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domingo, 4 de setembro de 2022
Adega de Versos 89: Renato Alves
José Roberto Balestra (Versos Avulsos)
O tempo acelera, mas... PACIÊNCIA; a vida é tão rara...
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida tão rara
Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo, e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência
Será que é o tempo que me falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber?
A vida é tão rara (tão rara)
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, eu sei, a vida não para (A vida não para, não)
A vida não para
A vida é tão rara...
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Há mais no céu de hoje do que se imagina…
O sol que fica perto de lá... bemol
Neblina que vem d’manhã... é sol
Dó de si o é porque foi... sustenido
E si de dó na volta é bemol... sustentado
Advertiu Riobaldo; viver é muito perigoso!
Então hoje vou estar mais preocupado.
Porque quando não aparece o tinhoso
Costuma vir o secretário atentado.
Preciso me benzer com muito sal:
Hoje tem Lua mais longe de noite
E também eclipse lunar penumbral
Acho muito pr’um só dia de açoite
Assim peço, e me sinto consolado:
- Valei-me meu São Serapião,
Protetor dos órfãos e abandonados,
Tira-me os pés das más coisas do chão
De hoje…
Fonte:
Blog A Balestra
https://zerobertoballestra.blogspot.com/
Blog A Balestra
https://zerobertoballestra.blogspot.com/
sábado, 3 de setembro de 2022
Milton S. Souza (A melhor coisa do mundo)
A pergunta que aquela professora de quarta série de uma escola municipal de Santo Antônio da Patrulha fez para os seus alunos deixou a classe inteira agitada. Ela deu dez minutos para eles responderem por escrito “Qual a melhor coisa do mundo?”. Depois de diversas consultas entre eles, com a formação de grupinhos, os alunos baixaram a cabeça e começaram a escrever as suas respostas. Quando todos terminaram, a professora recolheu as folhas, separou por assuntos, e começou um debate em sala de aula.
A grande maioria dos alunos colocou a saúde como melhor coisa do mundo. Mas alguns pensaram diferente.
Para aquela menininha de tranças, olhar triste e perdido, “a melhor coisa do mundo é ter um pai e uma mãe”. Ela completou dizendo que “não é fácil viver jogada no mundo e ser criada por estranhos”.
O garoto mais bagunceiro da classe afirmou que “a melhor coisa do mundo é matar aula para jogar futebol”.
A garota de óculos “fundo de garrafa” que sempre sentava na primeira fila ressaltou que “A melhor coisa do mundo é enxergar bem”.
O menininho raquítico e esfarrapado, que já havia sido ajudado várias vezes pelo atendimento social da escola, garantiu que “a melhor coisa do mundo é ter o que comer”.
E aquela garota gordinha, que seguidamente trazia flores ou maçãs para a professora, esbanjou puxa-saquismo dizendo que “a melhor coisa do mundo é ter uma professora como a senhora”...
Nem é preciso dizer que o debate na sala de aula rendeu muito. O grupo que apostou na saúde enfrentou todos os outros dizendo que “sem saúde não adianta ter comida, casa, mãe e pai ou qualquer outra coisa”. Ao defender a ideia, eles até conquistaram os apoios de vários daqueles que pensavam diferente. Até o matador de aulas concordou que sem a saúde não dava para jogar futebol. Mas o grupo não conseguiu convencer a menina de tranças de que saúde é melhor do que ter pai e mãe: “Se alguém não tem saúde, mas tem um pai e um mãe para lhe cuidar, pode superar os seus problemas. Se alguém tem saúde, mas não tem pai e mãe, pode ficar doente por viver atirada no mundo”. A lógica da menina chegou a emocionar a professora. No final da aula, ela explicou para os alunos que a melhor coisa do mundo seria aquela que a gente estivesse necessitando com urgência naquele momento, seja a saúde, uma casa, um pai ou uma mãe e até um copo de água para matar a sede.
E você, leitor, que resposta daria para aquela pergunta? Eu, por exemplo, teria muita dificuldade para responder. São tantas as coisas boas e valiosas que Deus coloca todos os dias na minha vida que seria quase impossível optar por apenas uma. Talvez eu ficasse com o amor daquela pessoa que mais amo. Talvez colocasse nesta resposta a minha família inteira. Talvez tivesse que pensar muito antes de retirar das opções as minhas duas maiores manias: ler e escrever. Qualquer resposta, por certo, ficaria incompleta. Por isso, vou apostar em uma mais simples que, no meu modo de ver, consegue englobar todas as outras: “A melhor coisa do mundo é, mesmo, viver”…
Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/84963
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/84963
Fabiano Wanderley (Glosas) - 6
BEHRING LEIROS, O POETA,
PÕE NO VERSO, O CORAÇÃO.
Com o esmero, que secreta,
sabe expor, seu sentimento,
faz fluir o seu talento,
Behring Leiros, o poeta.
Quando na alma, ele arquiteta,
uma grande inspiração,
trás no afã dessa emoção,
todo o ardor da sua essência,
com ternura e sapiência,
põe no verso, o coração.
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CADA QUAL TEM SEU ALGOZ
NESTE MUNDO DE MORTAIS
É próprio, de todos nós,
seja rico ou seja pobre,
preto escravo ou senhor nobre,
cada qual, tem seu algoz.
Quem não teve um dia atroz?
Se, ante a Deus, somos iguais.
Não esqueçamos, jamais,
que os ricos também padecem,
que afinal todos perecem,
neste mundo de mortais.
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ESSE CARA NUNCA MENTE,
PORÉM VERDADE NÃO DIZ.
Se escuta, frequentemente,
que ele é dono da verdade,
que adora a sinceridade,
esse cara nunca mente.
Eis que sabe muita gente,
cá, do café São Luiz,
que o mesmo, se contradiz,
nas coisas que ele comenta,
se, de fato, não inventa,
porém verdade não diz.
(A um cidadão, que gosta muito de contar vantagem, mas, que fica furioso, se acha, alguém que o discorde)
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O SENHOR JÁ ME OFERTOU
SETENTA ESTRADAS DE VIDA.
Amigos me premiou,
me deu luz, felicidade,
um grande amor de verdade,
o Senhor já me ofertou.
Também me presenteou
nesta estrada prometida,
uma família querida,
com muita paz e carinho,
marcando, no meu caminho,
setenta estradas de vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
PELAS ANDANÇAS DA VIDA,
ME VI, NA TRILHA DO TEMPO.
Buscando sempre guarida,
ante os prazeres do mundo,
vivi meu tempo fecundo,
pelas andanças da vida.
Essa fase tão vivida,
como um mero passatempo,
sem hora, sem contratempo,
sem queixas ou desenganos,
levou consigo, meus anos,
me vi, na trilha do tempo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
TÃO SOMENTE POR AMOR
CAPOTOU MEU CORAÇÃO...
Fez-se um servo, um servidor,
se entregou de corpo inteiro,
se tornou prisioneiro,
tão somente por amor.
Quase em meio a um torpor,
sem conter tanta emoção,
desprendeu sua paixão,
seu amor tão inerente
e aos pés da Deusa, fremente,
prostrou-se o meu coração.
O SENHOR JÁ ME OFERTOU
SETENTA ESTRADAS DE VIDA.
Amigos me premiou,
me deu luz, felicidade,
um grande amor de verdade,
o Senhor já me ofertou.
Também me presenteou
nesta estrada prometida,
uma família querida,
com muita paz e carinho,
marcando, no meu caminho,
setenta estradas de vida.
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PELAS ANDANÇAS DA VIDA,
ME VI, NA TRILHA DO TEMPO.
Buscando sempre guarida,
ante os prazeres do mundo,
vivi meu tempo fecundo,
pelas andanças da vida.
Essa fase tão vivida,
como um mero passatempo,
sem hora, sem contratempo,
sem queixas ou desenganos,
levou consigo, meus anos,
me vi, na trilha do tempo!
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TÃO SOMENTE POR AMOR
CAPOTOU MEU CORAÇÃO...
Fez-se um servo, um servidor,
se entregou de corpo inteiro,
se tornou prisioneiro,
tão somente por amor.
Quase em meio a um torpor,
sem conter tanta emoção,
desprendeu sua paixão,
seu amor tão inerente
e aos pés da Deusa, fremente,
prostrou-se o meu coração.
Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.
Aparecido Raimundo de Souza (Arcanjo renegado)
VOCÊ CHEGOU até aqui, não sei vinda de onde, ou a mando de quem. Sei apenas que apareceu do nada, a procura de uma vaga de emprego. Deixou um currículo simples sobre a minha mesa, com foto, telefone de residência, celular, três pessoas conhecidas para discorrerem sobre o seu caráter. Enfim, um portfólio simples, resumido, com os acessórios necessários para um contato posterior, caso eu optasse por eleger o seu nome ao cargo vago na empresa da qual exatos vinte anos tenho sido o insubstituível diretor de recursos humanos. Aconteceu que junto com a pequena apresentação por você trazida, veio algo mais forte embutido no contexto. Na verdade, de roldão, caiu de dentro do envelope rosa, um elo forte, mais robusto que a sua própria vontade de querer trabalhar.
Diria que junto com aquela folha de papel, um perfume inebriante (cuja essência entrou pela sala) se fez mais fornido (*1). Grudou nas paredes. Em contínuo, aderiu aos quadros, se anexou aos móveis e, deles, partiu direto se “adjuntando” (*2) para dentro de mim, indo, por consequência, se alojar sorrateiro num lugarzinho secreto existente em meu âmago e também no centro nevrálgico do meu coração. Você deixou, melhor dito, não deixou... ficaram de você, pedacinhos de sua beleza entrelaçados com estilhaços do seu carisma. Igualmente fragmentos de sorrisos bonitos e indescritíveis permaneceram gravados na minha retina. De contrapeso, um mistério bucólico se projetou no ar, e junto, um segredo perene, um mimo cresceu imensamente a partir do momento em que, dado por encerrada a entrevista, você se levantou, me desejou um bom dia, sorriu brejeira e maviosa.
Em seguida, a sua beleza ímpar virou as costas e foi embora. Partiu, e quando me dei conta, percebi que o calor abrasante da sua presença havia se incrustrado em minhas entranhas. O seu cheiro de mulher se fez retido no HD da minha memória. E não foi só. O seu cheiro de fêmea à flor do cio, persistiu veemente, e, logo em seguida, se propagou ensandecendo o meu franzino de homem literalmente esfanicado (*3). A sua voz, ainda agora, tanto tempo passado, ouço, serena e calma, tranquila e deliciosa, “caliente” e fagueira nos meus sonhos, de onde, aliás, nunca mais consegui apagar. Digo tudo o que me vai na alma, nesse exato momento e, tal fato, jogado no ar, assim abertamente, tem o condão de extravasar de dentro da alma o que antes se fez convicção, porque depois daquela despedida, algo inusitado mudou os destinos e os rumos da minha vidinha pacata.
O meu “eu” passou a viver exclusivamente para fortalecer o seu absentismo (*4). Lembro, dias depois, voltei a ligar e marcamos um apontamento, ou melhor, você me fez um convite que considerei excêntrico e original. Pediu que na sexta-feira, por volta do meio dia, fosse até a sua casa almoçar e, na oportunidade, conhecer a sua mãe. Pior que não resisti à tentação. Não é que não aguentei. Simplesmente não me furtei ao impulso incitante do chamamento. Fora de mim, alvoroçado pelo que sentia, me coloquei em brios de um sujeito sério e respeitoso e meu Deus, lá fui eu, embasbacado, lustrando as presas para o golpe da fera adormecida, caso atonasse. Brincadeira, modo de dizer. Apareci como combinado, de cara limpa, a única, aliás, que me acompanhou desde que me entendi por gente. Surgi assim como você em minha sala, exceto pelo atraso. Quase às duas da tarde, para o tal almoço. Demorasse mais um bocadinho, certamente mataria a sua mãe de fome e a Frigidaire azul dos tempos de Belchior de vergonha (*5).
