terça-feira, 11 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XIV - Eficiência e Eugenia


CAPITULO XIV
Eficiencia e Eugenia


— O aspecto da vida americana, continuou miss Jane, mudara muito por efeito das invenções e de um grande principio peculiar ao yankee.

Quem olhasse de um ponto elevado o panorama histórico dos povos, veria, na França, uma flâmula com três palavras; na Inglaterra, um principio diretor, Tradição; na Alemanha, uma formula, Organização; na Asia, um sentimento, Fatalismo. Mas ao voltar os olhos para a América perceberia fluidificado no ambiente um principio novo — Eficiencia.

Só a América encontrara o Sésamo que abre todas as portas. Só a América, portanto, era Ação num mundo a insistir em caminhos errados e sempre a oscilar entre dois pólos — Agitação Estéril e Marasmo Fatalista.

O principio da Eficiencia resolvera todos os problemas materiais dos americanos, como o eugenismo resolvera todos os seus problemas morais. Na operosidade e uniformidade do tipo, aquele povo lembrava a colméia das abelhas. Quasi não havia distinguir um indivíduo de outro, pois tomar um homem ao acaso era ter nas mãos uma poderosa unidade de eficiencia dentro de um admirável tipo de ariano pele-avermelhado.

As mulheres não mais evocavam fisicamente as suas avós, magras umas, outras gordas, esta toda nádegas, aquela uma tábua ou de enormes seios e dentes de cavalo — verdadeira coleção de monstruosidades anatêmicas. Nem recordavam socialmente as pobres cativas de dantes, forçadas a girar no triangulo de ferro — casamento, celibato á força ou promiscuidade.

Finas sem magreza, ágeis sem macaquice, treinadas de músculos por meio de sábios esportes, conseguiram alcançar a beleza nervosa das éguas puro-sangue — o que trouxe a decadência do hipismo. Já não necessitavam os homens de dedicar-se aos cavalos para satisfação da ânsia secreta da beleza perfeita…

– Que pena ter-se perdido o porviroscópio do professor Benson! exclamei. O que eu não daria para uma espiadela nesse maravilhoso futuro!... Lindas, então, assim? perguntei levemente assanhado.

– E hábeis, respondeu miss Jane. Competiam com o homem em todas as profissões num absoluto pé de igualdade, realizando o velho ideal da independência. Os filhos lhes pertenciam e não ao progenitor, sistema matriarcal muito mais dentro da natureza, visto como o filho é mais da mãe do que do pai na proporção de nove meses para meio minuto.

Tossi uma tossezinha de encomenda; miss Jane não o percebeu e continuou:

– O característico mais frisante dessa época, toda via, estava na organização do trabalho. Todos produziam. Muito cedo chegou o americano á conclusão de que os males do mundo vinham de três pesos mortos que sobrecarregavam a sociedade — o vadio, o doente e
o pobre. Em vez de combater esses pesos mortos por meio do castigo, do remédio e da esmola, como se faz hoje, adotou solução muito mais inteligente: suprimi-los. A eugenia deu cabo do primeiro, a higiene do segundo e a eficiencia do ultimo. Aliviada da carga inútil que tanto a embaraçava e arfeava, pôde a América aproximar-se de um tipo de associação já existente na natureza, a colméia — mas a colméia da abelha que raciocina.

– Que maravilha! exclamei pesaroso de ter vindo ao mundo cedo demais. E o governo, miss Jane? Deixou de ser essa calamidade que é hoje?

– Os princípios da eficiencia tambem haviam penetrado no organismo governamental. Deixou o governo de sugerir a lembrança dos hediondos "sistemas de parasitismo" de outrora e de hoje, como a realeza de França ou o devorismo orçamentário de certas repúblicas nossas conhecidas, onde fazer parte do estado é conquistar o direito à inação da piolheira vitalícia — dormir, apodrecer na sonolência da burocracia que não espera, não deseja, não quer, não age — suga apenas. Tudo isso desapareceu, todas essas baixas formas de parasitismo. Tornou-se o estado americano uma organização em coisa nenhuma diversa das organizações particulares. Apenas maior e com funções privativamente suas.

– Sempre sob o sistema representativo?

– Sim. O sistema representativo persistiu. Mas só eram eleitos homens cujo viver social os apontava como seres de escol pela força e equilibrio do cérebro. Não constituía uma situação sujeita a disputas, o ser deputado ou senador. Era uma contingência. Os homens de elite viam-se colocados nesses postos naturalmente, como o melhor músico das orquestras sobe naturalmente á cadeira da regência. O equilibrio mental tornou-se perfeito — mas apenas da parte dos homens. As mulheres, não obstante o levantamento físico e moral, permaneciam variáveis como no tempo de Francisco I.

– Souvent femme varie…

– Sim. Conquistaram a mais perfeita igualdade de direitos, mas ondeavam, arrastadas pelo vento das ideias. Trocaram o souvent do bom Francisco I pelo toujours de miss Elvin. Como a simplicidade dos trajes fizera desaparecer a hoje obsedante preocupação da moda, talvez em virtude do vinco mental elas mudaram a moda para o campo das ideias. O elvinismo, por exemplo, avassalou as mulheres americanas com a tirania do nosso cabelo á la garçonne. Excelentes mães de família e ótimas esposas batiam-se pelo "sabino" com inconsciência de pasmar. Mas chegadas em casa despiam o cérebro da extravagância e beijavam na testa o Homo que na rua vinham de condenar como "infame raptor".

O orgão de miss Elvin — Remember sabino! mantinha a exaltação dos espíritos num constante estado de fervura.

– Ainda havia jornais nesse tempo?

– Sim, mas jornais nada relembrativos dos de hoje. Eram irradiados e impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as casas.

– E os cegos?

– O cego ficou para trás, Cegueira, mudez, surdez, estupidez, tudo isso não passava de reminiscências dum tempo de que os homens sorriam com piedade.

O rádio que temos hoje é um simples ponto de partida. Vale como valem para a eletricidade moderna as primeiras experiencias de Volta. Descobriram-se novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações táteis, passou a ser feito por intermédio delas. A consequência lógica foi uma grande transformação da vida. Pelo sistema atual vai o homem para o serviço, para o teatro, para o concerto — um ir e vir que constitui um enorme desperdício de energia e é o criador dos milhões de veículos atravancadores do espaço, bondes, autos, bicicletas, trens, aviões e outros. Com a fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins, e sua consequente escravização aos interesses do homem, o ir e vir forçado se reduziu a escala mínima. O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem. Foi espantosa a transformação das condições do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou a ser feita de longe pelo rádio-transporte. Para dar uma ideia do que isso representava de economia de esforço e tempo, basta vermos o que era o jornal de miss Elvin. Pelo sistema atual, o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escreve-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; esse tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! Ê uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá inicio á nova cadeia que desfecha no leitor — correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo.

– Já estive numa oficina de jornal e sei o que é isso. Puro inferno…

– Pois toda esta complicação desapareceu. Cada colaborador do Remember radiava de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas ideias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.

– Que maravilha!…

– Sim, não houve industria que como a do jornal não sofresse a influencia simplificadora do radio-transporte — e isso tirou ao viver quotidiano a sua velha feição de atropelo e tumulto.

As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego. Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, corno outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é indice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado. Parece coisa muito evidente isto; no entanto foi a maior descoberta que fez o povo mais apressado do mundo…

– — Realmente! exclamei, chocado pelo imprevisto daquele aspecto do futuro. Eu que por assim dizer moro na rua, só com este quadro da rua futura já me estou assombrando com o horror da rua moderna. E, no entanto, se miss Jane nada me revelasse continuaria a ter como muito natural o tumulto de hoje.

– O hábito não nos deixa ver os defeitos, e daí a vantagem de convulsões como a de miss Elvin. O grande obstáculo ao progresso sempre foi o hábito, a ideia feita, a preguiça de constante exame do único problema material da vida — o do transporte.

– Único?

– Sim, único. Tudo é transporte na vida, senhor Ayrton, e o tumulto de hoje vem das imperfeições dos nossos sistemas de transporte. Tudo é transporte! A minha voz transporta ideias do meu cérebro para o seu. Esse livro que o senhor tem nas mãos é um sistema de transporte de impressões mentais. Que faz a firma Sá, Pato & Cia. senão transportar mercadorias de um lado para outro, com o fim ultimo de transportar para as burras dos sócios o dinheiro dos clientes? E que é o dinheiro senão um maravilhoso e engenhosissimo meio de transporte?

– For isso são as moedas redondas…

– Rodinhas... O homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão do seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história até nós e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda. Mas do ano 2200 em diante começará o seu declínio e em 3000 e tantos estará passada. Num corte anatômico dessa época vi certo museu nos arredores de Pittsburgh que muito me impressionou — o Museu da Roda. Dormiam nas vitrinas, como dormem hoje os machados de sílex dos nossos avós, as modalidades infinitas de rodas sobre as quais ainda gira hoje a civilização, desde o rodízio brutesco dos carros de boi até a mínima engrenagem dos relógios de pulso. O rádio matará a roda, concluiu miss Jane.

Pus-me a refletir naquilo e a comparar a estreiteza do meu cérebro com a amplidão do cérebro da filha do professor Benson. Quantas rodas tinha ele mais do que o meu! E como rodavam bem lubrificadas as rodinhas do cérebro de miss Jane, todas postas sobre mancais de bilhas…

– De tudo quanto miss Jane acaba de expor concluo que a vida nos Estados Unidos passou a ser um céu aberto, comentei eu.

Não vou até lá, contraveio ela. Havia uma pedra no sapato americano: o problema étnico. A permanência no mesmo território de duas raças dispares e infusiveis perturbava a felicidade nacional. Os atritos se faziam constantes e, embora não desfechassem como
outrora nas violências da Ku-Klux-Klan, constituíam um permanente motivo de inquietação.

A ideia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a cidadania americana por outra qualquer. O processo cientifico de embranquece-los aproximava-os dos brancos na côr, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar. Se isso se desse, poderia o caso negro entrar por um caminho imprevisto, a perfeita camouflage do negro em branco, Tal saída, entretanto, era apenas um sonho dos imaginativos impenitentes. E como a repartição do país em duas zonas não fosse forma aceita pelos brancos, iam os Estados Unidos entrar no seu 88.° período presidencial com o mesmo problema que trezentos e trinta e nove anos antes preocupara o grande George Washington.

Enquanto miss Jane falava, naquele tom impessoal e frio de sábio a fazer conferência pública, toda ela cérebro e cultas expressões na boca, eu, humano que sou, envolvia-a nos meus ternos olhares de carneiro amoroso, e essa minha excessiva atenção á parte corpórea da encantadora vidente me fez perder muita coisa interessante das suas revelações. Distraia-me, preso àquele lindo presente de olhos azuis sempre a pairar pelas eras futuras. Quando, por exemplo, ela entrou a descrever o tipo dos negros descascados do ano 2228, confesso que perdi metade das suas observações. Achava-me no momento a namorar o mimoso lóbulo da sua orelha esquerda, onde brincava um raio de sol. Esse fio de luz acendia-lhe em ouro a penugem finíssima e o tornava do róseo translúcido de certos veios da ágata. Perdi-me no gracioso pedacinho de carne, como a sua dona andava perdida em plena despigmentação do século XXIII. A poesia falou em mim e uma imagem lírica entreabriu a pieguice das suas pétalas. Lembrei-me do baiser de Rostand, point rose sur l'i du verbe aimer, e perpetrei coisa melhor: depor naquele ninho de colibri o ovinho de um beijo...

Depois filosofei e pareceu-me apreender uma grande verdade: a beleza não passa de um total de parcelas que a mão da Harmonia soma.

Que terríveis torneiras abre o amor!

Mas ao chegar naquele ponto das suas revelações, miss Jane ergueu os olhos para o relógio. Em seguida apertou o botão da campainha.

Veio um criado.

