisa que sempre reputei certa, iam-me distribuindo notícias e apertos de mão. Ganhava pouco, mas não gastava muito; as minhas grandes despesas eram todas imaginativas. O reino dos sonhos era a minha casa da moeda.

Que Henriqueta estivesse disposta a romper comigo o juramento de viúva, não ouso afirmá-lo; mas creio que me tivesse certa inclinação, que achasse em mim alguma coisa diversa dos demais pretendentes, diluídos na mesma água de salão. Viu em mim o gênero singelo e estático. Para empregar uma figura, que serve a pintar a nossa situação respectiva, era uma estrela que se deu ao incômodo de descer até à beira do telhado. Bastava-me trepar ao telhado e trazê-la para dentro; mas era justamente o que não acabava de fazer, esperando que ela descesse por seu pé ao peitoril da minha janela. Orgulho? Não, não; acanhamento, acanhamento e apatia. Cheguei ao ponto de crer que era aquele o costume de todos os astros. Ao menos, o sol não hesitou em fazê-lo naquela célebre manhã. Depois de aparecer-me, como digo, de calção e meia, despiu a roupa, e entrou-me pelo quarto com os raios nus e crus, raios de novembro, transpirando a verão. Entrou por todas as frestas, cantando festivamente a mesma litania do sonho: "Eia, Plácido! acorda! abre-lhe o coração! levanta-te! levanta-te!"

Levantei-me resoluto, almocei e fui para o escritório. No escritório, seja dito em honra do amor, não minutei nada, arrazoado ou petição, minutei de cabeça um plano de vida nova e magnífica, e, como tivesse a pena na mão, parecia estar escrevendo, mas na realidade o que fazia eram narizes, cabeças de porco, frases latinas, jurídicas ou literárias. Pouco antes das três retirei-me e fui à casa de Henriqueta.

Henriqueta estava só. Pode ser que então pensasse em mim, e até que tivesse ideia de negar-se; mas neste caso foi o orgulho que deu passaporte ao desejo; recusar-me era ter medo, mandou-me entrar. Certo é que lhe achei uns olhos gelados; o sangue é que talvez não o estivesse tanto, porque vi sinal dele nas maçãs do rosto.

Entrei comovido. Não era a primeira vez que nos achávamos a sós, era a segunda; mas a resolução que levava, agravou as minhas condições. Quando havia gente — naquela ou noutra casa, — cabia-me o grande recurso, se não conversávamos, de ficar a olhar para ela, fixo, de longe, em lugar onde os seus olhos davam sempre comigo. Agora, porém, éramos sós. Henriqueta recebeu-me muito bem; disse-me estendendo a mão:

— Pensei que me deixasse ir para Petrópolis sem ver-me.

Balbuciei uma desculpa. Na verdade o calor estava apertando, e era tempo de subir. Quando subia? Respondeu-me que no dia 20 ou 21 de dezembro, e, a pedido meu, descreveu-me a cidade. Ouvi-a, disse-lhe também alguma coisa, perguntei se ia a certo baile do Engenho Velho; depois veio mais isto e mais aquilo. O que eu mais temia, eram as pausas; ficava sem saber onde poria os olhos, e se era eu que reatava a conversação, fazia-o sempre com estrépito, dando relevo a pequenas coisas estranhas e ridículas, como para fazer crer que não estivera pensando nela. Henriqueta às vezes tinha-me um ar enjoado; outras, falava com interesse. Eu, certo da vitória, pensava em ferir a batalha, principalmente quando ela parecia expansiva; mas, não me atrevia a marchar. Os minutos voavam; bateram quatro horas, depois quatro e meia.

"Vamos, disse comigo, agora ou nunca".

Olhei para ela, ela olhava para mim; logo depois, ou casualmente, ou porque receasse que eu lhe ia dizer alguma coisa e não quisesse escutar-me, falou-me de não sei que anedota do dia. Abençoada anedota! âncora dos anjos! Agarrei-me a ela, contente de escapar à minha própria vontade. Que era mesmo? Lá vai; não me recordo o que era; lembro-me que a contei com todas as variantes, que a analisei, que a corrigi pacientemente, até às cinco horas da tarde, que foi quando saí de lá, aborrecido, irritado, desconsolado...

CAPÍTULO II

Cranz, citado por Tylor, achou entre os groenlandeses a opinião de que há no homem duas pessoas iguais, que se separam às vezes, como acontece durante o sono, em que uma dorme e a outra sai a caçar e passear. Thompson e outros, apontados em Spencer, afirmam ter encontrado a mesma opinião entre vários povos e raças diversas. O testemunho egípcio (antigo), segundo Maspero, é mais complicado; criam os egípcios que há no homem, além de várias almas espirituais, uma totalmente física, reprodução das feições e dos contornos do corpo, um perfeito fac-símile.

Não quero vir aos testemunhos da nossa língua e tradições, notarei apenas dois: o milagre de Santo Antônio, que, estando a pregar, interrompeu o sermão, e, sem deixar o púlpito, foi a outra cidade salvar o pai da forca, e aqueles maviosos versos de Camões:

Entre mim mesmo e mim
Não sei que se levantou,
Que tão meu inimigo sou.

Que tais versos estejam aqui no sentido figurado, é possível; mas não há prova de não estarem no sentido natural, e que mim e mim mesmo não fossem realmente duas pessoas iguais, tangíveis, visíveis, uma encarando a outra.

 Pela minha parte, alucinação ou realidade, aconteceu-me em criança um caso desses. Tinha ido ao quintal de um vizinho tirar umas frutas; meu pai ralhou comigo, e, de noite, na cama, dormindo ou acordado — creio antes que acordado, — vi diante de mim a minha própria figura, que me censurava duramente. Durante alguns dias andei aterrado, e só muito tarde chegava a conciliar o sono; tudo eram medos. Medos de criança, é verdade, impressões vivas e passageiras. Dois meses depois, levado pelos mesmos rapazes, sócios na primeira aventura, senti a alma picada das mesmas esporas, e fui outra vez às mesmas frutas vizinhas.