Depois dos comes e bebes, sentamos na sala. Conversamos, tomamos café, lanchamos e, quase às dez horas da noite chegou a hora de tirar o time de campo. Passado a magia do inaugural, na segunda-feira voltamos a renovar tudo o que havíamos feito. Lanchamos na padaria perto da empresa. Na terça-feira, você sumiu de vez. Não sei para onde. Escafedeu. Liguei por diversas vezes e ninguém atendeu, nem a sua mãe o telefone fixo. Nessa brincadeira infeliz, um mês se passou. Não mais tivemos contato, nem pessoalmente, nem por WhatsApp. Por esse motivo, bem por esse motivo, acredito, me favoreço com a nostalgia ingrata da sua dispersão. E, por ela, creio, permaneceu no ar, desde sempre, um vazio muito grande, um oco doentio que se tornou maior com o passar das horas e das semanas subsequentes.
Cinco meses hoje. Acabou. Agora entendo, a cabeça ainda doendo, os batimentos acelerados, todavia os pés firmes assentados no chão. Percebo, tudo o que vivemos em tão curto espaço de tempo, virou saudade. O que foi dito e o que não saiu pelas nossas bocas escancaradas, naqueles encontros me faz pensar que coloquei cupim na Santa Cruz. Sinto, em paralelo, no calor destilado da minha emoção, as risadas que demos, os abraços trocados, os beijos permutados, o amor disparatado dentro do carro na garagem da sua casa... me recordo sobremaneira, despindo a goles poucos, o seu corpo diante de uma expressão contumácia. Recapitulo as nossas pernas enclausuradas qual cadeado emperrado... enfim, final de tudo, nossos suores ajoujados como dois gatos selvagens brigando por um ratinho de esgoto. Tudo acabou em coisa alguma, atrelada numa sequência degenerativa que se transformou nessa lacuna enorme e de inconsequente solidão.
Tenho consciência que embarquei numa canoa furada e somente eu careço urgentemente de encerrar essa viagem. Colocar um ponto final definitivo bem sei, demanda, o mais depressa possível à minha consciência desequilibrada. Necessito antes que morra de nostalgia pelo silêncio iracundo (*6) que se perpetuou em derredor da minha vida, me restabelecer à normalidade. De resto, esquecer a sua vinda ao meu quadrado, ao meu mundo. Rasgar o seu currículo em pedacinhos e jogar no lixo o seu retrato. Apagar do meu celular os seus telefones, as conversas e mensagens que trocamos. Tenho que olvidar, igualmente esquecer a sua rua, o seu bairro, a sua mãe, a casa, o almoço, o lanche na padaria, o amor inesquecível que fizemos no banco traseiro do automóvel. Ou isso... ou, em patente hostil e nocivo, acabarei louco... um tresloucado varrido desorbitado e à mercê da própria imbecilidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Notas de rodapé:
1 – Fornido: O mesmo que abastecido, robusto, corpulento
2 – Adjuntando: Aquilo que está próximo, contíguo, agregado
3 – Esfanicado: Despedaçado, esmigalhado, esfarrapado
4 – Absentismo: O que falta com seus deveres e obrigações
5 – Frigidaire: Geladeira, refrigerador
6 – Iracundo: Pessoa cheia de ira, encolerizado, violento
Diria que junto com aquela folha de papel, um perfume inebriante (cuja essência entrou pela sala) se fez mais fornido (*1). Grudou nas paredes. Em contínuo, aderiu aos quadros, se anexou aos móveis e, deles, partiu direto se “adjuntando” (*2) para dentro de mim, indo, por consequência, se alojar sorrateiro num lugarzinho secreto existente em meu âmago e também no centro nevrálgico do meu coração. Você deixou, melhor dito, não deixou... ficaram de você, pedacinhos de sua beleza entrelaçados com estilhaços do seu carisma. Igualmente fragmentos de sorrisos bonitos e indescritíveis permaneceram gravados na minha retina. De contrapeso, um mistério bucólico se projetou no ar, e junto, um segredo perene, um mimo cresceu imensamente a partir do momento em que, dado por encerrada a entrevista, você se levantou, me desejou um bom dia, sorriu brejeira e maviosa.
Em seguida, a sua beleza ímpar virou as costas e foi embora. Partiu, e quando me dei conta, percebi que o calor abrasante da sua presença havia se incrustrado em minhas entranhas. O seu cheiro de mulher se fez retido no HD da minha memória. E não foi só. O seu cheiro de fêmea à flor do cio, persistiu veemente, e, logo em seguida, se propagou ensandecendo o meu franzino de homem literalmente esfanicado (*3). A sua voz, ainda agora, tanto tempo passado, ouço, serena e calma, tranquila e deliciosa, “caliente” e fagueira nos meus sonhos, de onde, aliás, nunca mais consegui apagar. Digo tudo o que me vai na alma, nesse exato momento e, tal fato, jogado no ar, assim abertamente, tem o condão de extravasar de dentro da alma o que antes se fez convicção, porque depois daquela despedida, algo inusitado mudou os destinos e os rumos da minha vidinha pacata.
O meu “eu” passou a viver exclusivamente para fortalecer o seu absentismo (*4). Lembro, dias depois, voltei a ligar e marcamos um apontamento, ou melhor, você me fez um convite que considerei excêntrico e original. Pediu que na sexta-feira, por volta do meio dia, fosse até a sua casa almoçar e, na oportunidade, conhecer a sua mãe. Pior que não resisti à tentação. Não é que não aguentei. Simplesmente não me furtei ao impulso incitante do chamamento. Fora de mim, alvoroçado pelo que sentia, me coloquei em brios de um sujeito sério e respeitoso e meu Deus, lá fui eu, embasbacado, lustrando as presas para o golpe da fera adormecida, caso atonasse. Brincadeira, modo de dizer. Apareci como combinado, de cara limpa, a única, aliás, que me acompanhou desde que me entendi por gente. Surgi assim como você em minha sala, exceto pelo atraso. Quase às duas da tarde, para o tal almoço. Demorasse mais um bocadinho, certamente mataria a sua mãe de fome e a Frigidaire azul dos tempos de Belchior de vergonha (*5).
Depois dos comes e bebes, sentamos na sala. Conversamos, tomamos café, lanchamos e, quase às dez horas da noite chegou a hora de tirar o time de campo. Passado a magia do inaugural, na segunda-feira voltamos a renovar tudo o que havíamos feito. Lanchamos na padaria perto da empresa. Na terça-feira, você sumiu de vez. Não sei para onde. Escafedeu. Liguei por diversas vezes e ninguém atendeu, nem a sua mãe o telefone fixo. Nessa brincadeira infeliz, um mês se passou. Não mais tivemos contato, nem pessoalmente, nem por WhatsApp. Por esse motivo, bem por esse motivo, acredito, me favoreço com a nostalgia ingrata da sua dispersão. E, por ela, creio, permaneceu no ar, desde sempre, um vazio muito grande, um oco doentio que se tornou maior com o passar das horas e das semanas subsequentes.
Cinco meses hoje. Acabou. Agora entendo, a cabeça ainda doendo, os batimentos acelerados, todavia os pés firmes assentados no chão. Percebo, tudo o que vivemos em tão curto espaço de tempo, virou saudade. O que foi dito e o que não saiu pelas nossas bocas escancaradas, naqueles encontros me faz pensar que coloquei cupim na Santa Cruz. Sinto, em paralelo, no calor destilado da minha emoção, as risadas que demos, os abraços trocados, os beijos permutados, o amor disparatado dentro do carro na garagem da sua casa... me recordo sobremaneira, despindo a goles poucos, o seu corpo diante de uma expressão contumácia. Recapitulo as nossas pernas enclausuradas qual cadeado emperrado... enfim, final de tudo, nossos suores ajoujados como dois gatos selvagens brigando por um ratinho de esgoto. Tudo acabou em coisa alguma, atrelada numa sequência degenerativa que se transformou nessa lacuna enorme e de inconsequente solidão.
Tenho consciência que embarquei numa canoa furada e somente eu careço urgentemente de encerrar essa viagem. Colocar um ponto final definitivo bem sei, demanda, o mais depressa possível à minha consciência desequilibrada. Necessito antes que morra de nostalgia pelo silêncio iracundo (*6) que se perpetuou em derredor da minha vida, me restabelecer à normalidade. De resto, esquecer a sua vinda ao meu quadrado, ao meu mundo. Rasgar o seu currículo em pedacinhos e jogar no lixo o seu retrato. Apagar do meu celular os seus telefones, as conversas e mensagens que trocamos. Tenho que olvidar, igualmente esquecer a sua rua, o seu bairro, a sua mãe, a casa, o almoço, o lanche na padaria, o amor inesquecível que fizemos no banco traseiro do automóvel. Ou isso... ou, em patente hostil e nocivo, acabarei louco... um tresloucado varrido desorbitado e à mercê da própria imbecilidade.
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* Notas de rodapé:
1 – Fornido: O mesmo que abastecido, robusto, corpulento
2 – Adjuntando: Aquilo que está próximo, contíguo, agregado
3 – Esfanicado: Despedaçado, esmigalhado, esfarrapado
4 – Absentismo: O que falta com seus deveres e obrigações
5 – Frigidaire: Geladeira, refrigerador
6 – Iracundo: Pessoa cheia de ira, encolerizado, violento
Fonte:
Texto e notas de rodapé enviados pelo autor.
Texto e notas de rodapé enviados pelo autor.
sexta-feira, 2 de setembro de 2022
Daniel Maurício (Poética) 38
Humberto de Campos (As camisas)
Há muitos dias que o Dr. Abelardo insistia com a mulher, a encantadora D. Silvia, para que usasse umas camisas de seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe deviam assentar admiravelmente sobre a pele clara, macia, cetinosa. Apaixonada pelo marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura Luizita Corrêa, D. Silvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do quarto de vestir, em que guardava as suas roupas de interior e, tirando as dezenas de camisas que ali estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a uma, ao esposo:
- É assim?
- Não.
- É dessas, de seda, enfiadas de fita?
- Não.
- É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?
- Também não!
E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.
- Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?
D. Silvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:
- Camisas de dia, de seda, para senhora; n. 3.
- Que cor? - indagou, solicita, a moça que o atendeu.
- Cor de rosa.
A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato, exigente.
- Não são destas? - consultou.
- Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.
- Ah! Já sei! - exclamou a mocinha, sorrindo.
E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.
- Julieta!
Apareceu, em cima, no balaústre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.
- Manda-me dali, por favor - pediu - a caixa de camisas n. 8.645.
E, particularizando, alto:
- Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?
Quando as camisas desceram das nuvens, D. Silvia tinha subido.
- É assim?
- Não.
- É dessas, de seda, enfiadas de fita?
- Não.
- É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?
- Também não!
E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.
- Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?
D. Silvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:
- Camisas de dia, de seda, para senhora; n. 3.
- Que cor? - indagou, solicita, a moça que o atendeu.
- Cor de rosa.
A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato, exigente.
- Não são destas? - consultou.
- Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.
- Ah! Já sei! - exclamou a mocinha, sorrindo.
E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.
- Julieta!
Apareceu, em cima, no balaústre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.
- Manda-me dali, por favor - pediu - a caixa de camisas n. 8.645.
E, particularizando, alto:
- Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?
Quando as camisas desceram das nuvens, D. Silvia tinha subido.
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Jaqueline Machado (A cor púrpura)
Cellie, a instigante personagem da obra: A Cor Púrpura, da incrível autora Alice Walker, não nasceu para a vida. Nasceu sim, para a dor, para o horror e para a aceitação do que é inaceitável.
A jovem negra, nascida numa fazenda, quase sem estudos, nunca teve direito a nada. Passou por todos os tipos de torturas, inclusive a de ser violentada pelo próprio pai. Pai, não, um monstro que a engravidou duas vezes e vendeu as crianças logo após nascerem.
Cellie era muito apegada à sua irmã Nety, mais jovem e mais estudiosa. Com ela, tentava desenvolver alguns estudos, mas com a sua mente cansada e sem propósitos, quase nada conseguia assimilar. Seu coração triste, mais sombrio ainda ficou depois que sua irmãzinha tão jovem, casou-se com um viúvo que tinha idade para ser seu pai.