— Chá, disse ela.

Eu já sabia da significação do chá, engenhoso ponto e virgula com que miss Jane punha fim ás nossas palestras domingueiras.

Regressei á cidade mais apaixonado do que nunca pela encantadora filha do velho sábio — sábia tambem ela, mas, ai! bem pouco feminina... O Amor que ardia em meu peito não a contagiava. Talvez nem sequer o percebesse. Ou percebera desde o inicio e dissimulava? Mulher, mulher... Sabina vingativa — false as water...

Fiquei na dúvida. Seria miss Jane um puro espirito, uma vibração de éter jamais interferida, ou tinha nervos como as demais, coração, sensibilidade como todas as mulheres?

No dia seguinte, no escritório, notou o patrão o ar distante com que eu colecionava umas faturas. Meu pensamento estava longe da firma, vogando em pleno período da simbiose desmascarada. Não sei por que motivo o senhor Sá mostrava-se nesse dia alegre e familiar. Vira o passarinho verde, com certeza. Tão familiar e alegre que em certo momento me atrevi a fazer--lhe uma pergunta:

— Acha o senhor Sá que é a mulher a fêmea natural do homem?

O honrado negociante não respondeu, mas fulminou-me com tais olhos que achei prudente esgueirar-me para a sala vizinha com o pacote de faturas na mão. Vim a saber depois que em conferência com o senhor Pato ele chegara á conclusão de que a queda no precipício me tinha evidentemente "perturbado as faculdades mentais"...
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continua… XV – Vésperas do Pleito

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

Elaine Bueno (Amigo)

Fonte:
Poema e imagem enviadas pela poetisa

Ivan Carlo (Manual de Redação Jornalística) Parte 5


CAPÍTULO 4
O JORNALISMO É ESSENCIALMENTE REFERENCIAL

Você já deve ter estudado em língua portuguesa as funções da linguagem. Elas estão intimamente ligas ao processo de comunicação. Então vamos lembrar um pouco de como funciona o processo de comunicação.

Vamos imaginar uma conversa. Temos duas pessoas conversando. Como ocorre o processo de comunicação nesse caso?

Para que o processo comece é necessário haver um emissor. É ele que vai transmitir a mensagem. A mensagem será transformada em um código (língua portuguesa) a ser transmitido através de um canal (ondas sonoras).

A mensagem deve fazer referência a algo exterior a ela. Se eu digo “Olhe a cor desta mesa”, os referencias são a mesa e sua cor. Se um namorado declara seu amor à namorada, o referente é o amor do qual ele está falando.

A mensagem será recebida por receptor, que decodificará a mensagem e reagirá a ela, através de um feed-back. Feed-back é a resposta à mensagem. Ele pode vir tanto pelo mesmo canal e pelo mesmo código, quanto por canal e código diferentes. Se o namorado diz que ama a garota e recebe um beijo, o feed-back é o beijo. O processo de comunicação, portanto, ficaria mais ou menos assim:

EMISSOR RECEPTOR
REFERENTE
MENSAGEM
CÓDIGO
CANAL

A cada elemento do processo de comunicação ( com exceção do feeed-back) corresponde uma função da linguagem. Quando a mensagem é centrada no emissor, temos a função emotiva. É quando o texto fala de quem o está escrevendo. É um tipo de texto usado, por exemplo, em declarações de amor. Notem o pronome na frase “Eu te amo”.

Quando a mensagem é centrada no receptor, temos a função apelativa, ou conativa. Função normalmente usada na publicidade:
“Compre isso!”, “Beba Coca-cola!”.

A comunicação centrada no código é metalinguística. É o caso, por exemplo, de um filme sobre o cinema.

A função fática é usada quando queremos testar o canal. É a função que usamos quando queremos Ter certeza de que o receptor está captando a mensagem. Alguns exemplos de frases fáticas: “Alô”, “Você está me ouvindo?”. Nesse caso, a carga de informação da mensagem é quase nula.

A função poética é quando a comunicação é centrada na mensagem.

Finalmente, a função referencial ocorre quando a comunicação é centrada no referente: “Esta cadeira é azul”. O referente da frase são a cadeira e sua cor.

O jornalismo trabalha, essencialmente, com a linguagem referencial. Ou seja, o que realmente interessa são os fatos e seus personagens.

Para cumprir sua função referencial, o jornalismo deve recorrer às seis perguntas (o que, quando, onde, como, quem, por que). Mas a busca da função referencial leva a um cuidado ainda maior. O jornalismo deve procurar informar o momento exato em que o evento ocorreu, o local exato, as pessoas que realmente participaram, etc.

O jornalismo evita o achismo (função emotiva – eu acho) e o parecismo (parece que fulano estava bêbado, parece que o presidente vai falar à nação).

O texto deve ser referencial. Se o jornalista quiser dizer que determinado motorista estava bêbado, ele deve procurar fatos que comprovem isso (teste de bafômetro, depoimento de testemunhas, declarações do policial rodoviário).

FEED.BACK
Também se evita frases ou expressões que tenham sentido vago ou impreciso. Deve-se, sempre que possível, trocá-los por informações concretas.

Veja alguns exemplos:

Comerciante próspero - o correto seria lista os bens do comerciante.

Bela mulher – o ideal seria um fato dela ou opinião de pessoa abalizada, como um descobridor de talentos.

Grande salário - dizer o salário.

Grande distância - distância correta.

Edifício alto - número de andares.

Episódio chocante - contar o episódio e deixar ao leitor a interpretação.

General anunciou a abertura de inquérito rigoroso - pela lógica, não deveria haver inquérito não rigoroso.

Ligeiramente desafinado - ou está desafinado ou não.

Aparentemente grávida – ou estava grávida ou não.

Na calada da noite – horário exato em que ocorreu o fato.

Fora do prazo estipulado – um dia atrasado.

Fazia um calor de rachar – 40 graus à sombra.

Parlamentar – deputado federal

continua… CAPÍTULO 5 – O JORNAL NÃO PRODUZ INFORMAÇÃO, ELE A DIVULGA

Fonte:
Virtualbooks

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 2


NO ÁLBUM DE J.C.M.

Nestas folhas perfumadas
Pelas rosas desfolhadas
Desses cantos de amizade,
Permite que venha agora
Quem longe da pátria chora
Bem triste gravar: - saudade !
Lisboa

NA REDE

Nas horas ardentes do pino do dia
Aos bosques corri;
E qual linda imagem dos castos amores,
Dormindo e sonhando cercada de flores
Nos bosques a vi!

Dormia deitada na rede de penas
- O céu por dossel,
De leve embalada no quieto balanço
Qual nauta cismando num lago bem manso
Num leve batel!
Dormia e sonhava - no rosto serena
Qual um serafim;
Os cílios pendidos nos olhos tão belos,
E a brisa brincando nos soltos cabelos
De fino cetim!
Dormia e sonhava - formosa embebida
No doce sonhar,
E doce e sereno num mágico anseio
Debaixo das roupas batia-lhe o seio
No seu palpitar!
Dormia e sonhava - a boca entreaberta,
O lábio a sorrir;
No peito cruzados os braços dormentes,
Compridos e lisos quais brancas serpentes
No colo a dormir!
Dormia e sonhava - num sonho de amores
Chamava por mim,
E a voz suspirosa nos lábios morria
Tão terna e tão meiga qual vaga harmonia
De algum bandolim!
Dormia e sonhava - de manso cheguei-me
Sem leve rumor;
Pendi-me tremendo e qual fraco vagido,
Qual sopro da brisa, baixinho ao ouvido
Falei-lhe de amor!
Ao hálito ardente o peito palpita...
Mas sem despertar;
E como nas ânsias dum sonho que é lindo,
A virgem na rede corando e sorrindo...
Beijou-me a sonhar!
Junho - 1858

A VOZ DO RIO – NUM ÁLBUM

Nosso sol é de fogo, o campo é verde,
O mar é manso, nosso céu azul!
- Ai! porque deixas este pátrio ninho
Pelas friezas dos vergéis do sul?
Lá nessa terra onde o Guaíba chora
Não são as noites, como aqui, formosas
E as duras asas do Pampeiro iroso
Quebra as tulipas e desfolha as rosas.

A lua é doce, nosso mar tranqüilo,
Mais leve a brisa, nosso céu azul!...
- Tupá! Quem troca pelo pátrio ninho
As ventanias dos vergéis do sul?
Lá novos campos outros campos ligam
E a vista fraca na extensão se perde!
E tu sozinha viverás no exílio
- Garça perdida nesse mar que é verde! -
Nossas campinas como doces noivas
Vivem c’os montes sob o céu azul!
- Há vida e amores neste pátrio ninho
Mais rico e belo que os vergéis do sul!
Essas palmeiras não têm tantos leques,
O sol dos Pampas mareou seu brilho,
Nem cresce o tronco que susteve um dia
O berço lindo em que dormiu teu filho!
Nossas florestas sacudindo os galhos
Tocam c’os braços este céu azul!...
- Se tudo é grande neste pátrio ninho
Porque deixá-lo p’ra viver no sul?!
Embora digas: - essa terra fria
Merece amores, é irmã da minha -
quem dar-te pode este calor do ninho,
A luz suave que o teu berço tinha?!
Eu - Guanabara - no meu longo espelho
Reflito as nuvens deste céu azul;
- Ó minha filha! acalentei-te o sono,
Porque me deixas p’ra viver no sul?!...
Lá, quando a terra s’embuçar nas sombras
E o medroso sol s’esconder nas águas,
Teu pensamento, como o sol que morre,
Há de cismando mergulhar-se em mágoas!
Mas se forçoso t’é deixar a pátria
Pelas friezas dos vergéis do sul,
Ó minha filha! não t’esqueças nunca
Destas montanhas, deste céu azul.
Tupá bondoso te derrame graças,
Doce ventura te bafeje e siga,
E nos meus braços - ao voltar do exílio -
Saudando o berço que teu lábio diga:
“Volvo contente para o pátrio ninho,
“Deixei sorrindo esses vergéis do sul;
“Tinha saudades deste sol de fogo...
“Não deixo mais este meu céu azul!...”
Rio - 1858

SETE DE SETEMBRO - A D. PEDRO II

Foi um dia de glória! - O povo altivo
Trocou sorrindo as vozes de cativo
Pelo cantar das festas!
O leão indomável do deserto
Bramiu soberbo, dos grilhões liberto,
No meio das florestas!
Lá no Ipiranga do Brasil o Marte
Enrolado nas dobras do estandarte
Erguia o augusto porte;
Cercada a fronte dos lauréis da glória
Soltou tremendo o brado da vitória:
- Independência ou morte!
O santo amor dos corações ardentes
Achou eco no peito dos valentes
No campo e na cidade;
E nos salões - do pescador nos lares,
Livres soaram hinos populares
À voz da liberdade!
Anos correram; - no torrão fecundo
Ao sol de fogo deste novo-mundo
A semente brotou;
E franca e leda, a geração nascente
À copa altiva da árvore frondente
Segura se abrigou!
À roda da bandeira sacrossanta
Um povo esperançoso se levanta
Infante e a sorrir!
A nação do letargo se desperta,
E - livre - marcha pela estrada aberta
Às glórias do porvir!
O país, n’alegria todo imerso,
Velava atento à roda só dum berço
Era o vosso, Senhor!
Vós do tronco feliz doce renovo,
Vede agora, Senhor, na voz do povo
Quão grande é seu amor!
Rio - 1858