Tudo isso acudia-me à memória, quando saí da casa de Henriqueta, descompondo-me, com um grande desejo de quebrar a minha própria cara. Senti-me dois, um que arguia, outro que se desculpava. Nomes que eu nem admito que andem na cabeça de outras pessoas a meu respeito, foram então ditos e ouvidos, sem maior indignação, na rua e ao jantar. De noite, para distrair-me, fui ao teatro; mas nos intervalos o duelo era o mesmo, um pouco menos furioso. No fim da noite, estava reconciliado comigo, mediante a obrigação que tomei de não deixar Henriqueta ir para Petrópolis, sem declarar-lhe tudo. Casar com ela ou voltar à província.

"Sim, disse a mim mesmo; ela há de pagar-me o que me fez fazer ao Veiga".

Veiga era um deputado que morava com outros três na casa de pensão, e de todos os da legislatura foi o que se me mostrou particularmente amigo. Estava na oposição, mas prometia que, tão depressa caísse o ministério, faria por mim alguma coisa. Um dia prestou-me generosamente um grande obséquio. Sabendo que eu andava atrapalhado com certa dívida, mandou-a pagar por portas travessas. Fui ter com ele, logo que descobri a origem do favor, agradeci-lho com lágrimas nos olhos, ele meteu o caso à bulha e acabou dizendo que não me afadigasse em arranjar-lhe o dinheiro; bastava pagar quando ele tivesse de voltar à província, fechadas as câmaras, ou em maio que fosse.

Pouco depois, vi Henriqueta e fiquei logo namorado. Encontramo-nos algumas vezes. Um dia recebi convite para um sarau, em casa de terceira pessoa propícia aos meus desejos, e resolvida a fazer o que pudesse, para ver-nos ligados. Chegou o dia do sarau; mas, de tarde, indo jantar, dei com uma novidade inesperada: Veiga, que na véspera à noite tivera alguma dor de cabeça e calafrios, amanheceu com febre, que se fez violenta para a tarde. Já era muito, mas aqui vai o pior. Os três deputados, amigos dele, tinham de ir a uma reunião política, e haviam combinado que eu ficasse com o doente, e mais um criado, até que eles voltassem, e não seria tarde.

— Você fica, disseram-me; antes da meia-noite estamos de volta.

Tentei balbuciar uma desculpa, mas nem a língua obedeceu à intenção, nem eles ouviriam nada; já me haviam dado as costas. Mandei-os ao diabo, eles e os parlamentos; depois de jantar, fui vestir-me para estar pronto, enfiei um chambre, em vez da casaca, e fui para o quarto do Veiga. Este ardia em febre; mas, chegando eu à cama, viu ele a gravata branca e o colete, e disse-me que não fizesse cerimônias, que não era preciso ficar.

— Não, não vou.

— Vá, doutor; o João fica; eles voltam cedo.

— Voltam às onze horas.

— Onze que sejam. Vá, vá.

Balancei entre ir e ficar. O dever atava-me os pés, o amor abria-me as asas. Olhei durante alguns instantes para o doente, que jazia na cama, com as pálpebras caídas, respirando a custo. Os outros deviam voltar à meia-noite — eu disse onze horas, mas foi meia-noite que eles mesmos declararam — e até lá entregue a um criado...

— Vá, doutor.

— Já tomou o remédio? perguntei.

— A segunda dose é às nove e meia.

Pus-lhe a mão na testa; era uma brasa. Tomei-lhe o pulso; era um galope. Enquanto hesitava ainda, concertei-lhe os lençóis; depois fui arranjar algumas coisas no quarto, e afinal tornei ao doente, para dizer que iria, mas estaria cedo de volta. Abriu apenas metade dos olhos, e respondeu com um gesto; eu apertei-lhe a mão.

— Não há de ser nada, amanhã está bom, disse-lhe saindo.

Corri a vestir a casaca, e fui para a casa onde devia achar a bela Henriqueta. Não a achei ainda, chegou quinze minutos depois.

A noite que passei, foi das melhores daquele tempo. Sensações, borboletas fugitivas que lá ides, pudesse eu recolher-vos todas, e pregar-vos aqui neste papel para recreio das pessoa que me leem! Veriam todas que não as houve nunca mais lindas, nem em tanta cópia, nem tão vivas e lépidas. Henriqueta contava mais de um pretendente, mas não sei se fazia com os outros o que fazia comigo, que era mandar-me um olhar de quando em quando. Amigas dela diziam que a máxima da viúva era que os olhares das mulheres, como as barretadas dos homens, são atos de cortesia, insignificantes; mas atribuí sempre este dito a intriga. Valseou uma só vez, e foi comigo. Pedi-lhe uma quadrilha, recusou-a, dizendo que preferia conversar. O que dissemos, não sei bem; lá se vão vinte e um anos; lembro-me só que falei menos que ela, que a maior parte do tempo deixei-me estar encostado, a ver cair-lhe da boca uma torrente de coisas divinas... Lembrei-me duas vezes do Veiga, mas, de propósito, não consultei o relógio, com medo.

— Você está completamente tonto, disse-me um amigo.

Creio que sorri, ou dei de ombros, fiz qualquer coisa, mas não disse nada, porque era verdade que estava tonto e tontíssimo. Só dei por mim, quando ouvi bater a portinhola do carro de Henriqueta. Os cavalos trotaram logo; eu, que estava à porta, puxei o relógio para ver as horas, eram duas. Tive um calafrio, ao pensar no doente. Corri a buscar a capa, e voei para casa, aflito, receando algum desastre. Andando, não evitava que o perfil de Henriqueta viesse interpor-se entre mim e ele, e uma ideia corrigia outra. Então, sem o sentir, afrouxava o passo, e dava por mim ao pé dela ou aos pés dela.