Pobre Cellie, só lhe restava os constantes desabafos que fazia diariamente escrevendo cartas para Deus, com as suas rudimentares mal traçadas linhas.
Com mais ou menos vinte anos, ela é vendida a Albert, um homem cheio de filhos. Era mais escrava do que esposa. Cuidava da casa, das crianças, do roçado e, como se não bastasse, ainda teve que abrigar e cuidar da amante do marido, uma cantora chamada Avery Shug, que estava doente. Mas para surpresa geral, as duas ficaram amigas. Avery era uma mulher ousada, livre em seus pensamentos e ajudou a mudar a mentalidade abnegada da esposa - escrava.
A cantora gostava de Albert, mas, com a saúde estabelecida, passou a gostar mais ainda da mulher do seu amante, com quem viveu um romance. Antes da chegada de Avery, Cellie não conhecia prazer e vontades. Direitos humanos, para ela, pertencia ao pós- morte. Pensava: “A vida aqui na Terra passa rápido, mas o paraíso é eterno”.
Porém, mais tarde passou a ter voz e fazer valer as suas opiniões numa sociedade norte-americana, onde a utilidade da mulher negra era apenas servir.
História triste e ao mesmo tempo bela. Sua mensagem reflete as problemáticas sociais do passado e do nosso presente.
A jovem negra, nascida numa fazenda, quase sem estudos, nunca teve direito a nada. Passou por todos os tipos de torturas, inclusive a de ser violentada pelo próprio pai. Pai, não, um monstro que a engravidou duas vezes e vendeu as crianças logo após nascerem.
Cellie era muito apegada à sua irmã Nety, mais jovem e mais estudiosa. Com ela, tentava desenvolver alguns estudos, mas com a sua mente cansada e sem propósitos, quase nada conseguia assimilar. Seu coração triste, mais sombrio ainda ficou depois que sua irmãzinha tão jovem, casou-se com um viúvo que tinha idade para ser seu pai.
Pobre Cellie, só lhe restava os constantes desabafos que fazia diariamente escrevendo cartas para Deus, com as suas rudimentares mal traçadas linhas.
Com mais ou menos vinte anos, ela é vendida a Albert, um homem cheio de filhos. Era mais escrava do que esposa. Cuidava da casa, das crianças, do roçado e, como se não bastasse, ainda teve que abrigar e cuidar da amante do marido, uma cantora chamada Avery Shug, que estava doente. Mas para surpresa geral, as duas ficaram amigas. Avery era uma mulher ousada, livre em seus pensamentos e ajudou a mudar a mentalidade abnegada da esposa - escrava.
A cantora gostava de Albert, mas, com a saúde estabelecida, passou a gostar mais ainda da mulher do seu amante, com quem viveu um romance. Antes da chegada de Avery, Cellie não conhecia prazer e vontades. Direitos humanos, para ela, pertencia ao pós- morte. Pensava: “A vida aqui na Terra passa rápido, mas o paraíso é eterno”.
Porém, mais tarde passou a ter voz e fazer valer as suas opiniões numa sociedade norte-americana, onde a utilidade da mulher negra era apenas servir.
História triste e ao mesmo tempo bela. Sua mensagem reflete as problemáticas sociais do passado e do nosso presente.
Fonte:
Texto enviado pela autora
Texto enviado pela autora
quinta-feira, 1 de setembro de 2022
Aparecido Raimundo de Souza (Tudo aconteceu no silêncio de um instante)
DE REPENTE você se fez real, palpitante, verdadeiro e incontestável. A sua vinda triunfal se misturou ao bulício inquietante de uma espera auspiciosa e vibrou dentro de mim em particular, como uma música suave que encantou o meu espírito e inebriou o que, num piscar de olhos, se tornou imensurável. Por conta de fenomenal milagre, me peguei em transe contínuo. Vibrei o âmago como se estivesse em uma roda da Cumbiamba (*1). E não parei por aí. Vi-me, a partir de regalos auspiciosos, viajando envolto em nuvens sedentas de paz e aconchego, como se devaneasse num sonho fascinante, um embevecimento que nunca antes havia descoberto dentro da minha galopante e tola obscuridade. Pequeno ser recém-chegado de um mundo distante, bem longe da Terra, você se materializou em flor botão.
Se abriu sempiterno e imarcescível, se fez jubiloso, como na reencarnação de um ser engrandecido, se aconchegou de forma magistral em meu peito, se transformou como uma esperança nova a tecer no quadro da minha vida pregressa, caminhos novos, estradas e sendas que até então eu não sabia existirem em meu destino. O seu rostinho moldado nas asas de um amor angelical, se propagou em uma cópia justa e perfeita, tal como se em seu semblante eu revisse, num filme da infância longínqua, a minha Narjara (*2) em melodiosa ascendência no florido trinta de junho de mil novecentos e oitenta e nove.
Faço menção aqui, meu neto Miguel, e quero que você saiba, desde agora, um dia, quando tiver entendimento, a sua mãe, minha filha, quando ainda, na sua inocência mal desabrochada, brincava por ruas descalças nos meus anseios e eu nem sabia direito o que se constituía ser um “pai de verdade”.
Em outras palavras, eu não tinha pontos de referências robustos para entender, em todo o esplendor, o verdadeiro significado do que meus familiares me apontavam como o folguedo da tal Felicidade. Via-me meio sem juízo, como Holden Caulfield (*3) aos dezessete anos. Agora, meu lindo, nada do que ficou na partícula da distância importa. O que faz toda a diferença é que você se fez viçoso e luxuriante, assim do nada, e, agora, descansa envolto em um berço de fronhas e lençóis recheados de muito amor e carinho. Pois é, meu Príncipe! Você veio de mansinho. Viajou nove longos meses agasalhado em um lugarzinho secreto e, ao chegar, me abriu, no âmago do coração despedaçado, lembranças de outros tempos.
Trouxe, na bagagem, ao meu agora, velhos rascunhos amarrotados de um “tenebroso passado” que dormitava quieto e anônimo dentro da minha imaginação sequiosa e à espera do momento certo e oportuno de vingar, coroar e me fazer voltar a ser avô novamente. O milagre, pois, se fez real. Eu não sou mais aquele garoto que conversava com um pé de Laranja Lima e morava num palácio japonês bem longe da terra. Por isso, agora, de fato, vovô (seu avô), me vejo prestigiado e vivo, saudável e de bem com o aconchego dessa exortação, como se renascesse das cinzas, não como a Fênix mitológica, todavia, dentro de uma prerrogativa próriga (*4) e condescendente, tipo um afago inexorável até então acanhado e enlanguescido.
Num passe de mágica vasto e desmedido, enquanto uma música se esvaia no ar, voltei às carreiras e nos solavancos do tempo (do meu tempo) e me restaurei, por inteiro, a alma e todo o meu “eu oculto” aos prazeres indescritíveis da sua apropinquação aos contornos do meu mundo. Por conta de tamanho evento, num instante obumbrado, me faço real. Aliás, me fiz real. Não me vejo sindromeado, como se vivesse às loucuras de Diótrefes (*5). Tenho consciência que me soergui fundido num relicário de poemas novos, atrelado num ofertório agraciado pelas mãos santas do Pai Maior. Talvez, por conta de tamanho segredo, oculte ainda mágoas, sofridas, intempéries possivelmente advindas do meu pretérito trilhado à desvãos da má sorte.
Em paralelo, ao desalinho dos caminhos da fatalidade e, ainda, por via de mãos incertas, me debatia, à deriva, fustigando a vida de maneira errônea, pelejando, porém, para que ela se fizesse, a cada segundo, mais plena e confiável, acordando sempre de uma pasmaceira-letárgica antiga, à chegada nova de um porvir que se aproximou saudável e triunfante. Claro, obviamente, sem me importar com as cores dos matizes que ainda insistem em se manterem espessas, carregadas de incertezas, prontas para turvarem a minha verdadeira realidade dos meus tempos de agora. Por tudo o que acima deixo exposto, você, meu neto, será o meu grito de vitória. Igualmente, a euforia ímpar das boas vindas que circulam dentro das minhas expectativas de um porvindouro repletado de bons presságios.
Sobretudo, meu pequeno Miguel, seja a sua estada em meu trilhar, o curso auspicioso, o reverdejar constante e avigorado de uma condição espiritual que acredite, imaginava degenerada, desfalecida, apesar do meu pedido de socorro “incessantear” (*6) na esfera do meu paroxismo que ainda, neste exato momento, aflora incansável e majestoso, grandiloquente e monumental, como a intensidade febril de uma alma literalmente acampada em benfazejo clima de festa.
Se abriu sempiterno e imarcescível, se fez jubiloso, como na reencarnação de um ser engrandecido, se aconchegou de forma magistral em meu peito, se transformou como uma esperança nova a tecer no quadro da minha vida pregressa, caminhos novos, estradas e sendas que até então eu não sabia existirem em meu destino. O seu rostinho moldado nas asas de um amor angelical, se propagou em uma cópia justa e perfeita, tal como se em seu semblante eu revisse, num filme da infância longínqua, a minha Narjara (*2) em melodiosa ascendência no florido trinta de junho de mil novecentos e oitenta e nove.
Faço menção aqui, meu neto Miguel, e quero que você saiba, desde agora, um dia, quando tiver entendimento, a sua mãe, minha filha, quando ainda, na sua inocência mal desabrochada, brincava por ruas descalças nos meus anseios e eu nem sabia direito o que se constituía ser um “pai de verdade”.
Em outras palavras, eu não tinha pontos de referências robustos para entender, em todo o esplendor, o verdadeiro significado do que meus familiares me apontavam como o folguedo da tal Felicidade. Via-me meio sem juízo, como Holden Caulfield (*3) aos dezessete anos. Agora, meu lindo, nada do que ficou na partícula da distância importa. O que faz toda a diferença é que você se fez viçoso e luxuriante, assim do nada, e, agora, descansa envolto em um berço de fronhas e lençóis recheados de muito amor e carinho. Pois é, meu Príncipe! Você veio de mansinho. Viajou nove longos meses agasalhado em um lugarzinho secreto e, ao chegar, me abriu, no âmago do coração despedaçado, lembranças de outros tempos.
Trouxe, na bagagem, ao meu agora, velhos rascunhos amarrotados de um “tenebroso passado” que dormitava quieto e anônimo dentro da minha imaginação sequiosa e à espera do momento certo e oportuno de vingar, coroar e me fazer voltar a ser avô novamente. O milagre, pois, se fez real. Eu não sou mais aquele garoto que conversava com um pé de Laranja Lima e morava num palácio japonês bem longe da terra. Por isso, agora, de fato, vovô (seu avô), me vejo prestigiado e vivo, saudável e de bem com o aconchego dessa exortação, como se renascesse das cinzas, não como a Fênix mitológica, todavia, dentro de uma prerrogativa próriga (*4) e condescendente, tipo um afago inexorável até então acanhado e enlanguescido.
Num passe de mágica vasto e desmedido, enquanto uma música se esvaia no ar, voltei às carreiras e nos solavancos do tempo (do meu tempo) e me restaurei, por inteiro, a alma e todo o meu “eu oculto” aos prazeres indescritíveis da sua apropinquação aos contornos do meu mundo. Por conta de tamanho evento, num instante obumbrado, me faço real. Aliás, me fiz real. Não me vejo sindromeado, como se vivesse às loucuras de Diótrefes (*5). Tenho consciência que me soergui fundido num relicário de poemas novos, atrelado num ofertório agraciado pelas mãos santas do Pai Maior. Talvez, por conta de tamanho segredo, oculte ainda mágoas, sofridas, intempéries possivelmente advindas do meu pretérito trilhado à desvãos da má sorte.