POESIA E AMOR

A tarde que expira,
A flor que suspira,
O canto da lira,
Da lua o clarão;
Dos mares na raia
A luz que desmaia,
E as ondas na praia
Lambendo-lhe o chão;
Da noite a harmonia
Melhor que a do dia,
E a viva ardentia
Das águas do mar;
A virgem incauta,
As vozes da flauta,
E o canto do nauta
Chorando o seu lar;
Os trêmulos lumes,
Da fonte os queixumes,
E os meigos perfumes
Que solta o vergel;
As noites brilhantes,
E os doces instantes
Dos noivos amantes
Na lua-de-mel;
Do templo nas naves
As notas suaves,
E o trino das aves
Saudando o arrebol;
As tardes estivas,
E as rosas lascivas
Erguendo-se altivas
Aos raios do sol;
A gota de orvalho
Tremendo no galho
Do velho carvalho,
Nas folhas do ingá;
O bater do seio,
Dos bosques no meio
O doce gorjeio
Dalgum sabiá;
A órfã que chora,
A flor que se cora
Aos raios da aurora,
No albor da manhã;
Os sonhos eternos,
Os gozos mais ternos,
Os beijos maternos

E as vozes de irmã;
O sino da torre
Carpindo quem morre,
E o rio que corre
Banhando o chorão;
O triste que vela
Cantando à donzela
A trova singela
Do seu coração;
A luz da alvorada,
E a nuvem dourada
Qual berço de fada
Num céu todo azul;
No lago e nos brejos
Os férvidos beijos
E os loucos bafejos
Das brisas do sul;
Toda essa ternura
Que a rica natura
Soletra e murmura
Nos hálitos seus,
Da terra os encantos,
Das noites os prantos,
São hinos, são cantos
Que sobem a Deus!
Os trêmulos lumes,
Da veiga os perfumes,
Da fonte os queixumes,
Dos prados a flor,
Do mar a ardentia,
Da noite a harmonia,
Tudo isso é - poesia!
Tudo isso é - amor!
Indaiaçu - 1857

ORAÇÕES - A***

A alma, como o incenso, ao céu s’eleva
Da férvida oração nas asas puras,
E Deus recebe como um longo hosana
O cântico de amor, das criaturas.
Do trono d’ouro, que circundam os anjos

Sorrindo ao mundo a Virgem-Mãe s’inclina
Ouvindo as vozes d’inocência bela
Dos lábios virginais duma menina.
Da tarde morta o murmurar se cala
Ante a prece infantil, que sobe e voa
Fresca e serena qual perfume doce
Das frescas rosas de gentil coroa.
As doces falas de tua alma santa
Valem mais do que eu valho, oh! querubim!
Quando rezares por teu mano, à noite,
Não t’esqueças - também reza por mim!
Rio - 1858

BÁLSAMO

Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras
Rojar-se essa mulher que a dor ferira!
A morte lhe roubara de um só golpe
Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,
E deixou-a sozinha e desgrenhada
- Estátua da aflição aos pés dum túmulo!
O esquálido coveiro p’ra dois corpos
Ergueu a mesma enxada, e nessa noite
A mesma cova os teve!
E a mãe chorava,
E mais alto que o choro erguia as vozes!
..............................................................
No entanto o sacerdote - fronte branca
Pelo gelo dos anos - a seu lado
Tentava consolá-la.
A mãe aflita
Sublime desse belo desespero
As vozes não lhe ouvia; a dor suprema
Toldava-lhe a razão no duro transe.
“Oh! padre! - disse a pobre s’estorcendo
Co’a voz cortada dos soluços d’alma -
“Onde o bálsamo, as falas d’esperança,
“O alívio à minha dor?!”
Grave e solene,
O padre não falou - mostrou-lhe o céu!
Rio - 1858

DEUS

Eu me lembro! eu me lembro! - Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia
E, erguendo o dorso altivo, sacudia
A branca escuma para o céu sereno.
E eu disse a minha mãe nesse momento:

“Que dura orquestra! Que furor insano!
“Que pode haver maior do que o oceano,
“Ou que seja mais forte do que o vento?!” -
Minha mãe a sorrir olhou p’r’os céus
E respondeu: - “Um Ser que nós não vemos
“É maior do que o mar que nós tememos,
“Mais forte que o tufão! meu filho, é - Deus!”-
Dezembro - 1858

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

As Mil e Uma Noites (Parte 2)


O CONSELHEIRO

Contam que certo lavrador possuía um burro que o repouso engordara e um boi que o trabalho abatera. Um dia, o boi queixou-se ao burro e perguntou-lhe: “Não terás, ó irmão, algum conselho que me salve desta dura labuta?” O burro respondeu: “Finge-te de doente e não comas tua ração. Vendo-te assim, nosso amo não te levará para lavrar o campo e poderás descansar.” Dizem que o lavrador entendia a linguagem dos animais e compreendeu o que eles conversaram. Na manhã seguinte, viu que o boi não comera sua ração. Deixou-o e levou o burro em seu lugar. O burro foi obrigado a puxar o arado o dia todo, e quase morreu de cansaço. E lamentou o conselho que dera ao boi. Quando voltou à noite, perguntou-lhe o boi: “Como vais, querido irmão?” Respondeu o burro:

“Vou muito bem. Gostei da luz do sol e da alegria dos campos. Mas ouvi algo que me fez estremecer por tua causa. Ouvi nosso amo dizer: “Se o boi continuar doente, deveremos matá-lo para não perdermos sua carne.” Minha opinião é que comas tua ração e voltes para tua tarefa a fim de evitar tamanho infortúnio.”

O boi concordou e devorou toda a sua ração. O lavrador estava ouvindo, e riu.

O HOMEM E SUA MULHER / O GALO E AS 50 GALINHAS

Na história intitulada O conselheiro, quando o homem deu uma risada ao ouvir o segundo conselho dado pelo burro ao boi, sua mulher (que não conhecia a linguagem dos animais) ficou perplexa e curiosa e quis saber por que ele riu. O homem não podia revelar que conhecia a linguagem dos animais. Respondeu à mulher que esse riso envolvia um segredo que lhe era proibido divulgar sob pena de morte. - Quero que me contes esse segredo, mesmo que tenhas que morrer insistiu a mulher. Como o homem amava sua mulher e nada lhe recusava, consentiu em revelar-lhe o segredo e perder a vida. Mandou, pois, vir o cádi e as testemunhas para deixar consignadas oficialmente suas últimas vontades. E mandou vir seus parentes e os de sua mulher para despedir-se deles. Todos aconselharam à mulher desistir de seu propósito e não empurrar para o túmulo seu marido e pai de seus filhos. Ela, porém, teimou, repetindo: “Quero conhecer o segredo, mesmo que ele tenha que morrer”. Toda essa movimentação despertou a atenção do cão e dos animais da capoeira. O cão censurou o galo por estar cantando quando o amo deles todos estava para morrer. O galo perguntou: “E por que nosso amo está para morrer?”

O cão contou-lhe a história. Comentou o galo: “Por Alá, nosso amo é muito tolo. Eu tenho cinqüenta esposas. Agrado a uma; desagrado a outra; mas não permito nenhuma rebelião entre elas. E ele tem apenas uma esposa e não consegue controlá-la. O que ele deve fazer é apanhar umas varas verdes nas amoreiras e bater nela até que se arrependa e não mais lhe exija nada.” O homem ouviu o que o galo disse ao cão, pensou e decidiu seguir o conselho do galo.

Cortou umas varas das amoreiras, escondeu-as no quarto do casal e chamou a mulher: “Vem comigo até nossa alcova para que te conte o segredo e me despeça de ti para sempre”. Quando a mulher entrou no quarto, o homem trancou a porta, apanhou as varas e bateu nela até que ficou cega de dor e gritou: “ Arrependo-me.“

E beijou lhe as mãos e os pés. Em seguida, saíram juntos em paz para iniciar uma nova vida. E os parentes e os vizinhos se regozijaram por eles.

AS BOTAS DE ABU-KASSIM ATTANBURI

Contam que vivia certa vez em Bagdá um homem chamado Abu-Kassim At Tanburi, que usava as mesmas botas havia sete anos. Todas as vezes que alguma parte delas se rasgava, ele a remendava, de modo que as botas se tornaram excessivamente pesadas e passaram a ser citadas em provérbio. Um dia, Abu-Kassim foi ao mercado de vidros. Um corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou hoje um negociante de Alepo com um carregamento de frascos dourados que ninguém quer comprar. Compra-o. Eu o revenderei para ti mais tarde, e tu ganharás o dobro de teu investimento”. Abu-Kassim comprou os vidros por sessenta dinares. Foi em seguida ao mercado de perfumes, e outro corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou-nos hoje de Tassibina um negociante com um carregamento de água de rosas da melhor qualidade! O negociante precisa prosseguir logo sua viagem, e podes, por isso, comprar-lhe a mercadoria por um preço muito barato; compra-a. Eu a revenderei para ti dentro em pouco, e tu ganharás o dobro de teu investimento”. Abu-Kassim comprou a água de rosas por sessenta dinares, colocou-a nos frascos dourados e levou-os para casa e os arrumou sobre uma prateleira. Depois, foi aos banhos públicos.

Enquanto se banhava, um de seus amigos o interpelou: “Ó Abu-Kassim, gostaria de ver-te mudar essas botas; elas já estão feias demais, e tu és um homem de posses pela graça de Deus”. “Tens razão”, retrucou Abu-Kassim, “seguirei teu conselho”.

Quando saiu do banho para vestir-se, viu junto de suas botas um par de sandálias novas. Pensou que fosse o seu amigo que lhas havia ofertado; calçou-as e dirigiu-se para casa. Ora, as sandálias novas pertenciam ao cádi, que estava tomando banho naquele mesmo local. Quando saiu, procurou suas sandálias e não as encontrou. “Meus amigos”, perguntou ele,”aquele que levou minhas sandálias não deixou nada no seu , lugar?” Procuraram e só encontraram as botas de Abu-Kassim, que todo mundo reconheceu, pois eram famosas. O cádi mandou os seus homens revistarem a casa de Abu-Kassim. As sandálias estavam, de fato, lá. O cádi ordenou a Abu-Kassim comparecer à sua presença, confiscou-lhe as sandálias e fê-lo flagelar, multar e encarcerar. Abu-Kassim saiu da cadeia cheio de cólera contra suas botas. Levou-as e atirou-as ao rio Tigre. Elas afundaram. Mas um pescador, tendo atirado sua rede à procura de peixes, recolheu as botas. Reconheceu-as e pensou: “Abu-Kassim deve tê-las perdido no Tigre.” Levou-as para a casa de Abu-Kassim; não o encontrou; mas viu uma janela aberta e jogou as botas para dentro da casa. As botas caíram sobre a prateleira onde estavam os frascos com a água de rosas. A prateleira desmontou-se; os vidros caíram no chão e se quebraram; toda a água de rosas se perdeu. Ao voltar, Abu-Kassim compreendeu o que se passara e começou a se lamentar e desesperar: “Ó desgraça! Estas malditas botas me arruinaram!” Então, foi de noite abrir um buraco para enterrá-las e livrar-se delas. Mas os vizinhos, ouvindo o ruído da escavação, pensaram que alguém estivesse procurando demolir a sua casa.

Queixaram-se ao governador, que mandou prender Abu-Kassim e o repreendeu: “Como te permites cavar junto ao muro de teus vizinhos?” Então, aprisionou-o e só o soltou depois de Ihe ser cobrada uma multa. Abu-Kassim saiu da cadeia mais furioso ainda contra as suas botas. Levou-as e atirou-as nas privadas do caravançarai. Mas as botas entupiram os esgotos; as imundícies transbordaram; o povo protestou contra o mau cheiro. Procuraram a causa e acharam as botas; examinaram-nas: eram as botas de Abu-Kassim! Levaram-nas ao governador e relataram-lhe o ocorrido. O Governador mandou vir Abu-Kassim, censurou-o severamente, encarcerou-o e obrigou-o a pagar o conserto dos esgotos e outra soma igual a título de multa. Abu-Kassim saiu da prisão com as botas e, na sua ira, jurou nunca mais se separar delas. Lavou-as e pô-las a secar no terraço de sua casa. Um cão as viu e, tomando-as por uma carniça, pegou-as. Mas enquanto pulava para outro terraço, as botas lhe escaparam e caíram sobre um homem, ferindo-o gravemente.