Cheguei à casa, corri ao quarto do Veiga; achei-o mal. Um dos três deputados velava, enquanto os outros tinham ido tomar algum repouso. Haviam regressado da reunião antes de uma hora, e acharam o enfermo delirante. O criado adormecera. Não sabiam quanto tempo ficara o doente abandonado; tinham mandado chamar o médico.

Ouvi calado e vexado. Fui despir-me para velar o resto da noite. No quarto, a sós comigo, chamei-me ingrato e tolo; deixara um amigo lutando com a doença, para correr atrás de uns belos olhos que podiam esperar. Caí na poltrona; não me dividi fisicamente, como me parecera em criança; mas moralmente desdobrei-me em dois, um que imprecava, outro que gemia. No fim de alguns minutos, fui despir-me e passei ao quarto do enfermo, onde fiquei até de manhã.

Pois bem; não foi ainda isto que me deixou um vinco de ressentimento contra Henriqueta; foi a repetição do caso. Quatro dias depois tive de ir a um jantar, a que ela ia também. Jantar não é baile, disse comigo; vou e volto cedo. Fui e voltei tarde, muito tarde. Um dos deputados disse-me, quando saí, que talvez achasse o colega morto: era a opinião do médico assistente. Redargui vivamente que não: era o sentimento de outros médicos consultados.

Voltei tarde, repito. Não foram os manjares, posto que preciosos, nem os vinhos, dignos de Horácio; foi ela, tão-só ela. Não senti as horas, não senti nada. Quando cheguei à casa era perto de meia-noite. Veiga não morrera, estava salvo de perigo; mas entrei tão envergonhado que simulei uma doença, e meti-me na cama. Dormi tarde, e mal, muito mal.

CAPÍTULO III
 
Agora não devia acontecer-me o mesmo. Vá que, em criança, corresse duas vezes às frutas do vizinho; mas a repetição do caso do Veiga era intolerável, e a deste outro seria ridícula.

Tive ideia de escrever uma carta, longa ou breve, pedindo-lhe a mão. Cheguei a pôr a pena no papel e a começar alguns rascunhos. Vi que era fraqueza e determinei ir em pessoa; pode ser também que esta resolução fosse um sofisma, para escapar às lacunas da carta. Era de noite; marquei o dia seguinte. Saí de casa e andei muito, pensando e imaginando, voltei com as pernas moídas e dormi como um ambicioso.

De manhã, pensei ainda no caso, compus de cabeça a cerimônia do casamento, pomposa e rara, chegando ao ponto de transformar tudo o que estava em volta de mim. Fiz do trivial e desbotado quarto de pensão um rico boudoir, com ela dentro, falando-me da eternidade.

— Plácido!

— Henriqueta!

De noite é que fui à casa dela. Não digo que as horas andaram vagarosíssimas, nesse dia, porque é a regra delas quando as nossas esperanças abotoam. Batalhei de cabeça contra Henriqueta; e assim como por esse tempo, à espera que me fizessem deputado, desempenhei mentalmente um grande papel político, assim também subjuguei a dama, que me entregou toda a sua vida e pessoa. Sobre o jantar, peguei casualmente nos Três Mosqueteiros, li cinco ou seis capítulos que me fizeram bem, e me abarrotaram de ideias petulantes, como outras tantas pedras preciosas em torno deste medalhão central: as mulheres pertencem ao mais atrevido. Respirei afoito, e marchei.

Henriqueta ia sair, mas mandou-me entrar, por alguns instantes. Vestida de preto, sem mantelete ou capa, com o simples busto liso e redondo, e o toucado especial dela, que era uma combinação da moda com a sua própria invenção, não tenho dúvida em dizer que me desvairou.

— Vou à casa de minhas primas, que chegaram de S. Paulo, disse-me ela. Sente-se um pouco. Não foi ontem ao teatro?

Disse-lhe que não, depois emendei que sim, porque era verdade. Agora que a coisa lá vai, penso que não sorriu, mas na ocasião pareceu-me o contrário, e fiquei vexado. Disse-me que não tinha ido ao teatro por estar de enxaqueca, terrível moléstia que me explicou compondo as pulseiras, e corrigindo a posição do relógio na cintura. Reclinada na poltrona, com um início de pé à mostra, parecia pedir alguém ajoelhado; foi a ideia que tive, e que varri da cabeça, por grotesca. Não; bastava-me o olhar e a palavra. Nem sempre o olhar seria bastante, acanhava-se às vezes, outras não sabia onde pousasse; mas a palavra romperia tudo.

Entretanto, Henriqueta ia falando e sorrindo. Umas vezes parecia-me compartir a minha crise moral, e a expressão dos olhos era boa. Outras via-lhe a ponta da orelha do desdém e do enfado. O coração batia-me; tremiam-me os dedos. Evocava as minhas ideias petulantes, e elas vinham todas, mas não desciam ao coração, deixavam-se estar no cérebro, paradas, cochilando...

De repente calamo-nos, não sei se por três, cinco ou dez minutos; lembro-me só, que Henriqueta consultou o relógio; compreendi que era tempo de sair, e pedi-lhe licença. Ela levantou-se logo e estendeu-me a mão. Recebi-a, olhei para ela com a intenção de dizer alguma coisa; mas achei-lhe os olhos tão irados ou tão aborrecidos, não sei bem, lá vão muitos anos...