Em paralelo, ao desalinho dos caminhos da fatalidade e, ainda, por via de mãos incertas, me debatia, à deriva, fustigando a vida de maneira errônea, pelejando, porém, para que ela se fizesse, a cada segundo, mais plena e confiável, acordando sempre de uma pasmaceira-letárgica antiga, à chegada nova de um porvir que se aproximou saudável e triunfante. Claro, obviamente, sem me importar com as cores dos matizes que ainda insistem em se manterem espessas, carregadas de incertezas, prontas para turvarem a minha verdadeira realidade dos meus tempos de agora. Por tudo o que acima deixo exposto, você, meu neto, será o meu grito de vitória. Igualmente, a euforia ímpar das boas vindas que circulam dentro das minhas expectativas de um porvindouro repletado de bons presságios.
Sobretudo, meu pequeno Miguel, seja a sua estada em meu trilhar, o curso auspicioso, o reverdejar constante e avigorado de uma condição espiritual que acredite, imaginava degenerada, desfalecida, apesar do meu pedido de socorro “incessantear” (*6) na esfera do meu paroxismo que ainda, neste exato momento, aflora incansável e majestoso, grandiloquente e monumental, como a intensidade febril de uma alma literalmente acampada em benfazejo clima de festa.
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* Notas de rodapé:
(1) Cumbiamba - dança de roda colombiana, muito popular na costa atlântica.
(2) Narjara - minha filha com Carla Laranja.
(3) Holden Caulfield - personagem do romance “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger, lançado em 1951.
(4) Próriga - sem rodeios ou desvios.
(5) Diótrefes - Homem ambicioso e inóspito, citado na 3ª epístola de João v. 9-11.
(6) Incenssantear – ser esforçado, quase repetitivamente.
Fonte:
Texto, fotos e notas enviadas pelo autor.
Texto, fotos e notas enviadas pelo autor.
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
Silmar Böhrer (Croniquinha) 60
Noite para dormir quentinho. Frio de renguear cusco, como se diz nas querências do sul. Ventos de agosto seguem intangíveis, mas sentidos até nas entranhas dos viventes. Céu e terra e ares por testemunhas.
A noite chegou imensa na lua cheia, na frialdade, nalgum ranger de dentes. Na verdade o povo que habita a parte meridional do país está bem acostumado com as temperaturas do inverno.
Os meses de intempéries - geada, ventos gelados, frio, neve - dão origem a uma diversidade de prazeres nas pessoas. Alguns gostam de dormir no frio, outros, de levantar cedo, os enófilos, de bebericar os vinhos, e há aqueles que gostam de viajar para locais frios os mais tradicionais. E os apreciadores de vestir agasalhos mais pesados, sobretudo sobretudos.
E como nos envolvemos e implicamos com o tempo em nossas vidas, sempre há uma frase a nosso favor: "É tão bom deitar e ouvir o barulho do vento lá fora. No frio não é difícil acordar, difícil é sair da cama. Frio e cobertor é tudo que eu preciso para ser feliz ".
Pois entre os meus regalos há aquele que diz que o inverno é gostoso porque a gente dorme quentinho.
A noite chegou imensa na lua cheia, na frialdade, nalgum ranger de dentes. Na verdade o povo que habita a parte meridional do país está bem acostumado com as temperaturas do inverno.
Os meses de intempéries - geada, ventos gelados, frio, neve - dão origem a uma diversidade de prazeres nas pessoas. Alguns gostam de dormir no frio, outros, de levantar cedo, os enófilos, de bebericar os vinhos, e há aqueles que gostam de viajar para locais frios os mais tradicionais. E os apreciadores de vestir agasalhos mais pesados, sobretudo sobretudos.
E como nos envolvemos e implicamos com o tempo em nossas vidas, sempre há uma frase a nosso favor: "É tão bom deitar e ouvir o barulho do vento lá fora. No frio não é difícil acordar, difícil é sair da cama. Frio e cobertor é tudo que eu preciso para ser feliz ".
Pois entre os meus regalos há aquele que diz que o inverno é gostoso porque a gente dorme quentinho.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Texto enviado pelo autor.
Marcos Neves (Literalismo)
A mais famosa pergunta dos cafés portugueses permite-nos conhecer um erro linguístico: o literalismo.
Que se acuse quem, depois de usar a palavra «queria», nunca enfrentou a pergunta: «Queria? Já não quer?».
Uma inocente piada de café, dirão. Talvez. Mas não deixa de ser um bom exemplo de um erro linguístico muito comum: o literalismo.
Admito: quando estou a pedir um café com «queria» estou a usar uma forma verbal do passado para fazer um pedido no presente. Um horror!
A verdade é que a língua é mais complexa do que parece à primeira vista:
– Usamos o pretérito imperfeito para fazer pedidos com mais delicadeza: «era a conta, por favor».
– Usamos o futuro para falar de algo incerto do passado: «ela terá lá ido ontem».
– Usamos o pretérito perfeito composto para falar do que fazemos várias vezes: «tenho falado com ele todos os dias»…
Podia continuar por aí fora…
A língua é assim: cheia de sutilezas que usamos sem reparar. Pisando sem vergonha tais sutilezas, há quem interprete literalmente uma palavra ou expressão e declare que tal palavra ou expressão é um erro.
Fonte:
Montargil Acção Cultural – Boletim em Linha – n.111 – agosto de 2022.
Enviado por Lino Mendes (coordenador).
Montargil Acção Cultural – Boletim em Linha – n.111 – agosto de 2022.
Enviado por Lino Mendes (coordenador).
terça-feira, 30 de agosto de 2022
Nilto Maciel (Uma Página de Robbe-Grillet)
Quando Jean Denis Lanson esteve no Brasil, o repórter Guido Mocho foi incumbido de entrevistá-lo para o Diário da Tarde.
Segundo o editor, só Guido poderia realizar uma boa entrevista. “Você sabe francês, e basta”.
O repórter quis se esquivar. Ora, não entendia nada de literatura. Quando estudante, havia lido meia dúzia de romances, sem qualquer prazer. Alencar, um chato. Machado, enfadonho. E sempre confundiu Manoel Antonio de Almeida com Joaquim Manuel de Macedo. A Moreninha e Memórias de um Sargento de Milícias lhe pareciam do mesmo autor. “E quem lhe disse que o homem é literato?”
Lanson acabara de publicar o livro Il est tard. Um jornal falava em romance. Aliás, no nouveau roman.
O editor do Diário explicou: não se tratava de literatura, mas de obra sobre ecologia.
Um colega de Guido riu de todos: andavam fazendo uma grande confusão. Estivera na França e ouvira falar do grande físico Jean Denis Lanson. Il est tard tratava da questão nuclear.
Guido dirigiu-se à Embaixada da França. Precisava esclarecer aquilo. Como fazer a entrevista, se só sabia o nome do personagem da entrevista? Receberam-no com excessiva cordialidade. Contudo nem o Embaixador sabia mais do que a imprensa brasileira sobre o tal Lanson. “Que s’est-il passé?” Talvez o visitante fosse Gustave Lanson, o grande crítico literário. Não, não. Este havia morrido em 1934.
Com horas de atraso, Guido chegou ao hotel onde se hospedava o francês. O livro? Não, não sabia de que livro falava o repórter. “Je ne sais rien, mais je voudrais savoir quelque chose”.
Passada a primeira hora, ainda não haviam chegado a qualquer acordo. Lanson só lia literatura de entretenimento. Nunca conseguira ler mais de uma página de Robbe-Grillet. E de Natalie Sarraute? Desconhecia. E Claude Simon? O deputado acusado de...? Guido mudou de assunto. E a Amazônia? Se pudesse, passaria alguns dias lá, nas praias, olhando as garotas e seus magníficos biquínis. E ria, esfregava as mãos. “Dieu me pardonne! Ah! que je suis content!”
O repórter passou à guerra nuclear. O que seria da humanidade, após a catástrofe? Lanson sorveu sua bebida e quase nada falou. “De quoi parles-tu?” Guido olhou para o teto, como para o céu, e imitou bombas explodindo: bum-bum-bum. Sim, sim, viagens pelos espaços siderais. Adorava Uma Odisséia no Espaço. Que filme! Logo, porém, desceram às nuvens, que também não podiam ver. Depois, à fumaça de seus cigarros. E flutuaram, quase mudos. Por fim, baixaram a si mesmos e, atônitos, abraçaram-se. “Au revoir!”
Cabisbaixo, Guido tomou o rumo do jornal.
A entrevista deu muito o que falar. O Diário da Tarde vendeu mais de um milhão de exemplares. Guido Bezerra Mocho ganhou abraços, aplausos, prêmios. Fez-se glorioso, de repente.
Segundo o editor, só Guido poderia realizar uma boa entrevista. “Você sabe francês, e basta”.
O repórter quis se esquivar. Ora, não entendia nada de literatura. Quando estudante, havia lido meia dúzia de romances, sem qualquer prazer. Alencar, um chato. Machado, enfadonho. E sempre confundiu Manoel Antonio de Almeida com Joaquim Manuel de Macedo. A Moreninha e Memórias de um Sargento de Milícias lhe pareciam do mesmo autor. “E quem lhe disse que o homem é literato?”
Lanson acabara de publicar o livro Il est tard. Um jornal falava em romance. Aliás, no nouveau roman.
O editor do Diário explicou: não se tratava de literatura, mas de obra sobre ecologia.
Um colega de Guido riu de todos: andavam fazendo uma grande confusão. Estivera na França e ouvira falar do grande físico Jean Denis Lanson. Il est tard tratava da questão nuclear.
Guido dirigiu-se à Embaixada da França. Precisava esclarecer aquilo. Como fazer a entrevista, se só sabia o nome do personagem da entrevista? Receberam-no com excessiva cordialidade. Contudo nem o Embaixador sabia mais do que a imprensa brasileira sobre o tal Lanson. “Que s’est-il passé?” Talvez o visitante fosse Gustave Lanson, o grande crítico literário. Não, não. Este havia morrido em 1934.
Com horas de atraso, Guido chegou ao hotel onde se hospedava o francês. O livro? Não, não sabia de que livro falava o repórter. “Je ne sais rien, mais je voudrais savoir quelque chose”.
Passada a primeira hora, ainda não haviam chegado a qualquer acordo. Lanson só lia literatura de entretenimento. Nunca conseguira ler mais de uma página de Robbe-Grillet. E de Natalie Sarraute? Desconhecia. E Claude Simon? O deputado acusado de...? Guido mudou de assunto. E a Amazônia? Se pudesse, passaria alguns dias lá, nas praias, olhando as garotas e seus magníficos biquínis. E ria, esfregava as mãos. “Dieu me pardonne! Ah! que je suis content!”
O repórter passou à guerra nuclear. O que seria da humanidade, após a catástrofe? Lanson sorveu sua bebida e quase nada falou. “De quoi parles-tu?” Guido olhou para o teto, como para o céu, e imitou bombas explodindo: bum-bum-bum. Sim, sim, viagens pelos espaços siderais. Adorava Uma Odisséia no Espaço. Que filme! Logo, porém, desceram às nuvens, que também não podiam ver. Depois, à fumaça de seus cigarros. E flutuaram, quase mudos. Por fim, baixaram a si mesmos e, atônitos, abraçaram-se. “Au revoir!”
Cabisbaixo, Guido tomou o rumo do jornal.
A entrevista deu muito o que falar. O Diário da Tarde vendeu mais de um milhão de exemplares. Guido Bezerra Mocho ganhou abraços, aplausos, prêmios. Fez-se glorioso, de repente.
Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.
segunda-feira, 29 de agosto de 2022
Aparecido Raimundo de Souza (A amiga que se contenta com um simples toque de dedos)
QUANDO ELE CHEGOU, ela estava na sala, sentada confortavelmente no sofá de frente para o novo aparelho de televisão. Assim que a avistou foi logo soltando as cachorras:
— Como é que faço para me livrar de você?
Ela se ajeitou de um modo que ele pudesse ver os fundilhos no reflexo do abajur encostado num canto em cima da mesinha do telefone.
— Não vejo como! Por favor, tome assento. Não mordo.