Examinaram as botas e reconheceram-nas. O caso foi levado ao juiz, que condenou Abu-Kassim a indenizar o homem, de todas as despesas requeridas pelo seu tratamento. Assim, Abu-Kassim gastou o último dinar que possuía. Apanhou então as botas e levou-as ao cádi e disse-Ihe: “Solicito de Vossa Excelência que redija um ato de separação solene entre minhas botas e eu, que proclame que nada mais temos um com o outro, que nenhum de nós é responsável pelo outro e que eu não poderei ser culpado pelo que minhas botas venham a fazer”.E contou ao cádi tudo que lhe sucedera por causa dessas botas.

O cádi soltou boas gargalhadas e deu um presente a Abu-Kassim antes de despedi-lo.
–––––––-
Observação:
Afrit (masc. sing.), afrita (fem. sing.), afarit (plural): seres de outro mundo, ora visíveis ora invisíveis, possuindo em ambos os casos poderes ilimitados que escapam a qualquer lei.
Alá: Deus
Cádi: juiz.
---------
continua…


Fontes:
Domínio Publico
Imagem = Diário da Manhã
Link

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 360)


Uma Trova Nacional

Ó, meu irmão do nordeste,
tua dor compreendo bem!
Mas se a tua terra é agreste,
tua fé vai muito além.
–AYDA BOCHI BRUM/RS–

Uma Trova Potiguar

Qualquer inveja revela
uma doença infinita,
que deixa a maior sequela
nos corações onde habita.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - ATRN-Natal/RN
Tema: VERTENTE - 3º Lugar

Numa montanha de mágoas
há uma vertente escondida
por onde correm as águas
dos prantos da minha vida!
–RENATO ALVES/RJ–

Uma Trova de Ademar

O sal, além de tempero,
junto ao sol, de forma amena,
na praia, com muito esmero,
deixa a mulher mais morena.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Capela do meu sertão,
quanta beleza traduz:
– num pedacinho de chão
um monumento de luz!
ALFREDO DE CASTRO/MG–

Simplesmente Poesia

Munganga do Mulato Maluco.
–MARIVALDO ERNESTO/PB–

"Onde anda você ???"
Perdido na noite alucinante dos espectros.
"E não mais que de repente"
Fugindo da ameaçadora existência,
como quem foge da própria sombra.
Indo ao encontro do nada,
na estrada dos desesperados
quilômetro zero da inércia,
ponto final da ilusão,
dormir com a ingratidão,
"Essa mulher que se arremessa fria"
por pura devoção
numa orgia cataléptica
na noite suja dos malassombrados.

Estrofe do Dia

Quando muito possui é só farinha,
a carteira que mostra é a mão grossa,
quando o êxodo rural tira da roça
no inchaço da rua ele se aninha;
quanta gente reside na rocinha,
quantos pobres desejam sair dela,
e quantos jovens mofando numa cela
por roubarem na rua o próprio pão;
quem escapa da seca do sertão
morre embaixo dos morros da favela.
–EDMILSON FERREIRA/PI–

Soneto do Dia

Reencontro
–LUNA FERNANDES/RJ–

Eu me afastei de mim, de tudo o que eu queria
-as minhas ambições, meus sonhos e ideais...
E sem sentir, decerto eu me afastei demais
desse mundo de paz e amor em que eu vivia.

E arrastado que fui por tantos vendavais,
eu me perdi de mim... E quando enfim, um dia,
eu tentei me encontrar, senti que não podia
pois os rumos de volta eu não sabia mais...

E segui, sendo alguém que seguia, não eu...
Até que um dia achei, entre as rimas, o abrigo
que eu há tanto buscava e tão bem me acolheu...

E aos poucos devolveu-me esse convívio amigo
com tudo o que eu perdera e voltava a ser meu...
E eu me encontrei, então, novamente comigo...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Imagem = http://www.infoescola.com

Júlia Lopes de Almeida (A Arte de Envelhecer)


Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror brilhar por entre as nossas madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro fio de cabelo branco. As dolorosas apreensões desse momento eram-nos só atribuídas a nós, como se não nascêramos senão para a mocidade e o amor.

O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber talvez que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras mais sutis que a do simples medo de ficarmos mais feias, teve sempre para a nossa decepção um sorriso de inclemente ironia...

Poetas e contistas, valham-nos eles, e que Deus lhes prolongue a raça! engrinaldaram de rimas e períodos suaves a dor desse momento sagrado, em que as nossas esperanças fecham as asas, repentinamente murchas, e a luz dos nossos sonhos esmorece...

Mas se eles adivinharam a delicadeza do nosso sentimento, não nos contaram a espécie do seu, ao ver a luz pálida e fina de um fio prateado coleando por entre as ondas negras da cabeleira, ou as pontas castanhas do bigode. Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são para as mulheres os mais terríveis, não os alarmassem a eles, sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem tivessem vagar para perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos ; o homem é também sensível como nós às apreensões que a vista primeiro cabelo branco sugere.

Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço nem mais leve, e entretanto vê-se que mundo de sensações ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas, supúnhamos, mas agora sabemos que são as de toda a gente!

Tenho diante dos olhos uma página de homem — A arte de envelhecer — que se me afigura ter sido escrita diante de um espelho pérfido. Essa página suave e bem feita analisa essa hora delicada e de difícil interpretação, em que há em todos o mesmo estremecimento de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que não voltará jamais — a mocidade.

A mocidade! Aos quarenta anos ainda a sentimos perto, aspiramo-lhes o aroma, como que lhe sentimos o hálito quente; já ela nos deixou, já ela se foi embora, e, todavia recrudesce em nós, mulheres, toda a alacridade vivaz da sua exuberância; há mais calor no nosso peito, mais ardor na nossa paixão, mais firmeza na nossa vontade. É nesse instante de supremo gáudio que um insignificante fio de cabelo branco nos vem lembrar que o bem que gozamos, tão conscientemente como o gozáramos até então com indiferença... Há de acabar!

Supus, não sei por que, à força de ouvir dizer, talvez, que essa hora para os homens chegasse mais tarde. Vejo que não. Sempre é consolador ter bons companheiros na desgraça...

Na arte de envelhecer, tema delicioso e que o autor poderia desenvolver em um volume grosso, há uma pincelada jeitosa e leve na referência à maneira por que sabemos disfarçar os estragos impiedosos do tempo... O que as palavras não dizem, mas a insinuação aponta, é que esse meio é a maquilagem, o artifício, o auxílio das cores sabiamente combinadas, a discrição dos véus e o efeito artístico do penteado... Saber compor a fisionomia, dar-lhe aparência agradável, torná-la bonita quanto possível, é a mais comum das preocupações femininas, para que não a confessemos.

Todavia, há uma revelação a fazer: é que raramente se põe aqui ao serviço desse cuidado o uso das tintas, das pomadas e dos vernizes. A não ser a inglesa, protegida por um clima que lhe aveluda a tez, não conheço mulher que menos recorra aos embustes do toucador que a brasileira. O pó de arroz, contra o qual antigamente alguns pais de família se insurgiam, é o único auxílio de que lançamos mão, mais ainda como um complemento de toilette, que o uso torna indispensável, que mesmo como um elemento de garridice.

O pó de arroz não só atenua o luzidio da pele, afogueada por uma temperatura quase sempre alta, como também suaviza, refresca e aromatiza. Positivamente, ele foi adotado por isto: não só embeleza como sabe bem.

De tal maneira isto é certo, que ninguém o oculta, como a um fator misterioso de formosura, que se quisesse guardar incógnito; ao contrário, damo-lhes caixas vistosas de cristal lapidado onde a luz incide em refrações irisadas. A velhice material, grosseira, ainda não mereceu da maior e melhor parte das mulheres brasileiras o sacrifício inútil da máscara confeccionada em sessões longas, com pincelinhos, camurças, óleos, tintas e esmaltes.

Mas A arte de envelhecer não teve por objetivo a arte de não parecer velho; mas sim de padecer com resignada calma as gradações da mudança. Isso depende, além da vontade, das circunstâncias de cada um...

A felicidade está em envelhecer sem arte, com outras preocupações mais elevadas e menos egoístas... Desde os primeiros anos de escola que os mestres se esforçam por fazer compreender às crianças que a beleza, sendo transitória, menos vale do que a bondade, e que

On ne saít plus que devenir
Lorsque l'on n'a su qu'être belle

O esforço para a perfeição material é sempre improfícuo, e o para o aperfeiçoamento moral sempre bem coroado. A arte de envelhecer é a de exercitar a alma nas doces práticas do benefício e saber derramar em torno a si até à última hora de consciência, a sombra que alivia ou o calor que reanima...

Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).
Imagem = http://www.ciclovittal.com

Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934)


JÚLIA Valentim da Silveira LOPES DE ALMEIDA, nasceu em 24/09/1862 no Rio de Janeiro e morreu em 30/05/1934 na mesma cidade. Filha do Dr. Valentim José da Silveira Lopes, professor e médico, mais tarde Visconde de São Valentim, e de D. Adelina Pereira Lopes. Passou parte da infância em Campinas - SP.

Seu primeiro livro - Traços e Iluminuras - foi publicado aos 24 anos, em Lisboa. Antes disso já publicara artigos na imprensa, tendo sido uma das primeiras mulheres a escrever para jornais, colaborando com a Tribuna Liberal, A Semana, O País, Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, entre outros. Com Felinto de Almeida escreveu, a quatro mãos, o romance A Casa Verde.

Com uma linguagem leve, simples, cativou seu público: escreveu e publicou mais de 40 volumes entre romances, contos, narrativas, literatura infantil, crônicas e artigos. Foi abolicionista e republicana além de mostrar, em suas obras, idéias feministas e ecológicas.

Contista, romancista, cronista, teatróloga. Viveu parte da infância em Campinas (SP). Estreou na imprensa em 1881, quando as mulheres mal iniciavam carreira literária em jornais no Brasil, publicando no semanário A Gazeta de Campinas. Fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A Semana, O País, Tribunal Liberal.

Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance A casa verde. Seus livros retratam costumes da época e expõem idéias favoráveis à República e à Abolição, destacando-se sobretudo pela simplicidade, o que a tornou bem aceita pelo público e pela crítica. Ocupou a cadeira nº 26 da Academia Carioca de Letras.

Com uma linguagem simples, Júlia Lopes Almeida revela em sua obra a atmosfera suave do ambiente tipicamente familiar.

Em seu livro A árvore (1916), defende com rigor o ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Brilhante e sensível, contestava, ainda que de maneira delicada e sutil, a discriminação contra a mulher. No entender de Lúcia Miguel Pereira, a autora deve ser considerada a maior figura entre os romancistas de sua época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de 40 anos, como pelo êxito que conseguiu, com os críticos e com o público. Para Josué Montello, "o que sua voz revela, no plano mesmo da superfície narrativa cheia de ações e peripécias, são os movimentos tornados gestos. Gestos ao mesmo tempo cotidiano e cerimoniais.

Seus filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também se tornaram escritores.

Romances

· A Família Medeiros
· Memórias de Marta
· A Viúva Simões
· A Felência
· Cruel Amor
· A Intrusa
· A Silveirinha
· A casa Verde ( com Felinto de Almeida)
· Pássaro Tonto
· O Funil do Diabo

Novelas e Contos
· Traços e Iluminuras
· Ânsia Eterna
· Era uma Vez...
· A Isca (quatro novelas)
· A Caolha

Teatro
· A Herança (um ato)
· Quem Não Perdoa (três atos)
· Nos Jardins de Saul (um ato)
· Doidos de Amor (um ato)

Diversos
· Livro das Noivas
· Livro das Donas e Donzelas
· Correio da Roça
· Jardim Florido
· Jornadas no Meu País
· Eles e Elas
· Oração a Santa Dorotéia
· Maternidade (obra pacifica)
· Brasil (conferência)

Escolares
· Histórias da Nossa Terra
· Contos Infantis (com Adelina Lopes Vieira)
· A Árvore (com Afonso Lopes de Almeida)

Fonte:
Escola Júlia Lopes de Almeida

domingo, 9 de outubro de 2011

Nemésio Prata Crisóstomo (Trova Ecológica 29)

Maurício Friedrich (Livro de Trovas)


A trova, quando é bem feita,
tem encanto, traz surpresa;
poesia curta, perfeita,
a nos brindar com beleza!