Saí. Chegando ao saguão, dei com o chapéu um golpe no ar, e chamei-me um nome feio, tão feio que o não ponho aqui. A carruagem estava à porta; fui colocar-me à distância para vê-la entrar. Não esperei muito tempo. Desceu, parou à porta um instante, entrou, e o carro seguiu. Fiquei sem saber de mim, e pus-me a andar. Uma hora depois, ou pouco menos, encontrei um amigo, colega do foro, que ia para casa; fomos andando, mas ao cabo de dez minutos:

— Você está preocupado, disse ele. Que tem?

— Perdi uma causa.

— Não foi pior que a minha. Já lhe contei o inventário do Matos?

Contou-me o inventário do Matos, sem poupar nada, petições, avaliações, embargos, réplicas, tréplicas e a sentença final, uma sentença absurda e iníqua. Eu, enquanto ele falava, ia pensando na bela Henriqueta. Tinha-a perdido pela segunda vez; e então lembrei-me do caso do Veiga, em que os meus planos falharam de igual modo, e o das frutas, em pequeno. Ao pensar nas frutas, pensei também no misterioso desdobramento de mim mesmo, e tive uma alucinação.

Sim, senhor, é verdade; pareceu-me que o colega que ia comigo era a minha mesma pessoa, que me punha as mãos à cara, irritado, e me repetia o impropério do saguão, que não escrevi nem escrevo. Parei assustado, e vi que me enganara. E logo ouvi rir no ar, e levantei a cabeça: eram as estrelas, contempladoras remotas da vida, que se riam dos meus planos e ilusões, com tal força, que cuido arrebentaram os colchetes, enquanto o meu colega ia concluindo furioso o negócio do inventário do Matos:

— ...um escândalo!

Fonte:
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias, de 04/10/1885.
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 11

 

Caldeirão Poético LI


Áurea Pires da Gama
Angra dos Reis/RJ, 1876 – 1949, Rio de Janeiro/RJ

LIBERTA


Não volto mais! Irei por este mundo escuro
em busca de outro amor, de outra afeição mais nobre.
Adeus! Levo somente a lira e a cruz de pobre,
mas Deus me ajudará na estrada do futuro.

Levante-se minha alma e, rútila, desdobre
as asas da esperança. Eu parto... eu me aventuro
no vasto mar da vida. A estrela que procuro
verei brilhar um dia, embora além sossobre!

Porém, se a rosa branca e pulcra de meus sonhos
fanar-se no embrião, e a morte compassiva
finalmente acabar meus dias enfadonhos,

tu não finjas a dor de uma alma sensitiva,
não! Respeita a mudez dos túmulos tristonhos...
Ai! Não finjas à morta o que fingiste à viva!
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Beatrix dos Reis Carvalho
Rio de Janeiro/RJ, ???

CONTRIÇÃO


Meu Deus, eu sei. Eu sei, não merecia
esse bem que me dás em profusão.
Sofrer é justo como a luz do dia,
mas ser feliz é prêmio, é galardão!

Quase me acostumara à tirania
da vida que castiga, sem razão.
E, para mim, o amor como eu queria
era, longe, uma estrela na amplidão.

Não devia existir, e se existisse,
querê-la não passava de tolice,
que as estrelas não vêm à nossa mão...

Meu Deus! Puseste a estrela em meu caminho!
Por esse amor que é todo o meu carinho,
perdão se duvidei, perdão, perdão!
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Beni Carvalho
Aracati/CE, 1886 – 1959, Rio de Janeiro/RJ

O CAIS


Quando te vejo, velho cais, em ruínas,
perscruto a tua vida secular:
— Manhãs radiosas em que te iluminas!
— Serenas noites de encantado luar!

Viste, partindo, ao canto das matinas,
velhas naus, brancas velas, pelo mar:
— Dourados sonhos, ilusões divinas,
ânsia de descobrir e conquistar!

Hoje, todo em tristeza, te esbarrondas;
mas uma voz oculta, dentre as ondas,
te diz: "A sorte não te foi tão má:

Terás, em ti, esta legenda impressa:
— Recolheste o sorrir do que regressa
e a saudade de quem não voltará".
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Carlyle Martins
Fortaleza/CE, 1899 – 1986

O ENTERRO DO SOL


O sol empalidece entre a seda macia
de um leito de rubis e opalas recamado.
As montanhas, entoando o funeral do dia,
de aromas sem iguais vão perfumando o prado.

Há um pesar pela terra inteira, que dir-se-ia
tudo na escuridão já ficou mergulhado.
Ao longe na ampla várzea enlutada e sombria,
vagaroso  se arrasta, em fileiras, o gado.

Torpor e indecisão. Vai chegando a penumbra.
Nuvens fogem do céu. Nada mais se vislumbra
nas matas onde a treva está quase a envolvê-las.

A noite, como um duende, a estender-se por tudo,
atira sobre a terra um manto de veludo
e desfia, no espaço, um rosário de estrelas.
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Carolina Ramos
Santos/SP

VIAGEM DOLOROSA


Enfrento, combalida, a jornada que assume
dimensões de montanha e nuvens de incerteza.
A dúvida recobre o intransponível cume.
A vida tumultua a própria correnteza.

Rochas por toda a parte... e flores sem perfume!
Por todo o lado a escarpa, o abismo sem beleza!
Por todo o tempo, a noite a se estender sem lume,
tornando negro o verde e o azul da natureza.

Mas, seguirei, ferindo as mãos pelos espinhos.
E seguirei, cortando os pés pelos caminhos,
sem temer empecilho e sem temer fracassos,

se souber que me espera apenas uma rosa!
E esta viagem, por fim, tão triste e dolorosa,
me der repouso e paz, no ninho dos teus braços!