— Deve haver uma maneira... disse ele desmoronando o corpo moído ao lado dela.
— Se ao menos você morasse numa casa que comportasse um aparelho de energia solar...
Ele ficou furioso com a desditosa observação:
— Casa, para mim é impossível. Você sabe disso melhor que ninguém. Mas não conte vantagens, mocinha. Encontrei a solução.
— Posso saber qual?
— Vou sair deste apartamento e morar no morro. Estou na dúvida: Se Rocinha ou Complexo do Alemão.
— Sozinho ou com a família?
Ele pareceu hesitar antes de responder:
— Não é da sua alçada.
— Bem, se vai sozinho ou com a família, isso não importa realmente. O fato é que estarei lá.
— Numa favela bem longe daqui do centro de Vila Isabel? Duvido!
— Não esqueça que me faço presente nos lugares mais longínquos do planeta.
— Maldita.
— Posso até ser, mas necessária.
— Não para mim.
— Sem a minha presença em sua vida você não é nada.
— Sem a sua presença minha vida é tudo.
— Prove!
— Já que não quer entregar os pontos, deixa que eu mesma direi.
Para início de conversa, não terá seu banhozinho quente depois de um dia estafante no serviço. Esqueceu dele?
— Sempre tomei banho frio.
— Não poderá usar o barbeador elétrico que ganhou de sua filha.
— Os aparelhos de barbear descartáveis são mais baratos e seguros.
— Terá que subir escadas.
— Faz bem para o coração...
— Não na sua idade. Escute, meu velho. Esqueça as mágoas. Reflita comigo. Sem mim não poderá ver seu time preferido no dia que for jogar...
— “Grande droga”. No dia que meu time for jogar, paro em frente a uma dessas muitas lojas que vendem aparelhos eletrodomésticos espalhadas por todos os cantos da cidade.
— Viu só? Nesse momento você lembrará de mim. Estarei lá, olhando para sua cara, e rindo do mico que você estará pagando. Vai deixar o conforto do seu sofá para ficar de pé no meio da rua? Faça-me o favor. Ponha na sua cabeça uma coisa: você depende de mim para tudo, tudo, tudo, T-U-D-O.
— Não, não, não.
— Sim, sim, sim...
— Ah! Ia esquecendo. Sexta-feira agora tem corrida de Fórmula Um...
— Acompanho pelo radinho de pilha. É até mais emocionante.
— Sábado também é dia do Caldeirão do Mion. Você ama o “Caldeirola...”.
— Não me interesso mais pelo programa daquele maluco.
— Hum! Seus filmes preferidos, esqueceu?
— Já vi todos.
— Sua tevê a cabo... depois que as crianças e a sua esposa se recolhem... você não terá mais o canal pornô. E você é amarradão num filminho mais apimentado. É ou, não é?
— Deixei de assinar. Tudo não passa de bobeira.
— Bobeira maior é você querer se livrar de mim...
— E conseguirei, esteja certa.
— Como fará com sua mulher e filhos?
— Já são todos grandinhos. Saberão se virar sozinhos...
— Sua mãe doente. Além de precisar de você, do seu carinho e dos seus cuidados, necessita, igualmente, de mim. Penso até mais de mim que de você. Desculpe, só estou lembrando. Nada pessoal.
— Olhe, sua vagabunda. Me deixa em paz.
— Mas é exatamente o contrário. Você não me dá sossego. Sou sua escrava. Você me faz de cachorrinha. Me usa, abusa da minha bondade, dos meus préstimos. Em troca, meu amigo, em troca eu lhe dou paz. Trago tranquilidade a seu lar. Proporciono momentos bons e alegres para toda a sua família.
Ela faz uma pausa e continua, a língua solta:
— A um comando seu, me abro num leque de prazeres ilimitados. Faço das tripas coração só para ficar perto de você. Diria que estou preso e acorrentado a você, como o ar que corre em seu nariz, como os movimentos das suas mãos e das suas pernas. Resumindo: sem eu por perto, você é um zero à esquerda.
— Comprarei um monte de caixas de velas e fósforos.
Risos.
— Vai fazer algum despacho? As pessoas... seus amigos... sua esposa... até seus filhos pensarão que você perdeu o juízo de vez...
— Perderei realmente o juízo de vez se continuar aqui sentado falando com você feito um bobo da corte.
— Preste atenção. Você mandou cortar o telefone. Como a sua esposa controlará as crianças na escola? Suponhamos que aconteça algum imprevisto? Sua mãe... sua mãe tem que tomar remédios controlados, de duas em duas horas... como vocês – quero dizer, como a infeliz da sua esposa (que fica o dia inteiro com ela) fará para ligar para o farmacêutico vir aplicar as injeções?
— Que use o telefone do vizinho... ela não é quadrada.
— Acha justo? É correto incomodar os demais albergados? Tire por você. Odeia perturbações. Lembra de quando o filho do morador aqui do lado se machucou? Você ficou uma fera quando o pai do moleque tocou a sua campainha...
— Ele atrapalhou o meu jornal...
— Se ponha, por um momento, no lugar da criatura: é correto você interromper o jornal, a novela, ou o filme dos outros? Esqueceu que onde seus direitos acabam começam os do seu próximo? Desde o começo do mundo tem sido assim e continuará indefinidamente. O melhor que tem a fazer é fechar a boca.
— Fechar a boca?
— Perdão. O certo seria controlar os dedos...
— Os dedos?
— Exatamente.
— Não entendi.
— Serei clara. Aliás, sou sempre clara e transparente. Meu nome deveria ser Clara ou Claridade. Você não acha?
— Não mude de assunto.
— Eu falava dos dedos. Você, aliás, vocês deveriam aprender a controlar os dedos. A começar pelo seu casal de filhos. Concordo que eles se aproveitam de mim... fazem da minha pessoa gato e sapato... igualzinho você. Todavia, particularmente tenho em mente que se você tiver uma conversinha de pé de ouvido com os dois... evidentemente... obterá sucesso. Ensine a seus diabinhos pequenas normas corriqueiras... no final do mês, seu bolso não sentirá muito o peso da minha presença...
— Continue...
— Sua esposa, tenho notado, é muito dedicada e controlada. Gasta extremamente o necessário. Não fosse por ela, você estaria no mato sem cachorro, com um nabo desse tamanho enterrado no...
Tomou fôlego em nova interrupção e, em seguida, concluiu:
— Acho que não preciso mencionar onde exatamente o papo... sua mãe, coitada, vou deixá-la de fora de nosso papo. É a única que não contribui em nada para que você acabe no buraco. Sem falar no dinheiro da pensão que ela recebe da aposentadoria e todo mês você embolsa. Que vergonha! Que falta de hombridade! Eu ficaria vexada de me olhar no espelho...
— Está desvirtuando a prosa de novo.
— Não está mais aqui quem falou. Voltando aos dedos. Ensine a seus filhos, quando forem à cozinha, durante o dia, usarem os dedinhos e desligarem os respectivos televisores. Para que dois aparelhos tagarelando em espaços diferentes se ambos vêm os mesmos desenhos nos mesmos canais?
Ela mais uma vez imprimiu uma estancada curta ao bate papo:
— Não podem fazer certas coisas juntos, sentados aqui na sala, como nós estamos agora? Se você está no quarto, use o dedo e apague a cozinha, se está na varanda, use o dedo e apague o corredor. Para que tantas lâmpadas acesas por aí à fora, sem razão? No fundo, meu amigo, no fundo quero seu bem. Sei que vai dizer que a nota fiscal de energia elétrica vem alta. Concordo. Controle, pois, tudo com seus dedos. Faça uma experiência. Pense que não é só o seu consumo de lâmpadas acesas aqui dentro que aumenta as despesas dos talões a serem pagos. Tem as cobranças de terceiros, iluminação publica, juros por atrasos nos pagamentos, multas, I.C.M.S, ajuste de centavos e outras coisinhas que aparecem escritas numas letrinhas desse tamanho que nem Cristo consegue enxergar. Lembre sempre: quero ser sua amiga e mais ainda, amiga de seu bolso. Promete, ao menos, que vai parar e meditar com mais atenção no assunto?
— Fiquei convencido. Você está com a razão.
— Amanhã procure acertar um dos talões que estão jogados no meio dos papéis dentro de sua pasta. Você está no terceiro mês sem pagar. Não demora o sujeito da companhia vem lá embaixo e passa os dedos, digo, a tesoura no seu medidor. Se não levar o relógio, o que poderá ser pior. Se tal ocorrer, você carecerá, de fato, de muitas caixas de velas e fósforos.
— Obrigada pelos conselhos. Você realmente provou nessa nossa conversa que é minha amiga. Eu diria que é você é a luz do meu caminho...
— Estarei na sua vida para sempre. Agora, por favor, movimente a sua poupança gorda deste sofá, caminhe até o interruptor do banheiro, use o dedo indicador e me apague. Espie. Estou sendo gasta desnecessariamente iluminando um local vazio, e o mais chato, vendo a bacia da privada falando besteiras ao celular. Me poupe, me poupe.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Texto enviado pelo autor.
domingo, 21 de agosto de 2022
Carlos Leite Ribeiro (Achado arqueológico)
Num dia de sol ardente, estava o José Pinoca a fazer umas escavações numa terra em Riba d’Aves, para a construção de uma casa.
(Riba d’Aves, para aqueles que não sabem, fica a cerca de 10 Km da cidade de Leiria)
(Riba d’Aves, para aqueles que não sabem, fica a cerca de 10 Km da cidade de Leiria)
A certa altura das escavações, o Pinoca começou a encontrar uns ossos "olha que engraçado encontrei uns ossos... Mas eles têm formas esquisitas...". Voltando-se para os trabalhadores que o estavam a ajudar nas escavações, disse-lhes: "Podem ir para as vossas casas descansar!".
Muito intrigado com o achado, o Pinoca dirigiu-se rapidamente a casa para ir contar a sua mulher, a D. Piquita, a boa nova, pois, se fosse aquilo que ele julgava ser, ia-lhe dar uns tostões na sua exploração.
“Piquita, Piquita... Oh mulher, estás aí?” A mulher quando o ouviu assim tão aflito, começou logo a descer as escadas e por fim respondeu-lhe: "Sim, homem, estou aqui. Aonde é que querias que eu estivesse?!"
“Oh mulher, tu nem calculas o que é que eu encontrei nas escavações que estou a fazer!" tentando dizer alguma coisa com graça, a Piquita respondeu-lhe: "Pela tua cara... deixa cá ver, deixa cá ver: já sei, encontraste uma cobra!" - disse-lhe a mulher em tom de gozação.
“Qual cobra, qual carapuça! Encontrei uns ossos que não sei de quem poderão ser. Percebeste mulher?!"
“Oh, homem, eu não sou estúpida de todo e já compreendi há muito tempo o que tu encontraste. Mas diz-me uma coisa: já foste falar com o coveiro?"
José Pinoca, antes de responder à mulher, sentou-se num banco e só depois lhe respondeu: "Minha esposa esperta, é lógico que não fui falar com o coveiro, pois vim logo para casa e além disso, estou muito cansado. Talvez amanhã vá. Entretanto, estava a esquecer-me de algo muito importante. Peço à minha querida "comandante" que não vá contar isto a ninguém."
A D. Piquita tirou o avental, compôs o cabelo a pôs-se em posição de sentido, respondendo ao marido: "Muito bem, meu comandante! O meu excelentíssimo e digníssimo comandante quer que eu guarde mais alguma coisa, ou esta chega?" O Pinoca sorriu.
No outro dia logo pela manhã, o José Pinoca foi ter com o seu compadre Malaquias, que ao avistá-lo, logo o saudou: "Olha o compadre José Pinoca! então o que o trás por cá ?"
“Compadre, nem sei como hei de começar...”. O Malaquias começou a ficar muito curioso e desconfiado com aquela visita do Pinoca e, em determinada altura disse-lhe:
"Não sei o que me quer, mas desde já peço-lhe que esteja à vontade comigo. Vá lá, diga-me lá o que me quer!"