Curitiba, doce encanto
da Terra dos Pinheirais;
é nela que eu vivo e canto
meus amores e meus ais!

De uma única costela,
nosso Deus fez a mulher;
se há criatura mais bela?
-Desdiga-me quem puder!

És, Curitiba, a cidade
do sorriso, encanto e amor,
que nos dás felicidade,
com teu carinho e calor!

Eu trago, junto do peito,
silente, a lembrar, constante,
o teu retrato, que estreito,
feito uma jóia galante.

No adeus da tua partida
meu coração infeliz
ganhou enorme ferida
e, não parou...por um triz!

Nosso amor foi tão ranzinza
que explodiu como um vulcão,
deixando, somente, a cinza
no meu pobre coração.

Num relógio, vendo a hora,
no outono da minha lida,
sinto que não há demora,
no ocaso da minha vida!

Tenho por certo, em verdade,
bem vivo, embora pungente
que a mais pungente saudade...
é aquela de alguém, presente!

Teve um infarto na cama
a noiva que é tão frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola.
------
Fontes:
UBT Nacional
ENNES, Vânia Maria Souza. Paraná em trovas. Curitiba: ABRALI, 2009.

Mauricio Friedrich (1945)


Mauricio Norberto Friedrich, médico e advogado, nasceu no dia 6 de Outubro de 1945, em Porto União, Santa Catarina, sendo o quinto filho de Afonso Luiz Friedrich, empresário do ramo da ourivesaria e de Araceli Rodrigues Friedrich, professora normalista, trovadora e primeira vereadora de Santa Catarina.

É casado com a médica pediatra Neide Terezinha Ceccon Friedrich e pai de Luiz Felipe Ceccon Friedrich.

Em 1972, graduou-se pela Faculdade de Medicina de Campos, RJ e dedicou-se à área de Cardiologia, exercendo, até hoje, suas atividades como autônomo na clinica privada. Trabalhou no instituto de Previdência do Estado(IPE),onde exerceu a Cardiologia e chefiou por 5 anos, a Divisão Hospitalar, quando requereu a sua aposentadoria do Serviço Público.

Atualmente é sócio remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Em 1977, entrou no Corpo Clinico do Hospital Erasto Gaertner (Hospital do Câncer), onde trabalha até hoje, atuando na Unidade de Medicina intensiva, Medicina do Trabalho e chefia o Serviço de Cardiologia.

Em 1987, graduou-se como Bacharel em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e, em 1989, ingressou na Ordem dos Advogados- Seção de Curitiba.

Em atividades extra profissionais, trabalhou como chefe no Grupo Escoteiro Nossa Senhora Medianeira, tendo sido agraciado em 2002 com a medalha Gratidão - grau Bronze, por relevantes serviços prestado à União dos Escoteiros do Brasil.

Recebeu, em 2007, na Câmara Municipal de Curitiba, por indicação do Vereador Angelo Batista, o Prêmio Mérito em Saúde, por 30 anos de relevantes serviços prestados à comunidade.

Nas artes, destaca-se como colecionador por sua grande e rica colação de ovos decorados, com exemplares de vários recantos do mundo e por obras de sua criação.

No campo da cultura, Mauricio é atuante no Movimento Trovadoresco do Paraná, tendo presidido e secretariado a União Brasileira de Trovadores (UBT)- Seção de Curitiba e atualmente é presidente da UBT Estadual do Paraná.

Membro efetivo de:
Academia Paranaense da Poesia,
Centro de Letras do Paraná,
Academia de Cultura de Curitiba e
Sociedade Brasileira de Médicos Escritores- Seçao do Paraná.

Fonte:
UBT Nacional

Teófilo Braga (O Boi Cardil)


Um rei tinha um criado, em quem depositava a maior confiança, porque era o homem que nunca em sua vida tinha dito uma mentira. Recebeu o rei um presente de boi muito formoso, a que chamavam o boi Cardil; o rei tinha-o em tanta estimação que o mandou para uma das suas tapadas acompanhado do criado fiei para tratar dele. Teve uma ocasião uma conversa com um fidalgo, e falou da grande confiança que tinha na fidelidade do seu criado. O fidalgo riu-se:

– Porque te ris? – perguntou o rei.

– É porque ele é como os outros todos, que enganam os amos.

– Este não!

– Pois eu aposto a minha cabeça como ele é capaz de mentir até ao rei.

Ficou apostado. Foi o fidalgo para casa, mas não sabia como fazer cair o criado na esparrela e andava muito triste. Uma filha nova e muito formosa, quando soube a causa da aflição do pai, disse:

– Descanse, meu pai, que eu hei-de fazer com que ele há-de mentir por força ao rei.

O pai deu licença. Ela vestiu-se de veludo carmesim, mangas e saia curta, toda decotada, e cabelos pelos ombros e foi passear para a tapada; até que se encontrou com o rapaz que guardava o boi Cardil. Ela começou logo:

– Há muito tempo que trago uma paixão, e nunca te pude dizer nada.

O rapaz ficou atrapalhado e não queria acreditar naquilo, mas ela tais coisas disse e jeitinhos deu que ele ficou pelo beiço. Quando o rapaz já estava rendido, ela exigiu-lhe que, em paga do seu amor, matasse o boi Cardil. Ele assim fez e deu-se por bem pago todo o santíssimo dia.

A filha do fidalgo foi-se embora, e contou ao pai como o rapaz tinha matado o boi Cardil; o fidalgo foi contá-lo ao rei, fiado em que o rapaz havia de explicar a morte do boi com alguma mentira. O rei ficou furioso quando soube que o criado lhe tinha matado o boi Cardil, em que punha tanta estimação. Mandou chamar o criado.

Veio o criado, e o rei fingiu que nada sabia; perguntou-lhe

– Então como vai o boi?

O criado julgou ver ali o fim da sua vida e disse:

Senhor! pernas alvas
E corpo gentil,
Matar me fizeram
Nosso boi Cardil.

O rei mandou que se explicasse melhor; o moço contou tudo. O rei ficou satisfeito por ganhar a aposta, e disse para o fidalgo:

– Não te mando cortar a cabeça como tinhas apostado, porque te basta a desonra de tua filha. E a ele não o castigo porque a sua fidelidade é maior do que o meu desgosto.

Fonte:
UNAMA - Universidade da Amazonia
Imagem = Autor desconhecido

Daladier Carlos (O Que Queremos, poetas!)


Se o que nós poetas fazemos
Não serve para nada,
O que estamos querendo afinal?
Há sentido em assistir de algum lugar,
Quem sabe do fundo da alma,
Aos nossos vizinhos,
Nossos amigos,
Nossos patrões,
Nossos empregados,
Nossos homens e mulheres,
Nossos políticos,
Nossos juízes,
Nossos empresários,
Excluídos os demais,
Ora, são eles:
Os desvalidos,
Os menores abandonados,
Os viciados de toda ordem,
Os moribundos nos hospitais,
Enfim, os que acabam na sarjeta;
Bem, excluídos todos estes,
Há sentido em assistir aqueles outros,
Às carreiras atrás dos dinheiros,
Dos sinais discretos dos bons negócios,
Do marketing coletivo que divide corações?
Nestas circunstâncias, penso que não sou poeta,
Mas talvez um filósofo errante, de cetro e capuz,
Caminhando num deserto onde não há voz,
Exceto a visão do vale dos ossos secos.
Por isso, Senhor, tenha misericórdia de nós, os poetas,
Porém, não julgues com rigor os que somente ouviram
E sonharam com algum prêmio além da tua graça!
----
Fonte:
Poesia enviada pelo autor

As Mil e Uma Noites (Parte 1)


O REI CHAHRIAR E SEU IRMÃO O REI CHAHZAMAN

Conta-se - mas só Alá sabe tudo - que havia nas dobras do tempo e dos séculos um rei da dinastia dos Sassan que reinava nas ilhas da Índia e da China. E tinha dois filhos: Chahriar e Chahzaman. Ambos eram governantes justos, e seus povos amavam-nos.

Certo dia, Chahriar sentiu irresistível saudade do irmão e enviou seu vizir para convidá-lo.

Chahzaman respondeu: "Ouço e obedeço”.

Fez os preparativos necessários, encarregou o vizir de governar na sua ausência e partiu. No meio do caminho, lembrou-se de que havia esquecido um documento que queria mostrar ao irmão e voltou para apanhá-lo. Ao chegar ao palácio, encontrou a mulher deitada no seu leito imperial com um escravo negro.

Pensou: "Se tais coisas acontecem quando ainda não saí da cidade, qual não será a conduta desta devassa se demorar-me muito tempo no reino de meu irmão?" Sacou da espada, cortou as duas cabeças e retomou viagem.

Mas uma grande tristeza apoderou-se dele. Emagreceu, empalideceu.

Ao vê-lo assim, o irmão preocupou-se e indagou-lhe sobre as causas de sua depressão. Ele não quis contar. Para distraí-lo e diverti-lo, Chahriar organizou uma excursão de caça e um safári, em sua honra. Assim mesmo, no último momento, desculpou-se, e seu irmão saiu sozinho com os convidados.

No palácio do rei, havia janelas que davam para o jardim. O rei Chahzaman olhou através de uma delas e viu vinte escravas saírem do palácio acompanhadas por vinte escravos e dirigirem-se para um açude no meio do jardim. E ficou espantado ao reconhecer no meio do grupo a própria esposa do irmão, a qual, num determinado momento, chamou a si um negro gigante e entregou-se a ele na presença de todos, dando assim sinal para que escravos e escravas se juntassem e imitassem a rainha.

Observando tudo isso, Chahzaman pensou: "Por Alá, minha desgraça é menos pesada que a de meu irmão”.

E, instantaneamente, a alegria voltou-lhe ao coração e as cores às faces pálidas.

Quando Chahriar voltou, alegrou-o ver o irmão recuperado e quis saber a causa de mudança tão repentina. "Posso contar-te a causa de minha depressão, não de meu restabelecimento”, disse Chahzaman. E contou-Ihe o que acontecera entre ele e sua mulher. Mas o irmão queria saber também o segredo de seu restabelecimento e insistiu. Chahzaman acabou por lhe contar o que observara da janela do palácio. - Primeiro, gostaria de ver tudo isso com os próprios olhos, disse Chahriar.

-É fácil, replicou o irmão. Proclama que estás viajando para um país longínquo, sai publicamente da cidade e a ela volta em segredo, e poderás assistir a tudo da janela como fiz.

Imediatamente, o rei encarregou um pregoeiro de anunciar a sua ida numa viagem demorada. Os soldados acompanharam-no e instalaram um campo fora da cidade. O rei entrou em sua tenda e ordenou aos criados que não deixassem entrar pessoa alguma. Depois, disfarçou-se em mercador e, voltando
secretamente ao palácio, pôs-se à janela indicada. Menos de uma hora depois, viu vinte escravas e vinte escravos rodearem a rainha, viu o negro gigante e tudo o que seu irmão lhe descrevera.

O rei quase perdeu a razão e disse ao irmão: "Vamos procurar outro destino pelos caminhos de Alá, pois só teremos direito a voltar a nossos tronos se localizarmos homens mais desgraçados que nós."