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Jaqueline Machado (Harry Potter: O menino que sobreviveu)

Triste pensar na falta de sorte de quem nasce diferente, ao lado de criaturas infelizes, amargas, preconceituosas e por isso tudo, bastante más. Pessoas assim, normalmente são tidas como pessoas normais, mas não são, não. Notem que sempre pegam uma pessoa para Cristo. Pois precisam descontar a raiva que os habitam em alguém. E fazem de tudo, tudinho mesmo, para provar que a vítima é a verdadeira culpada de tudo de ruim que acontece em suas porcarias de vidas.

Quem conhece a saga Harry Potter, da autoria de Joanne Rowling, sabe bem do que estou falando. Harry James Potter é filho único de Tiago Potter e Lílian Potter. Ele foi o sobrevivente da maldição do vilão "Lord Voldemort", que tentou matá-lo quando ele ainda era bebê. Seus pais foram mortos pelo bruxo, mas Harry sobreviveu. Em sua inocência de criança, não podia imaginar que por ter sido o primeiro a sobreviver ao ser maligno, já era famoso, e o mundo festejava a sua existência. Órfão, o menino foi deixado por Albus Dumbledore, diretor da Escola de Bruxos, Hogwarts, a qual Harry seria membro mais tarde, pela professora Minerva McGonagall e pelo professor Rúbeo Hagrid, na porta da casa nº4, na rua dos Alfeneiros.

Este era o endereço da família Dursley, que era formada pelo Sr. Dursley, um chato diretor de uma firma chamada Grunnings, que fazia perfurações, pela sua tia materna, Sra. Petúnia, e pelo primo Duda. Os professores os consideravam como sendo o pior tipo de “trouxas”, trouxas eram chamados os que não são "bruxos'', mas eles eram a única família que poderia cuidar do menino. Petúnia, uma mulher de atitudes superficiais, que vivia bisbilhotando e fofocando sobre o comportamento da vizinhança, se envergonha da sua irmã, pois a considerava estranha, diferente dos outros familiares e despreza o pobre Harry, que cresceu sofrendo todo tipo privações, inclusive, a pior de todas, a falta de amor.

Harry dormia dentro de um armário, que ficava debaixo da escada que dava para o segundo andar da casa e, ao contrário do primo que tinha todas as suas vontades feitas, não ganhava festa de aniversário, nem presentes. Vestia as roupas velhas do primo, que ficavam largas, já que Harry era um garoto franzino, e o seu primo, era muito gordo. Ele também usava óculos remendados e tinha de ajudar os tios em alguns afazeres de casa. Harry também apanhava do primo Duda. Apesar de toda humilhação, os Dursley se achavam perfeitos e grandiosos por cuidarem do sobrinho órfão.

Aos onze anos, Harry fica sabendo que é um mago branco, através do guarda florestal de "Hogwarts", que o levou para morar na casa "Grifinória" - uma das quatro casas na época da inauguração da Escola dos Bruxos. Lá, ele recebe a oportunidade de ter um novo lar, faz boas amizades e descobre que a sua vida nunca será fácil, pois tem como missão, derrotar "Lord Voldemort", que em verdade, representa a ira, a dor, a inveja e a infelicidade, que neste mundo em que vivemos reina sem se cansar de perseguir quem nasce para fazer o bem. Pois, quem nasce para fazer o bem, sempre é considerado um ser estranho, a quem muitos, por motivos diferentes, passam temer…

Fonte:
Texto enviado pela autora.

terça-feira, 26 de julho de 2022

Filemon Martins (Meu Pé de Jabuticaba)

Alguns amigos já conhecem essa história, mas resolvi registrar aqui porque é possível que outras pessoas tenham também passado pela decepção que passei.

Tudo começou em 2008 quando transferi minha residência de São Paulo para Itanhaém, litoral sul de São Paulo. Um amigo Flávio Mendonça já morava por lá desde 1996 e eu chegando lá vi que o quintal no fundo da casa era relativamente grande possibilitando o plantio de algumas floreiras e até árvores frutíferas, embora estivesse todo concretado. Fiz isso, plantei algumas flores, carambola, laranja e quis plantar um pé de jabuticaba. Convidei o amigo Flávio Mendonça e saímos atrás de uma muda de jabuticaba. No Balneário de Gaivotas entramos numa floricultura e achamos o pé de jabuticaba. Foi-nos informado de que se tratava de jabuticaba, tiramos dúvidas, conversamos, pagamos e levamos pra casa o objeto desejado.

Escolhemos o local e o amigo Flávio me ajudou a plantar o pé de jabuticaba. Ciente de que deveria regar diariamente, obedeci religiosamente. E aos poucos ela foi crescendo. E os anos também foram passando e quando eu comentava com alguém mais chegado que ela estava demorando dar frutos, ouvia sempre a mesma explicação. É assim mesmo, mas quando começar a frutificar, você vai ver. Apesar de o quintal estar todo concretado, minha neta Nicole plantou numa das floreiras, algumas sementes de melancia. E ela cuidava muito bem daquele pé de melancia. E nós também ajudamos nessa tarefa. E não é que tivemos melancias e tomates em cima daquele concreto?

Enquanto isso eu procurava todos os dias encontrar um fruto de jabuticaba naquele pé tão bem cuidado e nada. Tal como na passagem bíblica, onde "Jacó serviu sete anos como pastor a Labão, mas não servia ao pai, servia a Raquel, que ele amava e pretendia". Também eu me dedicava àquela jabuticabeira, já passava dos sete anos, até que, num certo dia contratei um jardineiro experiente para podar minhas plantas e lhe disse quando o Sr. terminar aqui na frente, lá atrás tem algumas plantas e árvores que precisam ser podadas, mas dê uma atenção especial à minha jabuticabeira e fui com ele até o fundo da casa para não haver dúvidas. Uma vez lá no fundo da casa, ele iniciou a poda e limpeza das plantas.