"Então aqui vai... Sabe que eu tenho andado a fazer uns alicerces para uma casa e, qual o meu espanto quando em determinada altura encontrei uns ossos. Ora, como você é perito nesta matéria de ossos, gostaria de saber se aqueles ossos são ou não humanos."
Embora algo admirado, o Malaquias não "desarmou" e com uma certa vaidade, respondeu ao Tinoca: "Fez muito bem em vir ter comigo, pois como diz (e muito bem) eu sou um grande especialista em ossos! Vamos então lá ver esse seu achado."
E lá foram os dois compadres a caminho das fundações. Ao chegar ao local, logo o Malaquias se meteu na vala para melhor examinar os ossos. Depois de um demorado exame, saltou da vala, encarou o compadre, tossiu, piscou os olhos e com ar de pessoa "muito entendida" expressou-lhe a sua avalizada opinião: "Compadre... São ossadas de dinossauro!"
“Oh, compadre, estou tão nervoso que nem sei se choro ou se rio! ... Olhe lá, e se fossemos contar o sucedido à D. Fúfia?".
“Sou da sua opinião, Pinoca!"
E os dois compadres dirigiram-se a casa da D.Fúfia, uma senhora de certa idade, que não era nada bonita, mas que há muito tinha aprendido a comer com faca e garfo.
Chegaram e logo bateram à porta. Do outro lado respondeu-lhes uma voz muito rouca e autoritária: "Quem é ?!" Depois dos compadres se terem identificado, a D.Fúfia veio abrir-lhes a porta com o seu ar quase marcial, olhando-os por cima dos seus óculos encarapitados no seu quase adunco nariz.
“Olá! Entrem, entrem e ponham-se à vontade. Querem um chazinho?... Pelas vossas caras estou mesmo a ver o que vocês queriam era aquilo que eu, para o conseguir beber, tenho sempre que fechar os olhos, ou seja, vinho! Mas infelizmente bebi ainda há pouco a última pinguinha que tinha cá em casa".
"D.Fúfia, por favor não se incomode, cá com a gente" - disse-lhe o Malaquias, e logo o Pinoca concluiu: "Para não incomodar muito a senhora, podemos ir já à questão que cá nos trouxe?"
A senhora mais uma vez os convidou a sentarem-se, sentando-se em seguida, tirando antes de um cesto a sua enorme jiboia de estimação que a pôs ao pescoço.
"Digam-me lá então que questão é essa... será dinheiro?"
Os compadres sorriram e o Pinoca adiantou-se:
"A questão desta vez não é de dinheiro. É o seguinte, eu estava a fazer um buraco numa construção que ando a fazer perto da Lameira, e qual o meu espanto que em determinada altura encontrei umas ossadas, que aqui o nosso distinto coveiro diz que são ossos de dinossauro".
Ao ouvir isto, a D.Fúfia quase que deu um pulo na cadeira e, agarrando a jiboia com a mão esquerda e espetando o dedo indicador em direção dos compadres, logo deu a sua opinião:
"Oh, pessoal!... Vocês tomem muito cuidado, pois o que encontraram pode ser uma manobra política/desportiva. Tomem muito cuidado!".
O Pinoca ficou um tanto ou quanto atrapalhado e foi o seu compadre Malaquias que ousou perguntar à D.Fúfia:
"Então o que é que podemos fazer com as ossadas?!"
"Pois é... deixem-me cá ver, deixem-me cá ver... Ah já sei! Vocês vão já falar com o diretor do Museu de Arte Natural de Riba d` Aves, e apresentem este caso."
Em princípio, o Pinoca não estava nada, mas mesmo nada disposto a ir falar com o diretor do Museu, pois chegou a pensar que aquelas ossadas de dinossauro lhe podiam dar-lhe umas boas coroas (notas...). Mas por fim e aproveitando a sugestão da D.Fúfia, lá foram os compadres falar com o diretor.
Algum tempo depois vieram uns técnicos de Lisboa e, ao fim de alguns meses o enorme esqueleto já se encontrava montado.
No dia da exposição para a apresentação ao público das ossadas do dinossauro, a D.Fúfia, embrulhada na sua enorme echarpe bolorenta e já com alguns buracos de traça, orgulhosamente dizia a toda a gente que tinha sido dela a iniciativa para que as ossadas fossem entregues ao Museu.
Nisto aproximou-se mais do esqueleto para o melhor poder admirar, quando perante a estupefação geral deu um enorme grito e exclamou:
“Mas... Mas estas ossadas são do meu querido e único namorado que morreu há mais de 60 anos!!!"
E dizendo isto, caiu redondamente no chão.
Muito intrigado com o achado, o Pinoca dirigiu-se rapidamente a casa para ir contar a sua mulher, a D. Piquita, a boa nova, pois, se fosse aquilo que ele julgava ser, ia-lhe dar uns tostões na sua exploração.
“Piquita, Piquita... Oh mulher, estás aí?” A mulher quando o ouviu assim tão aflito, começou logo a descer as escadas e por fim respondeu-lhe: "Sim, homem, estou aqui. Aonde é que querias que eu estivesse?!"
“Oh mulher, tu nem calculas o que é que eu encontrei nas escavações que estou a fazer!" tentando dizer alguma coisa com graça, a Piquita respondeu-lhe: "Pela tua cara... deixa cá ver, deixa cá ver: já sei, encontraste uma cobra!" - disse-lhe a mulher em tom de gozação.
“Qual cobra, qual carapuça! Encontrei uns ossos que não sei de quem poderão ser. Percebeste mulher?!"
“Oh, homem, eu não sou estúpida de todo e já compreendi há muito tempo o que tu encontraste. Mas diz-me uma coisa: já foste falar com o coveiro?"
José Pinoca, antes de responder à mulher, sentou-se num banco e só depois lhe respondeu: "Minha esposa esperta, é lógico que não fui falar com o coveiro, pois vim logo para casa e além disso, estou muito cansado. Talvez amanhã vá. Entretanto, estava a esquecer-me de algo muito importante. Peço à minha querida "comandante" que não vá contar isto a ninguém."
A D. Piquita tirou o avental, compôs o cabelo a pôs-se em posição de sentido, respondendo ao marido: "Muito bem, meu comandante! O meu excelentíssimo e digníssimo comandante quer que eu guarde mais alguma coisa, ou esta chega?" O Pinoca sorriu.
No outro dia logo pela manhã, o José Pinoca foi ter com o seu compadre Malaquias, que ao avistá-lo, logo o saudou: "Olha o compadre José Pinoca! então o que o trás por cá ?"
“Compadre, nem sei como hei de começar...”. O Malaquias começou a ficar muito curioso e desconfiado com aquela visita do Pinoca e, em determinada altura disse-lhe:
"Não sei o que me quer, mas desde já peço-lhe que esteja à vontade comigo. Vá lá, diga-me lá o que me quer!"
"Então aqui vai... Sabe que eu tenho andado a fazer uns alicerces para uma casa e, qual o meu espanto quando em determinada altura encontrei uns ossos. Ora, como você é perito nesta matéria de ossos, gostaria de saber se aqueles ossos são ou não humanos."
Embora algo admirado, o Malaquias não "desarmou" e com uma certa vaidade, respondeu ao Tinoca: "Fez muito bem em vir ter comigo, pois como diz (e muito bem) eu sou um grande especialista em ossos! Vamos então lá ver esse seu achado."
E lá foram os dois compadres a caminho das fundações. Ao chegar ao local, logo o Malaquias se meteu na vala para melhor examinar os ossos. Depois de um demorado exame, saltou da vala, encarou o compadre, tossiu, piscou os olhos e com ar de pessoa "muito entendida" expressou-lhe a sua avalizada opinião: "Compadre... São ossadas de dinossauro!"
“Oh, compadre, estou tão nervoso que nem sei se choro ou se rio! ... Olhe lá, e se fossemos contar o sucedido à D. Fúfia?".
“Sou da sua opinião, Pinoca!"
E os dois compadres dirigiram-se a casa da D.Fúfia, uma senhora de certa idade, que não era nada bonita, mas que há muito tinha aprendido a comer com faca e garfo.
Chegaram e logo bateram à porta. Do outro lado respondeu-lhes uma voz muito rouca e autoritária: "Quem é ?!" Depois dos compadres se terem identificado, a D.Fúfia veio abrir-lhes a porta com o seu ar quase marcial, olhando-os por cima dos seus óculos encarapitados no seu quase adunco nariz.
“Olá! Entrem, entrem e ponham-se à vontade. Querem um chazinho?... Pelas vossas caras estou mesmo a ver o que vocês queriam era aquilo que eu, para o conseguir beber, tenho sempre que fechar os olhos, ou seja, vinho! Mas infelizmente bebi ainda há pouco a última pinguinha que tinha cá em casa".
"D.Fúfia, por favor não se incomode, cá com a gente" - disse-lhe o Malaquias, e logo o Pinoca concluiu: "Para não incomodar muito a senhora, podemos ir já à questão que cá nos trouxe?"
A senhora mais uma vez os convidou a sentarem-se, sentando-se em seguida, tirando antes de um cesto a sua enorme jiboia de estimação que a pôs ao pescoço.
"Digam-me lá então que questão é essa... será dinheiro?"
Os compadres sorriram e o Pinoca adiantou-se:
"A questão desta vez não é de dinheiro. É o seguinte, eu estava a fazer um buraco numa construção que ando a fazer perto da Lameira, e qual o meu espanto que em determinada altura encontrei umas ossadas, que aqui o nosso distinto coveiro diz que são ossos de dinossauro".
Ao ouvir isto, a D.Fúfia quase que deu um pulo na cadeira e, agarrando a jiboia com a mão esquerda e espetando o dedo indicador em direção dos compadres, logo deu a sua opinião:
"Oh, pessoal!... Vocês tomem muito cuidado, pois o que encontraram pode ser uma manobra política/desportiva. Tomem muito cuidado!".
O Pinoca ficou um tanto ou quanto atrapalhado e foi o seu compadre Malaquias que ousou perguntar à D.Fúfia:
"Então o que é que podemos fazer com as ossadas?!"
"Pois é... deixem-me cá ver, deixem-me cá ver... Ah já sei! Vocês vão já falar com o diretor do Museu de Arte Natural de Riba d` Aves, e apresentem este caso."
Em princípio, o Pinoca não estava nada, mas mesmo nada disposto a ir falar com o diretor do Museu, pois chegou a pensar que aquelas ossadas de dinossauro lhe podiam dar-lhe umas boas coroas (notas...). Mas por fim e aproveitando a sugestão da D.Fúfia, lá foram os compadres falar com o diretor.
Algum tempo depois vieram uns técnicos de Lisboa e, ao fim de alguns meses o enorme esqueleto já se encontrava montado.
No dia da exposição para a apresentação ao público das ossadas do dinossauro, a D.Fúfia, embrulhada na sua enorme echarpe bolorenta e já com alguns buracos de traça, orgulhosamente dizia a toda a gente que tinha sido dela a iniciativa para que as ossadas fossem entregues ao Museu.
Nisto aproximou-se mais do esqueleto para o melhor poder admirar, quando perante a estupefação geral deu um enorme grito e exclamou:
“Mas... Mas estas ossadas são do meu querido e único namorado que morreu há mais de 60 anos!!!"
E dizendo isto, caiu redondamente no chão.
Fonte:
Portal CEN.
Portal CEN.
Paulo Leminski (Versos Diversos) 18
claro calar sobre uma cidade sem ruínas
(ruinogramas)
Em Brasília, admirei.
Não a niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata-borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra adentro.
Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.
Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.
Muito me admirastes,
muito te admirei.
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o náufrago náugrafo
a letra A a
funda no A
tlântico
e pacífico com
templo a luta
entre a rápida letra
e o oceano
lento
assim
fundo e me afundo
de todos os náufragos
náugrafo
o náufrago
mais
profundo
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
bem no fundo
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
sem budismo
Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero. Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro
ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
a lua no cinema
A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!