Saíram do palácio e viajaram dias e noites até que chegaram a um prado à beira-mar. Naquele prado havia um córrego de água fresca. Os dois irmãos sentaram-se debaixo de uma árvore para beber e descansar. Logo, viram o mar agitar-se e dele sair uma coluna de fumaça negra, e a fumaça transformar-se num gênio de enorme estatura, carregando um cofre. Aproximou-se da árvore, sentou-se e abriu o cofre, e os dois irmãos viram nele uma mulher de grande beleza que lembrava as palavras do poeta:

“Apareceu na noite e transformou-a em dia”.

E os viajantes se orientaram pela sua luz. Seus olhos eclipsam os sóis e as luas.
As criaturas dançam de alegria quando ela chega. E a natureza chove lágrimas quando ela se vai.”

O gênio tirou a mulher do cofre e disse-lhe: "Vou dormir um pouco”. E, apoiando a cabeça nos joelhos dela, fechou os olhos e dormiu. Ao ver os dois reis, a mulher acenou-Ihes para se aproximarem. Mas eles explicaram por sinais que tinham medo do gênio.

"Não tenhais medo”, replicou. "Ele nunca acorda antes da hora habitual. Dispondes de muito tempo”.

E como eles continuaram a hesitar, tirou a cabeça do gênio de cima dos joelhos, depositou-a sobre uma pedra e disse aos reis: "Se não vos aproximardes e me furardes, acordarei o gênio que vos submeterá à mais horrível das mortes."

Então eles fizeram o que ela queria. E ela mostrou-lhes um pequeno saco cheio de anéis: - Sabeis o que são estes anéis? Perguntou. São os anéis de 60 homens que copularam comigo sob os comos deste cretino Afrit. Agora, dai-me vossos anéis para que os junte à minha coleção. Acrescentou:

“Este Afrit apaixonou-se por mim, raptou-me na noite de meu casamento e me encarcerou neste cofre, sendo mortalmente ciumento. Mas ele não sabe que seja o que for que uma mulher deseja, nada a impedirá de consegui-lo”.

Disse o poeta:
“Não confies nas mulheres
E não dês fé às suas juras.
Pois seus humores dependem de seus ovários.
Exibem amor fingido
E agem com perfídia.
Que a história de José te ponha de pré-aviso.
Não vês que o demônio expulsou
Adão do paraíso
Por causa de uma delas?”


Os irmãos olharam um para o outro e disseram: "Se a este gênio acontecem coisas assim apesar de sua força e vigilância, podemos sentir-nos consolados”.

E regressaram a seus palácios. Chahriar mandou cortar a cabeça de sua esposa e dos quarenta escravos e escravas. E a fim de prevenir qualquer futura traição, decidiu casar-se cada noite com uma nova donzela e mandar matá-la na aurora. Em três anos, centenas de moças foram assim sacrificadas. A tristeza e o horror encheram o reino. As famílias fugiam para salvar as filhas. Até que, um dia, o vizir, encarregado de conseguir uma nova donzela procurou e
nada encontrou. Voltou para casa abatido e receoso do que o rei faria com ele.

Ora, este vizir tinha ele mesmo duas filhas que superavam todas as demais moças em beleza, charme, finura, educação e inteligência. A mais velha chamava-se Sheherazade, e a mais nova Duniazad. Sheherazade havia lido inúmeros livros e conhecia a história dos povos, reis, poetas dos tempos antigos e modernos. Era eloqüente, e sua voz tinha um timbre melodioso muito agradável.

Vendo o pai assim infeliz, perguntou-lhe qual era a causa de sua infelicidade. Contou-lhe. Então disse Sheherazade:

"Por Alá pai, deve casar-me com este rei. Não importa que morra ou sobreviva, saberei livrar as filhas dos muçulmanos desta calamidade”.

O vizir atendeu à vontade da filha, e levou-a ao rei Chahriar. Entretanto, Sheherazade dera as seguintes instruções à irmã: "Quando estiver com o rei, mandarei chamar-te. Assim que o rei acabar seu ato comigo, dize: Conta-nos, querida irmã, uma daquelas histórias maravilhosas que fazem o tempo passar de maneira tão deliciosa.' Então, contarei minhas histórias, e quiçá resgatarei assim as filhas dos muçulmanos."

Quando o rei se aprontava para deitar com Sheherazade, começou ela a chorar.

- Que tens? Perguntou o rei.

- Ó meu soberano, tenho uma jovem irmã de quem gosto muito e queria despedir-me dela antes de morrer. O rei mandou vir Duniazad. Duniazad chegou e jogou-se nos braços da irmã; depois, ficou encolhida ao pé da cama até que o rei acabasse de arrebatar a virgindade de Sheherazade.

Depois, Duniazad disse à irmã: "Alá te acompanhe, ó querida irmã. Por que não nos contas uma de tuas maravilhosas histórias para que a noite passe mais agradavelmente?”

- Fá-lo-ei com prazer se meu soberano permitir.

- Sim, conta-nos uma de tuas histórias, disse o rei a Sheherazade, esperando suavizar assim sua habitual insônia.

E Sheherazade pôs-se a falar…


O MERCADOR E O GÊNIO

Conta-se, ó afortunado rei, que viveu noutro tempo um mercador que possuía grandes riquezas e negócios em diversos países. Um dia, montou seu melhor cavalo e dirigiu-se a um desses países. No caminho, sentou-se sob uma árvore para descansar e alimentar-se. Ao comer tâmaras, lançava ao longe os caroços. De súbito, apareceu um enorme Afrit que se aproximou dele, brandindo uma espada e gritando:

"Levanta-te que te mato como mataste meu filho!"

Perguntou o mercador: "Quando e como matei teu filho?"

Respondeu o Afrit: "Quando atiraste os caroços, um deles atingiu meu filho no peito, e ele morreu na hora”.

Vendo que não tinha outro recurso, o mercador disse ao Afrit: "Fica sabendo, ó grande Afrit, que sou um crente que nunca falto à minha palavra. Possuo riquezas e filhos e uma esposa e inúmeros depósitos a mim confiados. Concede-me, pois, um prazo para que me despeça de minha família e distribua a cada um o que lhe é devido. Prometo voltar aqui no primeiro dia do ano, e tu disporás de mim como quiseres”.

O gênio confiou no mercador e deixou-o partir. Em casa, ele pôs em ordem suas obrigações, distribuiu suas riquezas e revelou a parentes e amigos a triste sorte que o esperava. Todos choraram, mas nada podiam fazer. No primeiro dia do ano, voltou ao lugar do encontro como prometera. Sentou-se a chorar sobre sua sorte quando apareceu um xeque venerável conduzindo uma gazela presa.

"Por que estás sozinho neste lugar assombrado pelos gênios?" Perguntou ao mercador. "E por que estás chorando?"

O mercador contou-lhe a história.

- Por Alá, retrucou o velho, teu respeito pela palavra dada é coisa rara, e tua história é tão prodigiosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, seria matéria de meditação para os que refletem.

Sentou-se, dizendo que ficaria lá até ver o que aconteceria. De repente, apareceu um segundo xeque, conduzindo cães lebréus pretos. Saudou o mercador e o primeiro xeque e perguntou-lhes: "Que fazeis neste lugar assombrado pelos gênios?"

Contaram-Ihe a história, e ele também disse que esperaria lá para ver como acabaria essa curiosa aventura. Logo em seguida chegou um terceiro xeque conduzindo uma mula. Saudou a todos e quis saber o que estavam fazendo naquela terra perigosa. Repetiram toda a história, e ele também se sentou para aguardar os acontecimentos.

Momentos depois se levantou um turbilhão de poeira, e o gênio apareceu com um gládio afiado na mão e os olhos soltando chispas. Agarrando o comerciante, disse-lhe: "Vem que te mato como mataste meu filho, que era o sopro de minha vida e o fogo de meu coração”.

O primeiro xeque, mestre da gazela, criou coragem, beijou a mão do gênio e disse-lhe: "Ó grande gênio, o mais elevado entre os reis dos gênios, se eu te contar a história desta gazela e ficares maravilhado, conceder-me-ás a graça de um terço do sangue deste mercador?"

O gênio concordou, e o xeque começou sua história:

“Ó grande Afrit, esta gazela era a filha de meu tio. Casei-me com ela quando éramos bem jovens e vivemos juntos trinta anos. Mas Alá não nos concedeu filho algum. Por isso tomei uma concubina que, com a graça de Alá, me deu um filho varão lindo como a lua nascente. Quando atingiu quinze anos, tive que viajar a negócios”.

Ora, a filha de meu tio fora iniciada na feitiçaria desde a infância. Aproveitando minha ausência, transformou meu filho num bezerro e a mãe dele numa vaca, e juntou-os a nosso rebanho. Ao voltar, perguntei por eles.

Minha esposa respondeu: “ A mulher morreu, e teu filho fugiu para não sei onde.”

"Um ano inteiro fiquei chorando, o coração reduzido a pedaços. No Dia do Sacrifício, pedi a meu pastor que me trouxesse uma vaca gorda. Trouxe-me a vaca que havia sido minha concubina. Mal me aproximei dela para matá-la, pôs-se a gemer e chorar. Parei, e pedi ao pastor que a degolasse. Cumpriu a ordem, mas não encontramos na vaca nem carne nem gordura, mas apenas pele e ossos.

"Tive remorsos, inúteis como a maioria dos remorsos, e pedi ao pastor trazer-me um bezerro bem gordo. Trouxe-me meu próprio filho enfeitiçado. Quando me viu, rebentou a corda e jogou-se a meus pés com gemidos e lágrimas. Tive pena dele e ordenei que fosse substituído. Mas a malvada filha de meu tio disse:

‘Devemos sacrificar é este bezerro mesmo. Está gordo como convém.' Obedecendo a não sei que instinto ofereci, antes, o bezerro de presente a meu pastor.

"No dia seguinte, o pastor procurou-me e disse: Vou revelar-te um segredo que te alegrará e me valerá sem dúvida uma recompensa.' `O que é?' perguntei.

Respondeu `Minha filha é feiticeira. Ontem, quando me deste o bezerro, levei-o para a casa de minha filha. Mal o viu, cobriu o rosto com o véu e censurou-me:

`Pai, agora estás me expondo aos olhos de homens estranhos?'

Perguntei: `Onde vês homens estranhos?'

Respondeu: `Este bezerro é o filho de nosso amo, mas está encantado. E foi a mulher de nosso amo que o encantou, ele e a sua mãe!'

"Fui imediatamente com o pastor à casa de sua filha, e perguntei-lhe: `É verdade o que contaste a teu pai acerca desse bezerro?'

- Sim, respondeu.

- Ó gentil e compassiva adolescente, se libertares meu filho, dar-te-ei todo meu gado e todas as propriedades que teu pai administra.

"Sorriu e disse: `Ó amo generoso, aceitarei estas riquezas com duas condições: que me cases com teu filho e que me permitas enfeitiçar tua mulher. Sem isso, não tenho a certeza de poder prevalecer contra as suas perfídias.

"- Seja, respondi.

"Apanhou então uma bacia de cobre encheu-a de água e pronunciou conjurações mágicas. Em seguida, aspergiu o bezerro com a água, dizendo-lhe: ‘

Se Alá te criou bezerro, permanece bezerro; mas se estás enfeitiçado, volta a tua forma verídica, com a permissão de Alá.'

Após tremer e agitar-se, o bezerro recuperou a forma humana. Era meu filho! Joguei-me em seus braços e cobri-o de beijos. Depois casei-o com a filha do pastor, e ela encantou a minha esposa e metamorfoseou-a nesta gazela."

Bem espantosa, a tua história, bradou o Afrit. Concedo-te o terço do sangue deste malvado.

O segundo xeque adiantou-se então e disse:

"Ó rei dos gênios, se te contar a história destes dois cachorros e a achares tão espantosa quanto a da gazela, conceder-me-ás um terço do sangue deste homem?"

- Vai falando, disse o Afrit.