Em certo momento já próximo à jabuticabeira, ele me chamou Sr. Filemon, sua jabuticabeira é essa daqui? Respondi que sim. Ele, então, olhando para mim, disse: "O Sr. vai morrer sem conseguir colher uma jabuticaba daqui".

Fiquei atordoado e perguntei: estou tão mal assim? Ele percebeu o embaraço e foi logo dizendo não, não é isso. O problema é que essa árvore parece jabuticabeira, mas não é. Nunca foi. É muito comum essa confusão. É uma falsa jabuticabeira e disse o nome da árvore, que não me lembro. Contei a história para o meu amigo Flávio, que sugeriu, vamos arrancar e voltar lá para reclamar. Retruquei mas depois de quase 8 anos não vamos brigar. É possível que o moço da floricultura também tenha sido enganado. E foi assim que fiquei sem o meu pé de jabuticaba.

Um projeto para a construção de uma piscina se encarregou de tirar a árvore de lá. Mas um amigo de São Paulo, o Aparecido Donelli não me deixa esquecer do episódio. De quando em quando ele me manda fotos da jabuticabeira dele carregada de frutos. Acho que ele anda me provocando ou então me convidando para conhecer a jabuticabeira dele.

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 24: Por quem os sinos nunca deixaram de dobrar?!

Efetivamente, por nós. Faz muito tempo, eu diria, sem medo de errar, faz muito tempo que a coisa vem de remotos espaços que eu consideraria límbicos. Apesar desses abruptos extensos cercados de densas lacunares, você mora nos meus sonhos. Desde pequena você povoa meu universo de quimeras e devaneios. É como se a vida toda eu já soubesse de sua existência, sem você sequer existir dentro de mim. Junto com a minha vida, você veio e se concretizou como um presente caído do céu.

Uma prenda, eu diria sem medo de errar, um brinde de cunho valoroso com o qual eu sonhei a vida toda e nunca chegou, de verdade, às minhas mãos.  O meu querer, a minha aflição foi tão forte, tão intensa, que você acabou se materializando e caindo diretamente no meu caminho. Hoje, anos depois, que ironia! Somos adultos, temos vida própria, vivemos na mesma avenida e mesmo bairro... compramos no mesmo supermercado e quando temos alguma indisposição, a farmácia logo ali na esquina nos recebe de portas abertas.

Apesar de morarmos no mesmo prédio, dividimos a mesma portaria, vizinhos, cachorros, gatos, faxineiros, porteiros, elevadores, e quando falta luz, as mesmas escadas que nos levam ou nos trazem do topo, nos permitem descer ou subir usando os mesmos degraus e corrimões. Só o que não coincide é o andar. Uma gota no oceano, se visto pela lógica do espanto anunciado. Estou no décimo oitavo e você no décimo quinto.

Apesar desse pequeno deslize do destino, tivemos sorte. Numa dessas idas e vindas, nos esbarramos no hall de entrada. Você vinha cheia de sacolas de supermercado, e eu, as mãos sobrecarregadas de livros. A força do seu coração quando nos reencontramos, ficou marcada. Foi tão forte a emoção, tão densa a alegria, magnânimo o encantamento, enfim, tão robusta e eficaz, tão inexplicável, que ficamos estupefatos, como o doce enlevo que nos brindou, aproveitando a deixa e fez o caminho inverso, incendiando os recônditos da alma de uma maneira quase inexplicável.

Aproveitando a deixa, e fazendo o caminho inverso, incendiando os recônditos das nossas almas de uma maneira quase inexplicável, o “Acaso”. Por esse “Acaso”, os sinos nunca deixaram de reverberarem, incansáveis, em busca de nosso amor apartado. Nesse breve lapso, me senti na esteira dos vinte e cinco anos. Você e eu, cada um acondicionado dentro de um desses carrinhos de bate-bate, nos idos em que cursávamos a mesma faculdade e fugíamos das aulas chatas para comermos pipocas e tomarmos refrigerantes no parque que chegara recentemente à cidade.

Lembro que você ao me ver no saguão da porta do edifício, se abriu como mala velha, agigantou um sorriso largo, se faceirou, angelical e, ao mesmo tempo tão adulta, tão mulher... que num piscar de olhos seguinte ao reencontro, me flagrei ressuscitando pensamentos pretéritos e os colocando no ápice da sua magnificência. Você me superou. Foi além das expectativas. Se fez tão linda e carente, frágil e dócil que por breves quimeras fantasiosas imaginei, em delírio, houvesse saído do plano terrestre e ido parar em um planeta paralelo onde as eternidades se fazem plenas e intangíveis.

Sua voz, ao me reconhecer —, cedeu vez a um abalado grito clamoroso de acordar ilusões, e, acredite, todo meu ser se derramou auspicioso despertando em festa, de susto e espanto. Senti-me remoçado, como se vindo de uma academia de ginástica, os movimentos obtidos nos aparelhos, me devolvendo a flexibilidade de antes, tipo aquela força hercúlea de retorno, se engajando ao espírito e não só a ele, ao corpo inteiro, qual com uma febre de quarenta graus. Num segundo momento perdi a morbidez do medo, como um nadador que se atira na água depois de se esbambear hesitante por breves momentos perante um mergulho às escuras, apesar do pulo previamente planejado.

Com você de volta ao meu universo, desde então, cada espaço me preencheu com sua alacridade. Cada olhar, agora, é como se nascesse no meu eu “escondido”, um querer de júbilo etéreo. Mesmo tom, cada “mirada” sua, me permite perceber nitidamente um punhado de estrelas fulgurantes se revezando em pleno por do sol e, transformando as flores murchas do meu ontem esquecido, num imenso jardim, repaginando as nossas afeições imorredouras.