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anch’io son pittore
fra angélico
quando pintava
uma madona col bambino
se ajoelhava e rezava
como se fosse um menino
orava diante da obra
como se fosse pecado
pintar aquela senhora
sem estar ajoelhado
orava como se a obra
fosse de deus não do homem
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
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litogravura
Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco de triunfo.
Mil duzentos e cinquenta.
Qualquer pedra na Europa
é suspeita de ser
mais do que aparenta.
Felizes as pedras da minha terra
que nunca foram senão pedras.
Pedras, a lua esfria
e o sol esquenta.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
parada cardíaca
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro
Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
imprecisa premissa
(quantas curitibas cabem numa só Curitiba?)
Cidades pequenas,
como dói esse silêncio,
cantilenas, ladainhas,
tudo aquilo que nem penso,
esse excesso
que me faz ver todo o senso,
imprecisa premissa,
definitiva preguiça
com que sobe, indeciso,
o mais ou menos do incenso.
Vila de Nossa Senhora
da Luz dos Pinhais,
tende piedade de nós.
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sujeito indireto
Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.
Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.
Sammis Reachers (Ri por último quem ri de bolso cheio)
As catanças de ferro-velho abarcavam, a partir de nosso sub-bairro Jardim Nazareth ou Palha Seca (a “fronteira” entre os bairros de Tribobó e Arsenal) diversos outros bairros: No poder arcano da canela, alcançávamos Jockey Club e Anaia, Capote e Arsenal, chegando até a Rio do Ouro e Maria Paula, quando não Colubandê e Bairro Almerinda. Era muito chão!
Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia: Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua...
Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões, ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que, em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda era um péssimo ou inútil boxer de rua, colocamos a viola no saco e ficamos quietinhos...
Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub-bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário, instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa dessas andanças naquelas paragens que acabamos descobrindo em que casa moravam os tais Romeus valentões?
Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela, coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas, percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam, do lado de fora de seu quintal, um depósito de reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado, fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de mel.
Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou. Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta daquele sorriso! Eu entendi o que faríamos.
Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde-e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena “carga” das mercadorias, para que as vítimas não sentissem o impacto.
A marra daqueles garotões, que depois acabaram “expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes da Kibon, nossos preferidos...
O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado trabalho – e nossa justa e vingativa rapina!
Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia: Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua...
Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões, ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que, em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda era um péssimo ou inútil boxer de rua, colocamos a viola no saco e ficamos quietinhos...
Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub-bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário, instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa dessas andanças naquelas paragens que acabamos descobrindo em que casa moravam os tais Romeus valentões?
Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela, coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas, percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam, do lado de fora de seu quintal, um depósito de reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado, fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de mel.
Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou. Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta daquele sorriso! Eu entendi o que faríamos.
Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde-e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena “carga” das mercadorias, para que as vítimas não sentissem o impacto.
A marra daqueles garotões, que depois acabaram “expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes da Kibon, nossos preferidos...
O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado trabalho – e nossa justa e vingativa rapina!
Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
sábado, 20 de agosto de 2022
Renato Benvindo Frata (Nanocontos) 3
* Paulo Leminski
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
BELEZA
As asas de borboletas são esconderijos dos arco-íris. Só saem dali quando chova.
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CONFISSÃO
O calor do seu corpo sempre foi lenitivo; hoje é cobertor contra a frieza da minha idade.
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IDADE
No conta-gotas sendo espremido a ânsia de não vazar dose além da sobrevivência.
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IMPIEDOSO
Sem clemência, pintou de vermelho-amarronzado a pele branca do veranista.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
LEMBRANÇAS
Hoje nosso beijo tem sabor saudade do primeiro. O tremor nas pernas também e a paixão continua.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
MADRUGADA NA FEIRA
Olhou-se no pastel como a num espelho: a cara de sono e ressaca confessaram-a massa enrugada.
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PARADA DE ÔNIBUS
O tempo que passa nunca dá carona e a vida se escorre na espera.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
PAIXÃO
No momento em que a vi, o Cupido trouxe o Amor e o espetou com a flecha em meu coração.
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PROFESSOR
Quando abria a boca, um facho de luz vencia trevas; eram suas explicações.
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RESGUARDO
O amor armazenado num coração, se esconde na saia do gostar quando nota violência.
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VAGANDO...
Meu amor fez brotar relva aos pés da árvore, e ali depositei você.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
VELHICE 2
Pelos eriçavam e o peito batia ao menor toque de mãos; hoje os remédios é que o fazem.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
VERGONHA
De trás da montanha o sol, enamorado, espia a lua na passarela; mas, inibido, deixa-se mergulhar.
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VESTIBULAR
BELEZA
As asas de borboletas são esconderijos dos arco-íris. Só saem dali quando chova.
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CONFISSÃO
O calor do seu corpo sempre foi lenitivo; hoje é cobertor contra a frieza da minha idade.
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IDADE
No conta-gotas sendo espremido a ânsia de não vazar dose além da sobrevivência.
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IMPIEDOSO
Sem clemência, pintou de vermelho-amarronzado a pele branca do veranista.
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LEMBRANÇAS
Hoje nosso beijo tem sabor saudade do primeiro. O tremor nas pernas também e a paixão continua.
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MADRUGADA NA FEIRA
Olhou-se no pastel como a num espelho: a cara de sono e ressaca confessaram-a massa enrugada.
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PARADA DE ÔNIBUS
O tempo que passa nunca dá carona e a vida se escorre na espera.
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PAIXÃO
No momento em que a vi, o Cupido trouxe o Amor e o espetou com a flecha em meu coração.
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PROFESSOR
Quando abria a boca, um facho de luz vencia trevas; eram suas explicações.
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RESGUARDO
O amor armazenado num coração, se esconde na saia do gostar quando nota violência.
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VAGANDO...
Meu amor fez brotar relva aos pés da árvore, e ali depositei você.
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VELHICE 2
Pelos eriçavam e o peito batia ao menor toque de mãos; hoje os remédios é que o fazem.
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VERGONHA
De trás da montanha o sol, enamorado, espia a lua na passarela; mas, inibido, deixa-se mergulhar.
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VESTIBULAR
As voltas dos ponteiros dobraram-no sobre cadernos; hoje a alegria se desdobra nas horas de folga.
Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.
Nelson Rodrigues (A mulher das bofetadas)
Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio avisar:
— Olha, telefonaram pra ti.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Deixou recado?
— Não. Disse que telefonava depois.
Arregaçando as mangas, bufou:
— OK! OK!
Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:
— Aristides!
Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou. A pessoa perguntava: — “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase grosseiro: — Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.
Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:
— Sou Dorinha.
Aristides quase cai para trás, duro.
Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:
— Ah, como vai você?
— Bem. E você?
— Navegando.
E, então, Dorinha diz-lhe:
— Preciso muito falar contigo.
— Comigo? E quando?
— Já.
— Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura sofrida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?
Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.
Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nunca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparando, começou:
— Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.
Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:
— Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.
O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:
— Você acha que eu posso fazer má idéia de ti? Oh, Dorinha!
Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:
— Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e... Está compreendendo?
Numa confusão total, balbuciou:
— Mais ou menos.
E ela:
— Para falar português claro: — estou oferecendo a minha tarde. Leva-me!
Deslumbrado, exclama:
— Oh, Dorinha!
Ele pagou, trêmulo, a despesa.
Saem e, lá fora, Dorinha observa:
— Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?
Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo. Cheio de escrúpulos, baixa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”. Dorinha interrompe: — “Ótimo!”.
Tomam um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:
— Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.
Protesta, veemente:
— Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!
Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dorinha toma a iniciativa:
— Você não me beija?
Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura. Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:
— Eu não sabia que gostavas tanto de mim!
Dorinha vira-se, com divertida surpresa:
— Mas eu não gosto de ti.
Atônito, pergunta:
— E isso que aconteceu entre nós? Não conta?
A pequena está de pé:
— Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.
Ele insiste, desesperado:
— Quer dizer que não vamos continuar?
Responde:
— Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe: — eu telefono pra ti.
Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir. Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.
Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra. Dizia de si para si: — “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: — era ela. Perguntava, alegremente: — Vamos lá, outra vez?
Foram. E, no apartamento, ela suspira:
— Imagina, deu-me outra bofetada.
Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:
— Os homens são muito burros!
— Por quê?
E Dorinha:
— Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?
— Olha, telefonaram pra ti.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Deixou recado?
— Não. Disse que telefonava depois.
Arregaçando as mangas, bufou:
— OK! OK!
Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:
— Aristides!
Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou. A pessoa perguntava: — “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase grosseiro: — Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.
Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:
— Sou Dorinha.
Aristides quase cai para trás, duro.
Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:
— Ah, como vai você?
— Bem. E você?
— Navegando.
E, então, Dorinha diz-lhe:
— Preciso muito falar contigo.
— Comigo? E quando?
— Já.
— Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura sofrida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?
Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.
Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nunca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparando, começou:
— Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.
Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:
— Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.
O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:
— Você acha que eu posso fazer má idéia de ti? Oh, Dorinha!
Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:
— Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e... Está compreendendo?
Numa confusão total, balbuciou:
— Mais ou menos.
E ela:
— Para falar português claro: — estou oferecendo a minha tarde. Leva-me!
Deslumbrado, exclama:
— Oh, Dorinha!
Ele pagou, trêmulo, a despesa.
Saem e, lá fora, Dorinha observa:
— Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?
Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo. Cheio de escrúpulos, baixa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”. Dorinha interrompe: — “Ótimo!”.
Tomam um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:
— Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.
Protesta, veemente:
— Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!
Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dorinha toma a iniciativa:
— Você não me beija?
Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura. Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:
— Eu não sabia que gostavas tanto de mim!
Dorinha vira-se, com divertida surpresa:
— Mas eu não gosto de ti.
Atônito, pergunta:
— E isso que aconteceu entre nós? Não conta?
A pequena está de pé:
— Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.
Ele insiste, desesperado:
— Quer dizer que não vamos continuar?
Responde:
— Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe: — eu telefono pra ti.
Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir. Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.
Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra. Dizia de si para si: — “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: — era ela. Perguntava, alegremente: — Vamos lá, outra vez?
Foram. E, no apartamento, ela suspira:
— Imagina, deu-me outra bofetada.
Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:
— Os homens são muito burros!
— Por quê?
E Dorinha:
— Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?
Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy
Castro. SP: Cia das Letras, 1993.
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy
Castro. SP: Cia das Letras, 1993.
sexta-feira, 19 de agosto de 2022
Clarisse da Costa (Clarice com C: Perder e Ganhar)
Para Clarice o amor tinha eternas e imortais sensações, que só um coração bom conseguia sentir. Claro, coração inundado de trevas não teria como ver ou sentir qualquer coisa.
Ela mesmo já teve seu momento de trevas, achando que a vida tinha acabado para si, mas com o passar do tempo e o seu amadurecimento a sua percepção foi mudando. É bom mudar às vezes.
Ela já amou e perdeu inúmeras vezes nessa vida, e com essas perdas aprendeu a lidar com muitas coisas. Leva tempo, a dor é profunda, por anos pensou que não fosse se acostumar, mas os livros lhe ajudaram nesse processo tão difícil.
Tem um trecho do livro Jardins da Alma que diz: “- Nunca me perguntaram como é perder alguém que se ama, se me perguntassem eu teria a resposta. Perder alguém é como não ter mais para onde ir. A gente se sente perdido como se não tivesse mais um lar. Falta tudo, falta aquele abraço, carinho…”
Mas perder não é o fim, ao mesmo tempo que a gente perde a gente ganha. Passamos a aprender a saber lidar com a perda e a dor que fica. Depois ganhamos força para mudar o nosso destino.
Claro, a gente não se acostuma. Nem tem como, os laços de afetos são fortes, não morrem. Então perder é necessário às vezes. Até eu entender isso eu ficava me perguntando "por que eu". Obviamente, como tantas pessoas, eu achava que não merecia perder alguém. Mas aí eu virei o jogo, busquei mudanças na minha vida. Era hora de seguir em frente. A saudade fica, choramos às vezes, no entanto, precisamos seguir com a vida.