"Saberás, ó senhor dos reis dos gênios", disse o segundo xeque, que estes dois cachorros são irmãos meus. Quando nosso pai morreu, deixou-nos três mil dinares. Com a minha parte, abri uma loja e comecei a comprar e vender. "Meus irmãos preferiram a aventura e viajaram com as caravanas por um ano inteiro. Quando voltaram, tinham desperdiçado todo o seu capital. Estavam pobres e tinham aspecto lamentável”.

Tive pena deles. Mandei-os ao hammam, comprei-lhes roupas finas e, pondo meu capital de lado, dividi com eles, em igualdade, todo o lucro daquele ano. E moramos juntos por muito tempo. Mas de novo queriam partir e insistiram para que fosse com eles. Embora os resultados de sua primeira viagem não fossem alentadores, consenti em acompanhá-los com uma condição: dividir o dinheiro que tínhamos - 6 mil dinares -- em duas partes iguais; deixar a metade escondida para nos amparar em caso de necessidade e partilhar a outra metade entre nós três. Concordaram e agradeceram-me.

Com os 3 mil dinares, compramos as mercadorias mais indicadas, alugamos um navio, e embarcamos. Após viajarmos um mês, chegamos a uma cidade portuária onde vendemos nossas mercadorias com um lucro de dez por um. Quando voltamos ao porto para embarcar, encontramos lá uma mulher mal vestida que se aproximou de mim e beijou-me a mão, dizendo:

‘ Mestre, aceitas ajudar-me e me salvar? Por favor, casa-te comigo e me leva, e tudo farei para agradar-te.' Aceitei. Levei-a para o navio, vesti-a com esmero e partimos.

"Pouco a pouco fui tomado de um grande amor por ela. Não conseguia separar-me dela nem de dia nem de noite, e preferia sua companhia à de meus irmãos. Por sua vez, revelou-se uma mulher linda, inteligente, devotada e de nobre caráter”.

Infelizmente, meus irmãos me invejavam cada dia mais e, uma noite, quando estava deitado com minha mulher, insinuaram-se em nosso aposento, apanharam-nos e jogaram-nos em alto mar. Minha mulher despertou nas águas e, de repente, transformou-se numa Afrita e carregou-me nos ombros até uma ilha. Depois, desapareceu e só voltou na manhã seguinte, ainda mais bela, e disse-me:

‘ Não me reconheces? Sou tua esposa. Como vês, sou uma Afrita. Amei-te desde o primeiro instante em que te vi. Tiveste pena de mim e te casaste comigo. Agora salvei-te da morte com a permissão de Alá. Estamos quites. Quanto a teus irmãos, sinto-me cheia de ódio contra eles e vou afundar o navio em que estão e matá-los.'

Muito me custou convencê-la a não os matar. Carregou-me então nos ombros, ergueu-se no espaço e depositou-me em minha casa. Retirei os 3 mil dinares de seu esconderijo, reabri minha loja e comprei novas mercadorias.

"Quando voltei para casa, achei estes dois cachorros presos num canto. Ao me verem levantaram-se e começaram a chorar e agarrar-se às minhas vestes. `

São teus irmãos,' disse minha mulher. `Pedi à minha prima, que é mais versada em encantamentos do que eu, para dar-lhes esta forma, da qual só poderão libertar-se daqui a dez anos.'

"É por isto, ó poderoso gênio, que me encontro neste lugar. Estou a caminho da morada daquela prima de minha mulher a quem vou pedir que restitua a meus irmãos sua forma anterior, pois os dez anos já decorreram.”

Exclamou o Afrit: "Tua história também é surpreendente. De coração, concedo-te mais um terço do sangue deste maldito. Mas vou tirar-lhe o terço que me é ainda devido”.

O terceiro xeque, o da mula, interveio então dizendo: "Ó grande Afrit, se te contar uma história ainda mais maravilhosa que essas duas, conceder-me-ás o último terço do sangue deste homem?"

O Afrit, que gostava muito de histórias raras, acedeu, dizendo: "Qual é a tua história?"

O terceiro xeque falou: “Ó sultão e chefe de todos os gênios, esta mula que vês aí é minha esposa. Uma vez, tive que fazer uma longa viagem, e quando voltei, certa noite, achei-a deitada com um escravo negro na minha própria cama”.

Estavam conversando, rindo, beijando-se e excitando-se mutuamente com pequenos jogos. Assim que me viu, lançou sobre mim uma água mágica que me transformou em cão e me expulsou de casa. Saí a errar pela cidade. Um açougueiro apanhou-me e levou-me para sua família.

"Assim que a sua filha me viu, cobriu a face com o véu e censurou o pai por expô-la a um homem estranho. `Onde vês homens?' perguntou o pai.

Ela respondeu: `Este cão é um homem. Uma mulher o enfeitiçou, e eu sou capaz de libertá-lo.' “

- Liberta-o, então, minha filha, pelo amor de Alá.

"Ela pegou uma vasilha de água, pronunciou certas palavras mágicas sobre a água, aspergiu-me com algumas gotas e disse: `Sai desta forma e retoma tua forma primeira.'

"Logo, voltei a ser homem e, beijando a mão da rapariga, disse-lhe que desejava muito que minha mulher fosse enfeitiçada do modo como me enfeitiçara. "

` É fácil,' disse a filha do açougueiro. E deu-me num vidro um pouco da água que usara para me salvar, dizendo: `Se encontrares tua mulher adormecida, borrifa-a com esta água, e ela tomará a aparência que tu indicares.'

"Fui para casa, encontrei minha mulher dormindo, aspergi-a com a água mágica, dizendo-lhe: `Sai dessa forma e toma a forma de uma mula.'

Num instante, transformou-se numa mula, como podes verificar, ó sultão e chefe dos reis dos gênios."

O Afrit virou-se para a mula e perguntou: "É verdade?" Ela abanou a cabeça como para responder: "Sim, é verdade”.

Ao escutar essa história, na qual o mal era punido, o gênio estremeceu de emoção e prazer e concedeu ao xeque a graça do último terço do sangue do mercador. O mercador, muito feliz, agradeceu aos três xeques e ao Afrit, e os xeques o felicitaram por sua salvação. E cada um voltou para sua terra.
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Continua: O Conselheiro – O Homem e sua Mulher/ O Galo e as 50 Galinhas – As Botas de Abu-Kassim Attanburi – O Carregador e as Jovens Mulheres
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Fontes:
Domínio Público
Imagem = Diario da Manhã

Rosangela Trajano (Poesias para Crianças)


A BICICLETA VELHA

Era uma velha bicicleta
Com placa de venda
Sua dona muito esperta
Queria uma boa renda.

Não tinha freios
Só um acento macio
Um pneu cheio
O outro vazio.

Vivia na garagem
Há muito abandonada
Atrapalhando a passagem
Não servia para nada.

Mas era lembrança do bisavô
Nesse caso a velha bicicleta
Foi colocada como escultura
No meio da sala de leitura.

A BONECA DE ALICE

Alice ganhou uma boneca
Era uma boneca bonita
Logo largou a peteca
Deu-lhe o nome de Anita.

Alice ganhou uma boneca
De laço e vestido vermelho
Presente da sua tia Rebeca
De fome matou seu coelho.

Alice só queria saber
Da sua boneca Anita
Nem pra mim, nem pra você
Ela desenharia uma fita

A CHUVA

Gosto de olhar a chuva
A escorregar pela rua
Na esquina fazer uma curva
Esconder o sol da lua.

Pingos de chuva caem
Pelas janelas de vidro
Curioso dou espiadas
Nas pessoas agasalhadas.

A chuva deixa mais verde
As árvores dos canteiros
Os açudes sem sede
Sorrisos nos lírios dos jardineiros.

A COELHINHA

À Branquinha, com carinho.

É branquinha
É peluda
É pequenina
É sortuda.

Ganhou uma cenoura
Ganhou uma casinha
Ganhou uma vassoura
Ganhou uma mesinha.

A coelhinha
É uma gracinha
Tolinha, tolinha
Fica vermelhinha!

A FLORZINHA

Vive quietinha
Num vaso pequeno
É bem bonitinha
Dorme no sereno.

Suas folhas bailam
À janelinha da sala
Suas pétalas exalam
Cheiro de bala.

Uma florzinha
Me cativou
Mora sozinha
E me dá seu amor.

BARQUINHOS DE PAPEL

Sou um nobre capitão
De um barquinho de papel
Que navega nas minhas mãos
Distante da terra e do céu.

Nesse primeiro cruzeiro
Levo papai e mamãe
Minha tripulação é pequena
Querem levar o guarda-roupa inteiro.

Serei um grande marinheiro
Quando mais tarde crescer
Meu barquinho de papel
No meu coração vai viver.

BOLINHAS DE SABÃO

Vejo minhas bolhinhas subindo
São bolhinhas de sabão
Que vou construindo
Canudo na boca e copo nas mãos.

Mamãe me dá sabão
Fico encantado e contente
Posso gastar de montão
Oba! Bolhinhas pra toda gente.

É fascinante brincar
Com bolhinhas de sabão
Elas são incolor
Dentro delas há amor.

CARROSSEL

Gosto de brincar no carrossel
Com botas e chapéu de couro
Só me falta o troféu
Para desfilar com o tesouro.

São cavalos de madeira
Em parques de diversões
Divertidas brincadeiras
Desperta em mim emoções.

Um dia, quando crescer
Quero um cavalo de verdade
Embora não queira esquecer
Meu carrossel na saudade.

CASTELOS DE AREIA

Sentado à beira-mar
Brinco com a areia clara
Não consigo encher a minha pá
Só quando o vento abrandar.

As ondas se vão
O vento cambaleia
Assim construo castelos de areia
O reino da minha imaginação.

Meus castelos de areia
Abrigam pessoas reais
De bondade verdadeira
Lá, todas são iguais.

EU QUERO UM GATO

Eu quero um gato
Para pegar um rato
Que roeu meu sapato.

Eu quero um gato
Para pegar um rato
Que se acha um pato.

Eu preciso de um gato
Que com um simples salto
Pegue este rato.

HORA DO BANHO

Embaixo do chuveiro
Com sabonete nas mãos
Esfrego o corpo inteiro
Faço festa no banheiro.

Na hora do banho
Jamais faço cara feia
Criança do meu tamanho
Já sabe o que é sujeira.

Seja a água fria ou quente
Uso xampu em meus cabelos
Depois passo o pente
Secar e prendê-los.

OS ANIMAIS

Gato, cachorro, macaco
Os animais precisam de amor
Vaca, elefante, leão
Coloque o reino animal em seu coração.

Beija-flores, bem-te-vis e andorinhas
Não os prenda em gaiolinhas
Precisam de liberdade para viver
São frágeis criaturinhas.

As tartarugas, as baleias,
Os tubarões e os peixinhos
Pedem respeito e carinho
Através do canto das sereias.
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Fontes:
Portal Sao Francisco
Imagem = http//versosdecrianca.blogspot.com

Rosângela Trajano (1971) Autobiografia


Nasci aos 18 de junho de 1971, na cidade de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, no Hospital Luis Soares. Fui uma criança pobre e com pouquíssimos brinquedos, embora feliz. Minha vida estudantil iniciou-se na Escola Municipal Chico Santeiro. Fui uma menina mimada por papai e mamãe. Até que um dia meu pai não quis ser mais meu pai, partiu. Ficamos nós cinco: eu, mamãe e meus três irmãozinhos sozinhos nesse Universo enorme. Mamãe foi uma mulher guerreira, venceu todos os obstáculos à sua frente. Ela foi mãe e pai aos mesmo tempo; esteve presente nos momentos de solidão e de multidão; certo dia, ela nos contou que voltaríamos a ter água gelada, televisão e que não seria difícil comer um pão. Eu adorava os dias de chuva e ficava a correr com as panelas e vasilhas pra baixo e pra cima atrás dos pingos d'água que caíam das telhas dentro da nossa casa. Ah! Mamãe, você foi tão grande! Você nos contou, ainda, que seríamos felizes. Uma fada madrinha um dia traria a nossa felicidade, quando esta fada foi, é, e sempre será VOCÊ, MAMÃE!