No vestíbulo de nosso prédio, desde aquele dia em que nos reencontramos, que nos reaproximamos, que reassumimos as almas apartadas, a partir daquele sublime minuto em que reatamos o elo que estava disperso, esquecido, adormecido e, além disso, no ensejo exato em que abrimos a passagem secreta para os desvãos possíveis, algo anormal se fez imperioso. Um milagre, eu diria, se condensou em formosuras. As sendas não ocorridas, os vales e as dimensões não percorridas... voltaram do nada, regressaram a todo vapor do agora.

Literalmente fomos atrás, saímos juntos, de mãos dadas, em busca de nosso amor. Tudo em derredor criou beleza e cor. As manhãs escuras afloraram engrinaldadas. Virou pura magia o nosso anfêmero. Não somos mais velhas lembranças adormecidas, figuras de filmes antigos, personagens de nossas dores e tristezas. Deixamos lá fora, na calçada, as fotografias amarelas, os papéis pálidos no palco onde nosso romance se tornou uma peça de final feliz. E o vento levou embora. Para bem longe, tão distante que não nos alcançará jamais.

Bem sabemos, conhecemos a realidade que a cada porvir se apressura mais forte e pujante. Na mesma linha benigna e complacente, um não sei o que de mavioso se avigorou e rejuvenesceu, rebrotou mais cálido e indestrutível dentro do nosso (ou melhor dizendo), dentro do acorrentado, no intrínseco daquilo que juntos, rostos colados, corpos em regozijo de transe, almas cativas ardendo em festa, corações tresloucados batendo na mesma pulsação, chamamos de ventura, bambúrrio, empolgação desmedida e, igualmente, de indubitável jocosidade.

Entre altos e baixos, subidas e descidas, línguas ferinas fustigando contra pessoas, a favor, outras não, chuvas e ventos, sol e escuridão... todas as intempéries, somadas a outros inumeráveis e infinitos repletados de intuitos maléficos, estamos superando, vencendo, dando a volta por cima. De todas as ciladas e insídias, saímos ilesos e vivos. Logramos viver presentemente, amarrados nos laços inquebrantáveis e indescritíveis da paz. Irmanados a ela, gozamos, a dois, do magnetismo surreal e contínuo da auspiciosa e sempre presente, FELICIDADE.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 24 de julho de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 10

 

Contos e Lendas do Paraná - 11 (Antonio Olinto – Arapoti – Piraí do Sul)


Município de Antonio Olinto

O CAIXÃO

Em um rio de Antonio Olinto há um caixão, todo feito de cimento, que vaga pelas águas; poucas pessoas conseguiram vê-lo, pois ele aparece às vezes. Dizem que um dia, quando um homem estava pescando viu o tal caixão. O pescador, que sempre levava uma arma, naquele dia já a havia utilizado para atirar em uma pomba na beira do rio; mas quando ele foi pegá-la só havia penas e o misterioso caixão. Assustado, foi contar para os amigos e vizinhos que logo foram ver no local o caixão.

Ao chegarem no local, nada havia; desapareceu o misterioso caixão. Contam, também, que para retirar esse caixão da água é preciso que se tenha dois bois gêmeos. As pessoas que viram esse caixão já tentaram tirá-lo da água, mas, até hoje, ninguém conseguiu.
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Município de Arapoti
O ESPÍRITO DO CEMITÉRIO

Há anos atrás ocorreu um fato no cemitério da cidade. Alguns jovens, em uma brincadeira de mau gosto, apostavam quem pegava mais cruzes, brincadeira esta que era muito comum naquela época. Certo dia, uma moça muito bonita faleceu por causa não relatada, deixando um clima sombrio no local. Ao chegar o dia de finados, mais ou menos duas semanas depois do acontecimento, um rapaz senta-se sobre um túmulo e repara em uma bela garota ao seu lado. Inicia-se a conversa entre os dois que acaba repentinamente quando ele revela que roubava cruzes. Ela o desafia a roubar uma cruz naquela noite, a sua própria. Ela entrega-lhe uma rosa e desaparece no meio de outras pessoas. Ele guarda a flor dentro do bolso, envolta em um lenço azul.

Naquela noite, para a surpresa dele e de seus amigos, não havia nenhuma lápide e nenhuma cruz; era como se aquele lugar nunca tivesse existido. Ele lembrou-se da rosa. Quando pôs a mão no bolso teve uma terrível surpresa: a rosa transformara-se em um pedaço de osso humano
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Município de Piraí do Sul
O TÚMULO DE MARIA QUEBRA

Já existindo como aglomerado populacional desde o início do século XVII, o então Bairro da Lança manteve até o início do século XX as mesmas características das povoações habitadas por portugueses e seus descendentes, em sua convivência com o índio e o negro. A Proclamação da Independência, a libertação dos escravos, a Proclamação da República ou a Revolução Federalista, ou outro fato nacional, em muito pouco modificaram o dia-a-dia dos habitantes do Bairro da Lança. Localizado às margens do caminho do Viamão a Sorocaba, o pequeno povoado que englobava as localidades de Cercadinho (Campo Comprido), Lança, Silva, Fundão, Machadinho, Furnas (Murtinho), Tabor e Jararaca, assistia à passagem do viajante que demandava São Paulo ao Rio Grande do Sul, ou dos Pampas ao Norte do País.

Por ser o único caminho de ligação com o sul do Brasil, ou acolhia o tropeiro em sua passagem para a feira de Sorocaba, ou na volta aos campos de criação do Sul, sem que as características do seu dia-a-dia fossem modificadas significativamente.

Os mortos eram enterrados com o tradicional cerimonial da época, nos cemitérios existentes nas concentrações mais importantes do bairro como: Campo da Lança, Campo Comprido, Furnas e Fundão e mais recentemente no cemitério da Vila Piraí, localizado no Alto da Rua XV, onde os portugueses, brasileiros, índios ou escravos recebiam sepultura sob as bênçãos da fé cristã, o respeito às Leis, aos costumes e à tradição.