Ela mesmo já teve seu momento de trevas, achando que a vida tinha acabado para si, mas com o passar do tempo e o seu amadurecimento a sua percepção foi mudando. É bom mudar às vezes.
Ela já amou e perdeu inúmeras vezes nessa vida, e com essas perdas aprendeu a lidar com muitas coisas. Leva tempo, a dor é profunda, por anos pensou que não fosse se acostumar, mas os livros lhe ajudaram nesse processo tão difícil.
Tem um trecho do livro Jardins da Alma que diz: “- Nunca me perguntaram como é perder alguém que se ama, se me perguntassem eu teria a resposta. Perder alguém é como não ter mais para onde ir. A gente se sente perdido como se não tivesse mais um lar. Falta tudo, falta aquele abraço, carinho…”
Mas perder não é o fim, ao mesmo tempo que a gente perde a gente ganha. Passamos a aprender a saber lidar com a perda e a dor que fica. Depois ganhamos força para mudar o nosso destino.
Claro, a gente não se acostuma. Nem tem como, os laços de afetos são fortes, não morrem. Então perder é necessário às vezes. Até eu entender isso eu ficava me perguntando "por que eu". Obviamente, como tantas pessoas, eu achava que não merecia perder alguém. Mas aí eu virei o jogo, busquei mudanças na minha vida. Era hora de seguir em frente. A saudade fica, choramos às vezes, no entanto, precisamos seguir com a vida.
Fonte:
Texto enviado por Samuel C. da Costa
Texto enviado por Samuel C. da Costa
quinta-feira, 18 de agosto de 2022
Raul Pompéia (Decotes de quinze anos)
Curiosa coincidência, pensava Otília, debruçando-se à janela com a carta que lhe escrevera a prima, curiosa coincidência, aquela carta e aquela situação!
Do outro lado da rua em frente, erguia-se em grande prédio de dois andares. Na última janela do segundo andar, à direita, lá estava ele, o impertinente vizinho, que não lhe tirava os olhos de cima, uns vivos olhos vorazes de meter medo.
Com ela, com a sisuda Otília aquele rapaz perdia o seu tempo.
Mas era interessante a coincidência... Ela e aquele sujeitinho ali... e o assunto da carta, da terrível carta!...
Sob a fuzilada de olhares que lhe chegavam da última janela à direita do 2o. andar fronteiro, a mocinha tornou a ler.
"... Nada conheces, na tua idade de inexperiência e de surpresas.
Sou do número das trintonas de Balzac, um escritor que ainda não leste, entendido nos mistérios da alma feminina, sou do número das educadas do amor, mulheres de curso completo na ciência do coração.
Mas já tive a tua idade, os deliciosos quatorze ou quinze anos de criança, quando o sexo nos revela apenas pela prevenção desconfiada do pudor, essa tolice adorável do sangue.
Amanhã, muito breve, saberás o que valem as flores de fogo que às vezes te abrasam o lindo rosto. Então na hora do amor, compreenderás os vagos temores, indefinidos sustos que te assaltam, como um rebate, de extraordinárias coisas. O coração fugir-te-á do peito, a internar-se como um herói de balada, pela floresta das fantasias. Sonharás o eleito dos teus afetos.
Instintivamente entregar-te-ás à impaciente urdidura de quantas armadilhas imaginares para a caçada do ideal.
A propósito, conto-te uma historieta dos meus quinze anos. Uma lição que te dou de experiência galante.
Eu morava na rua dos Arcos, naquela casa assobradada, de seis janelas, onde hoje habita a família da R . C.
Enclausurada na rede de solicitude, com que nos cercava, a mim e às manas, meu pai, avaro dos seus tesouros (tesouros éramos nós) arredada severamente do comércio da sociedade, ardia-me o desejo curioso de uma aventura, fora do círculo conhecido dos carinhos domésticos.
Diante da nossa casa morava um moço moreno, esbelto... circunstância propícia! Um belo companheiro para a minha escapula.
Ser amada por um rapaz como esse, eu não queria mais! Um só olhar de amor que ele me dirigisse, arrebatar-me-ia às sonhadas viagens azuis.
Dezoito anos parecia ter; sobre os lábios começava a acentuar-se-lhe o desenho volteado de um futuro par de bigodes; grandes olhos negros, exprimindo mansidão, pupilas que se moviam devagar, oleosamente no corte das pálpebras.
De manhã, cedo, aparecia à janela do sótão que lhe servia de quarto e, com um copo-d'água, regava amorosamente o vergel de madressilvas que diante dele se espraiavam pelo telhado até envolver as goteiras prolongadas sobre a rua em bocas de corneta.
Banhava as flores e as flores enviavam-me baforadas de doce perfume.
Mas só as madressilvas se apercebiam de mim. Cândido demais, ou demasiado altivo, o vizinho não me ligava importância.
Ora eu tinha veleidades de beleza; avalias o meu despeito.
Dizem que a melhor maneira de atrair o olhar é olhar. Eu olhava, olhava e perdia o esforço. Cheguei a supor que o inflexível moreno, já não era senhor do seu coração e caprichava em manter a lealdade dos seus compromissos.
Era para desesperar.
Felizmente, um dia, eu o surpreendi a observar-me.
Oh, júbilo! Mas era preciso cativar de uma vez aquele olhar que me podia fugir para sempre, esquivo como a ocasião. O demoninho dos quinze anos soprou-me um expediente. Devia ser aquele beija-flor que me passou pelo rosto zunindo.
O pudor é uma grande força.
Esse tesouro de graça saibam-no despender as mulheres.
Loucas as que distribuem, cegamente, o seu patrimônio de rosas. Tolas as que o soterram no segredo desnaturado da inteira reserva, revelando-o quando muito às frias confidências de cristal do espelho.
Toda esta teoria endiabrada do decote ocorreu-me num segundo.
Na tua idade, eu adivinhava os homens!
Resolvi afrouxar o laço de vexame com que me estrangulava, nos vestidos afogados, prescritos por minha mãe.
Fingi que desdenhava o olhar do vizinho, voltando o rosto para outro lado. E atrevidamente soltei um... dois... três... botões da gola do meu princesa!
Ora, minha bela Otília, dai a pouco, eu guardava no seio submisso, rendido o olhar rebelde do meu moreno; acolhia-o no tépido decote dos meus quinze anos, como um pombo no vinho, friorento, trêmulo.
Assim, no dia seguinte, e no outro e no outro...
E começaram a secar de ciúmes as madressilvas..."
Neste ponto, sem saber como, viu Otília que um... dois... três botões do paletó branco, tal qual na história da prima, se lhe haviam desprendido.
Que horror!
E, sob a fuzilada de olhares da última janela do 2o. andar fronteiro, as abas de fustão, como grandes pétalas, abertas num desabrochar audacioso de magnólia, entremostravam colorações de carne virgem e fugitivas sombras, rendilhadas, ao fundo, por encantadora desordem de crivos claríssimos de camisa.
Do outro lado da rua em frente, erguia-se em grande prédio de dois andares. Na última janela do segundo andar, à direita, lá estava ele, o impertinente vizinho, que não lhe tirava os olhos de cima, uns vivos olhos vorazes de meter medo.
Com ela, com a sisuda Otília aquele rapaz perdia o seu tempo.
Mas era interessante a coincidência... Ela e aquele sujeitinho ali... e o assunto da carta, da terrível carta!...
Sob a fuzilada de olhares que lhe chegavam da última janela à direita do 2o. andar fronteiro, a mocinha tornou a ler.
"... Nada conheces, na tua idade de inexperiência e de surpresas.
Sou do número das trintonas de Balzac, um escritor que ainda não leste, entendido nos mistérios da alma feminina, sou do número das educadas do amor, mulheres de curso completo na ciência do coração.
Mas já tive a tua idade, os deliciosos quatorze ou quinze anos de criança, quando o sexo nos revela apenas pela prevenção desconfiada do pudor, essa tolice adorável do sangue.
Amanhã, muito breve, saberás o que valem as flores de fogo que às vezes te abrasam o lindo rosto. Então na hora do amor, compreenderás os vagos temores, indefinidos sustos que te assaltam, como um rebate, de extraordinárias coisas. O coração fugir-te-á do peito, a internar-se como um herói de balada, pela floresta das fantasias. Sonharás o eleito dos teus afetos.
Instintivamente entregar-te-ás à impaciente urdidura de quantas armadilhas imaginares para a caçada do ideal.
A propósito, conto-te uma historieta dos meus quinze anos. Uma lição que te dou de experiência galante.
Eu morava na rua dos Arcos, naquela casa assobradada, de seis janelas, onde hoje habita a família da R . C.
Enclausurada na rede de solicitude, com que nos cercava, a mim e às manas, meu pai, avaro dos seus tesouros (tesouros éramos nós) arredada severamente do comércio da sociedade, ardia-me o desejo curioso de uma aventura, fora do círculo conhecido dos carinhos domésticos.
Diante da nossa casa morava um moço moreno, esbelto... circunstância propícia! Um belo companheiro para a minha escapula.
Ser amada por um rapaz como esse, eu não queria mais! Um só olhar de amor que ele me dirigisse, arrebatar-me-ia às sonhadas viagens azuis.
Dezoito anos parecia ter; sobre os lábios começava a acentuar-se-lhe o desenho volteado de um futuro par de bigodes; grandes olhos negros, exprimindo mansidão, pupilas que se moviam devagar, oleosamente no corte das pálpebras.
De manhã, cedo, aparecia à janela do sótão que lhe servia de quarto e, com um copo-d'água, regava amorosamente o vergel de madressilvas que diante dele se espraiavam pelo telhado até envolver as goteiras prolongadas sobre a rua em bocas de corneta.
Banhava as flores e as flores enviavam-me baforadas de doce perfume.
Mas só as madressilvas se apercebiam de mim. Cândido demais, ou demasiado altivo, o vizinho não me ligava importância.
Ora eu tinha veleidades de beleza; avalias o meu despeito.
Dizem que a melhor maneira de atrair o olhar é olhar. Eu olhava, olhava e perdia o esforço. Cheguei a supor que o inflexível moreno, já não era senhor do seu coração e caprichava em manter a lealdade dos seus compromissos.
Era para desesperar.
Felizmente, um dia, eu o surpreendi a observar-me.
Oh, júbilo! Mas era preciso cativar de uma vez aquele olhar que me podia fugir para sempre, esquivo como a ocasião. O demoninho dos quinze anos soprou-me um expediente. Devia ser aquele beija-flor que me passou pelo rosto zunindo.
O pudor é uma grande força.
Esse tesouro de graça saibam-no despender as mulheres.
Loucas as que distribuem, cegamente, o seu patrimônio de rosas. Tolas as que o soterram no segredo desnaturado da inteira reserva, revelando-o quando muito às frias confidências de cristal do espelho.
Toda esta teoria endiabrada do decote ocorreu-me num segundo.
Na tua idade, eu adivinhava os homens!
Resolvi afrouxar o laço de vexame com que me estrangulava, nos vestidos afogados, prescritos por minha mãe.
Fingi que desdenhava o olhar do vizinho, voltando o rosto para outro lado. E atrevidamente soltei um... dois... três... botões da gola do meu princesa!
Ora, minha bela Otília, dai a pouco, eu guardava no seio submisso, rendido o olhar rebelde do meu moreno; acolhia-o no tépido decote dos meus quinze anos, como um pombo no vinho, friorento, trêmulo.
Assim, no dia seguinte, e no outro e no outro...
E começaram a secar de ciúmes as madressilvas..."
Neste ponto, sem saber como, viu Otília que um... dois... três botões do paletó branco, tal qual na história da prima, se lhe haviam desprendido.
Que horror!
E, sob a fuzilada de olhares da última janela do 2o. andar fronteiro, as abas de fustão, como grandes pétalas, abertas num desabrochar audacioso de magnólia, entremostravam colorações de carne virgem e fugitivas sombras, rendilhadas, ao fundo, por encantadora desordem de crivos claríssimos de camisa.
Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.
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