O bairro onde nasci e moro até hoje é pequeno, chama-se Bairro Nordeste. Aqui, é o lugar onde encontro inspiração para escrever minhas poesias, histórias, contos, cartas, crônicas e romances. Na nossa casa tinha um cajueiro que nós adorávamos, mas um dia o cupim derrubou a nossa árvore. Dias depois, acordamos com o telhado da casa indo abaixo, o cupim estava destruindo tudo. Os cupins viviam a nos perseguir, eram os nossos piores inimigos depois da fome. Porém, os nossos vizinhos sempre nos ajudaram. Naquela noite cada um dormiu na casa de um parente próximo.

Perto da minha casa tem um grande manguezal. Foi de lá que tiramos a nossa alimentação para sobrevivermos quando papai nos abandonou e o dinheiro da mamãe acabou. Meu irmão, Robério, que hoje, graças a Deus, veste-se de paletó e gravata, voltava da maré todo sujo de lama e com um balde cheio de caranguejos para serem vendidos. Roberto e Rogério vendiam os caranguejos para comprar farinha, café, feijão etc. E mamãe, mesmo com problemas na coluna fazia de tudo um pouco pela nossa sobrevivência: costurava, vendia dindin, cocada, tapioca, etc. O sofrimento era grande, mas nós nunca deixamos de acreditar no futuro. Íamos à escola todos os dias.

Hoje, mais de vinte anos, olhamos para o passado e sorrimos dele. Somos vitoriosos. Nossa casa continua simples, mas já não falta comida. Todos conquistaram seus sonhos. Mamãe é feliz, para mim, isso é muito importante! Ela merece esse sorriso nos lábios até os últimos dias da sua vida.

Eu sou uma curiosa, metida a besta e inteligente. Fiz alguns vestibulares, fui reprovada em alguns e aprovada em outros. Devia ter concluído o curso de Sistemas de Informação, mas abandonei. Larguei esse curso para fazer Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Publiquei meu primeiro livro intitulado Carrossel de Poesias (Poesias para crianças), no dia 01 de dezembro de 1999. Numa noite belíssima, na Capitania das Artes, rodeada de crianças, amigos e familiares. Um coquetel maravilhoso, meus olhos brilhavam mais que todas as estrelas no céu e as pernas tremiam. Esse livro foi um presente às crianças do meu Brasil, porque foi através delas que encontrei a esperança para lutar pela realização dos meus sonhos.

Meu segundo livro intitulado Giges e o anel, também foi publicado no mês de dezembro no ano de 2003, na Bueno Livraria, localizada no Natal Shopping, em Natal-RN.

De lá para cá não parei mais de publicar livros. Acho que já são uns trinta e poucos.

Escrevo para alguns periódicos locais, sou licenciada em filosofia, mestra em literatura comparada, professora de filosofia, inglês e produção textual além de pesquisadora na área de filosofia para crianças e contação de histórias. Gosto de programação de computadores e matemática. Além do mais adoro viver!

Não bebo e não fumo. Adoro nadar! Curto caminhar, também. Algumas pessoas me perguntam porque não me casei ainda, digo-lhes que sou casada com os meus poemas e tenho um grande amor na minha vida: o céu com as suas estrelas.

Quando quero um refúgio vou à praia de Jacumã, lugar de uma rara tranquilidade. Eis-me, um ser humano como outro qualquer, entre qualidades e defeitos, sonhos e realidade.

Fonte:

Raul Pompéia (Amor de Inverno)


Ora, para que havia de dar-me a mania!... Lembrei-me de amar uma velha!...

A gente chega a saciar-se de tudo, até do vinho quente da juventude. Em amor, uma das cousas apreciadas é o amor que custa; pelo menos, o amor que precisa que o busquemos para vir: mil vezes mais apreciado que o amor que vem ao nosso encontro. Maomé, com certeza, não se arrependeu de ir até a montanha. Ora, a juventude é assim. Tem o defeito, em amor, de vir ao nosso encontro. Há o instinto, nos seios rijos da virgindade, que os impele a esmagar-se, amassar-se, emolir-se, de encontro ao peito que se lhes acerca.

A grande idade é já esquiva.

O verão passou. Tem uns dias de sol, como o inverno os tem. Mas, são sugestões tranqüilas da saudade. Os sóis, Os grandes sóis passaram.

Quem sabe? Haverá, talvez, um vivo prazer em ir a gente abrir uma réstea estival de claridade no firmamento nublado desses dias! Espera, S. Medardo, padroeiro dos dias úmidos... guarda o aguaceiro um pouco... que eu vou mandar àquela pobre, de presente uma nesgazinha de bom tempo...

Tomei a sério a minha intenção.

Logo ao terceiro dia, aliás à noite, achei o meu ideal.

Velha, velha, velha, velha...

Imaginem um belo ideal de cabelos brancos, curvo e tremulo, de carnes tenras entre galantina e faisandé.

Dous olhos negros brilhavam como alcaparras em cima daquela iguaria branca.

A minha atenção fervorosa atraiu a dela. Daí a Pouco, seguíamos, trocando olhares. Os dela - de curiosidade, naturalmente.

Mais de perto, com a iluminação pública pude ver-lhe dous cachinhos em espiral gamenha de saca-rolhas, que lhe faziam voltas de S aos lados da fronte.

Com a vista firme, percebi que aqueles caracóis prolongavam-se sutilmente pela velha adentro; enrolavam-se num sorriso que ela tinha nos lábios e iam até à alma, envolvendo-a como a cauda cansada de um velho demônio aposentado.

Abordei-a.

- Não vê que sou respeitável? replicou ela com certa gravidade benevolente.

Respeitável, até veneranda... disse eu comovido, recuando um cumprimento.

E pus-me a caminhar em silêncio ao lado dela (que não se apressou) olhando para a ponta dos meus sapatos que alternadamente eu batia com a ponteira fina da bengala.

Os lampiões iam passando... Embaixo de cada lampião, eu aproveitava o gás, para ver a minha velha. Não estava de má cara.

- Acredita na simpatia? perguntei.

- O que chama simpatia? perguntou-me.

- E a aliança que prende duas pessoas a um simples encontro, sem porquê nem porquê não... Vem do grego syn, com pathos, afeição.

Este grego foi de uma infelicidade a toda a prova; mas, com uma velha, em amor, não há perigo mesmo em falar grego.

Depois, novo silêncio. Os bicos de gás. da calçada vinham de tempos a tempos iluminar o nosso silêncio. Eu estudava de esguelha a minha aventura.

Aventura, vejam lá! Quem me visse ao lado daquele camafeuzinho com quem eu ia, supor-me-ia, entretanto, um numismata a passeio com o seu museu, ou algum jovem fidalgo (permitam) que estivesse a arejar a sua árvore genealógica.

- Então o senhor simpatizou mesmo comigo?

- Sim, respondi-lhe eu, que andava a mil léguas com a imaginação. Sim, minha senhora: do grego syn, com pathos, sentimento.

Ela repetiu a pergunta. Eu respondi-lhe com um sorriso tímido. Daí para diante encaixamos definitivamente um no outro, dous silêncios afetivos do melhor efeito. E fomos.

A minha árvore genealógica, depois de muito tempo, voltou-se para mim e, a meia voz, como se concluísse uma doce frase, cujo princípio lhe ficara no espírito, falou:

- Vou para casa...

Não lhes posso fazer o retrato da fisionomia que, naquele momento, um bico de gás iluminou-me. Era a ternura, a. gratidão, a surpresa, o prazer, e mesmo a lascívia, quem o diria!... Eu senti, oh! vulcões extintos! o corpo inteiro da velha flamejar num incêndio que lhe passava a saia de seda, que me passava a roupa, como um bafejo de fornos, que me bafejava a carne.

Era isso mesmo que me enchia a imaginação havia momentos. Tinha encontrado o sonho. Uma mulher que passava, na sua velhice, esquecida do amor, esquecida do sexo, na idade positiva e anestésica das desilusões. Quando a criatura não é mais que um tubo digestivo por corpo e um terror por alma, o terror da morte que ai vem; quando, ao abandono de cousa imprestável, em que todos nos deixam, soma-se o raivoso egoísmo com que nos agarramos a nós mesmos, esquecidos dos semelhantes, porque a nossa questão não é mais com a vida, que lhes diz respeito, mas apenas com a morte, que só diz respeito a nós; quando a febre religiosa é a única energia moral e o calor cibário o único entusiasmo físico; quando a descrença e o egoísmo multiplicam-se para abrir, em roda de nós, um espaço desesperante de solidão e tristeza... Eu aparecer-lhe, fitá-la, pescá-la no fundo da lagoa frígida dos seus anos; inventar então para mim um amor novo de ressurreição; criar outra vez a mulher e fruir aquela segunda virgindade; cuspir no adjetivo venerando, incendiar de paixão o amianto rebelde dos cabelos brancos; assistir da torre do meu capricho triunfante, a vasta conflagração do país das neves, ver, por um momento, renascerem os enlevos, os êxtases, os delírios mortos surgirem, como fantasmas, dos próprios restos, para saudar ainda uma vez o mundo, num último clamor supremo do que vai perecer em pouco para sempre...

E colher para mim, aquela vasca do último entusiasmo, ouvir nos mais distantes recantos da alma, ouvir e guardar na memória das sensações raras todo aquele coro delicioso dos cisnes em agonia.

Velha, velha, velha, velha...

Ela era feia, pequenina, trêmula, muito branca, muito molezinha, muito crespa de rugas, como a nata de leite soprada, fraca, e de andar vacilante, certo andar balançado de patinha, que mal lembrava uma vivacidade possível dos quadris de outrora.

Num momento, o andar consolidou-se. Ela começou a dar passadas grandes, rijas, nervosas. Tomou-me o pulso. Dir-se-ia levar-me à força para a casa, como um menino fujão. Eu era dela.

Perdeu as considerações. Passou bruscamente a prescindir da minha vontade. Nem mais olhava-me. Levava-me ali como um objeto, quase brutalmente. Havia de ser naquela noite mesmo, na bebedeira do momento. Amanhã tudo estaria perdido. Era preciso não dar tempo à religião de falar; não dar tempo aos cabelos brancos de pensarem em si; não dar tempo ao moço de esfriar a fantasia. Era ali, naquele instante... Tinha muito tempo para se arrepender... depois.

Quando chegamos à casa, depois de andarmos não sei quantas ruas, devia ser tarde. A casa foi uma rótula de venezianas, que eu vi recuar para um buraco negro. Entrei. Faltou-me o pé. O soalho era mais baixo que a rua.

- Não caia! há um degrau, disse-me a velha.

Eu não via mais a velha. Na imperceptível claridade que chegava da rua, entrevia o meu braço, a minha mão, um pouco de outra mão, e depois a escuridão espessa. Parecia que a escuridão puxava-me.

O ar frio encanado denunciou-me um corredor. Deixei-me conduzir pela escuridão no ar frio.

De repente, do fundo de um aposento invisível, alguém tossiu.

Eu estremeci na mão da velha.

- Não faça caso, balbuciou-me ela ao ouvido. É a minha filha... que sofre de asma...

Pouco adiante, uma porta de vidraças vagamente clareada fez-me deter o passo. Um homem escarrou.

- Não faça caso, segredou-me a velha... Meu neto dorme aqui com a mulher...

Adiante ainda rangeu manhosamente o choro de um menino.

- Não faça caso... É o meu bisnetinho...

Outra criança rompeu em choro para acompanhar a primeira.

A velha não me disse se era o tetraneto...

Pois, senhores, fala-se em juventude... primavera... primavera... fala-se em verão... Não acreditem, meus amigos, não acreditem no inverno.

Fontes:
UNAMA - Universidade da Amazônia
Imagem = http://pensamentosrosas.blogspot.com