Entre os séculos XIX e XX, residia na rua hoje denominada Julieta Veiga Queiroz, nas imediações da casa de dona Zelinda Miro, uma senhora a quem chamavam “Maria Quebra”. Tinha esse nome em razão do gênio atirado, ou por suas atitudes violentas e rudes, o que era motivo constante de brigas e desentendimentos, o que lhe valeu o apelido.

A passagem para o século XX veio trazer a Piraí do Sul sensíveis modificações em todos os segmentos da vida local, notadamente em seus costumes e hábitos, comércio, sociedade, modificações estas que perduram até o final da Primeira Guerra Mundial. A população local que era constituída essencialmente de descendentes de portugueses, com suas mesclas com o índio e o negro, recebeu o choque da imigração europeia (alemães, poloneses, russos/ucranianos e italianos), bem como um significativo contingente árabe. Novos rumos tomou o aglomerado populacional, com um significativo aumento na construção de casas em novos estilos e o traçado de novas ruas.

O dia-a-dia da Vila Piraí foi modificado sensivelmente, com novos hábitos na vida social, na igreja, no casamento, na comida, na escola, no comércio e na política, conservando até hoje a influência da imigração italiana. Com o aumento da população da sede da Vila, o pequeno cemitério da rua XV (alto), passa a receber os mortos não só da zona urbana, mas também da zona rural, recebendo melhoramentos, bem como túmulos artisticamente construídos.

Maria Quebra, na sua vivência com bebidas e festas e pela vida devassa que levava, contraiu o mal de Hansen, tendo padecido por longos anos desta enfermidade. Em meados do ano de 1917 veio a falecer, preparando-se o seu sepultamento, que seria realizado no cemitério ao alto da rua XV, como era de costume para os moradores da Vila. Sepultamento esse que não foi autorizado, sob a alegação de que Maria Quebra havia morrido de lepra e não poderia ser enterrada junto aos mortos daquele cemitério.

O cemitério mais próximo da Vila era o Campo da Lança, que estava sendo desativado, primeiro pelo novo hábito de se utilizar o cemitério da Vila e, também, porque o local estava infestado de tatus rabo mole, ou testa de ferro; animais que profanavam as sepulturas, levando a que as famílias se negassem a enterrar seus mortos naquele local. O cadáver de Maria Quebra, insepulto, esperava local para seu merecido descanso, tendo em vista a negativa da autorização do uso do cemitério municipal.

Por fim, decidiu-se que ela poderia ser enterrada nas proximidades daquele campo santo, desde que fora dos muros. Assim, Maria Quebra recebeu sepultura ao lado direito da estrada que passa nos fundos do cemitério municipal e vai em direção ao bairro do Bonsucesso. Sua sepultura está a uns 700 metros além dos muros, ao pé de um centenário cedreiro, onde até hoje alguns devotos depositam suas preces e oferendas.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 8 =

CORPO NO MAR

Água densa do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías:
barca imóvel, estrela cega.

Bate o vento na vela e não a arqueia.
— Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
os remos entraram por dentro da areia...

Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
— Inútil forçá-los — alastram-se, fogem
na sombra secreta de eternos países...

Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
— Alto e longe! — Não foi por mim...

E apenas para
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...

O vento sopra no coração.

Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.

Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
«Marinheiro! Marinheiro!»

(Ilhas...Pássaros...Portos... — nesse ruído,
— O mar...O mar!...O mar inteiro!...)

Mas é tempo perdido!
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DESCRIÇÃO

Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.

Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
Cai para sempre!

E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sobre a sua passagem.

(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fora da natureza,

onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e desliza, que nasce e desliza...)
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DIÁLOGO

Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuado através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e respostas se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.

Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...

E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.
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ESTRELA

Quem viu aquele que se inclinou sobre palavras trêmulas,
de relevo partido e de contorno perturbado,
querendo achar lá dentro o rosto que dirige os sonhos,
para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado?

Quem foi que o viu passar com sues ímãs insones,
buscando o polo que girava sempre no vento?
— Seus olhos iam nos pés, destruindo todas as raízes líricas,
e em suas mãos sangrava o pensamento.

E era o seu rosto, sim, que estava entre versos andróginos,
preso em círculos de ar, sobre um instante de festa!
Boca fechada sob flores venenosas,
e uma estrela de cinza na testa.

Bem que ele quis chamar pelo seu nome em voz muito alta,
— mas o desejo não foi além do seu pescoço.
E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se
como o frio dentro de um poço.

E não pode contar a ninguém seu fim quimérico.
A ninguém. Pois a língua que fora sua estava morta,
e ele era um prisioneiro entre paredes transparentes,
entre paredes transparentes, mas sem porta.

Disto ele soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe amarra
o coração com ardentes cordas de desgosto
é aquela estrela de cinza — aquela estrela grande e plácida —
derramando sombra em seu rosto.
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NOTURNO

Volto a cabeça para a montanha
e abandono os pés para o mar.
— Coitado de quem está sozinho
e inventa sonhos com que sonhar!

Minhas tranças descem pela casa abaixo,
entram nas paredes, vão te procurar.
Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos.
— Querido, querido, devias voltar.

Meus braços caminham pelas ruas quietas:
— caminho de rios, fluidez de luar... —
levam minhas mãos por todo o seu corpo:
— Querido, querido, devias voltar.

Partem os meus olhos, parte a minha boca,
Na noite deserta, ninguém vê passar,
pedaço a pedaço, minha vida inteira,
nem na tua casa me escutam chegar.

Meu quarto vazio só pensa que durmo...

Coitado de quem está sozinho
e assiste o seu próprio sonhar!

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.