sexta-feira, 23 de julho de 2021

Sammis Reachers (O meu vizinho)

Ontem o gritei, enquanto eu voltava da mercearia, onde fora comprar um real de pão e um quilo de açúcar Guarani – aquele intermediário entre o União e o Caravelas.

Ele passara por mim há pouco com sua bicicleta de carga e suas roupas indefectivelmente sujas, como de estivador. Eu queria dar-lhe alguns remédios que comprara para um dos gatos da casa, e que agora ficaram sem uso, e poderiam estar fazendo falta para alguém.

Ele é um desses alguéns e conhecedor de muitos outros como ele – um protetor de animais, um zelador da criação numa luta dantesca contra tantos gigantes – da coisificação dos animais ao discurso dos politicamente corretos de sofá & plantão – “Tanta gente precisando de ajuda, e você salvando cães?”.

Ele, que tem emprego fixo, após o expediente engata no segundo batente – coletor de reciclagens, cuja boa parte do lucro, eu o sei, é destinado a alimentar e cuidar de animais sob a guarda dele e de outros. Lida com lixo – o lixo humano que não entende a nobreza de suas ações, e o lixo produzido com tão desembestada fartura pelo bicho homem, a quem até nisso ele ajuda, recambiando os materiais para que a Terra, brevemente poupada, tenha um quilo a mais de fôlego.

É um camarada excepcionalmente fora da curva – ao menos da curva que nossos cansados e míopes olhos suburbanos alcançam. Arredio a festas e maiores confraternizações ou infernizações sociais, diz não pertencer “a nenhum sistema”; acredita na força superior que a tudo gerou e sustém.

Construiu sua grande casa praticamente sozinho, e nela vive sem aporrinhar ninguém, em nenhum dos trezentos e tantos dias do ano. Como acontece aos demais de sua espécie, a incompreensão leva os demais a cognominá-lo de “maluco”. Bem, até eu já carreguei essa bandeira nas costas. Em certos momentos ela vira até menção honrosa, escudo. Mas voltemos ao nosso homem. Ele se incomoda com carros largados em sua porta, ou a venda de drogas perto a seu portão? Sim. E você, não? Tem um pouco menos de medo que o normal dos homens, mas nada que o faça um Superman. A ninguém aborrece, a todos cumprimenta, e vive como pode sua inadequação.

Enquanto conversávamos em meu portão, vizinho ao dele, um casal de também vizinhos passou pela rua e lhe agradeceu – pela ajuda prestada, vim a saber, com um cachorrinho da tal família que havia ferido internamente o ouvido. Ele, com quem as pessoas têm pouca paciência de conversar – o abençoado insiste em não se enquadrar nos padrões, e olha que cada um de nós tem centenas de padrões pré-programados para engarrafar os outros – disse que fazia aquilo por missão, por senso de missão.

O homem, já senhor de seus sessenta e poucos anos, mas com cara de 45, firme calibre, disse não ser digno de agradecimentos. Pois é apenas um ser humano cumprindo seus propósitos de vida. E que o que fazia nada era, e que já fora, ele também, muito ajudado por muitas pessoas. “Dente da engrenagem, elo da corrente de Gaia”, pensei.

Sendo aguardado pela patroa, tive que me despedir. Enquanto trancava o portão, me surpreendi silenciosamente feliz por um homem de exceção como aquele, misantropo que tão bem conhece a miséria humana, mas a peita e contradiz, ter um tão grande e incompreensível carinho por mim. Oxalá eu, outro gauche na vida, como ele, como Drummond, esteja no caminho certo, seja um dos humílimos remadores contra a corrente?

Sérgio é o nome dele. Um dos muitos gonçalenses anônimos que sustentam essa terra de pé – reserva moral, reserva de amor, reserva de proatividade pró-vida – reserva sem reservas. Um dos quais o mundo não é digno, como diz a Bíblia (Hb 11.38) acerca de santos.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A santa “cola”

A turminha do terceiro ano do ginásio entrou assustada na sala. Haveria prova de matemática na primeira aula. O professor distribuiu a folha com as questões. Momentos após flagrou um dos alunos entregando um papelzinho ao colega que estava na carteira ao lado e que parecia muito nervoso. O mestre foi lá, pegou o papel, enfiou no bolso, deu a maior bronca: “Vão os dois para a diretoria. Tudo admito, mas cola não. E logo você, Valtinho, que sempre me pareceu um aluno exemplar. Já para fora os dois. Nota zero”.

Os meninos tentaram explicar, não adiantou, saíram os dois chorando. Só então o professor tirou do bolso a “cola” e leu o que estava escrito. Empalideceu de vergonha. Era só um bilhetinho de encorajamento de colega para colega: “Entregue suas preocupações ao Senhor” (Salmo 55:22). Bem sem graça ao reconhecer seu ato falho, chamou de volta os garotos e mandou que fizessem a prova. Pediu desculpas na frente de todos. A classe aplaudiu. Valtinho, como de costume, ganhou 10; o colega que recebeu o bilhetinho com o salmo ganhou nota 8.

Passaram-se os anos. Já morando em Maringá, fiquei sabendo que Valtinho se tornara pastor. Hoje ele mora no céu e de lá certamente continua recomendando a cada amigo: “Entregue suas preocupações ao Senhor”.

Essa historinha aconteceu há mais de 70 anos, mas continua nítida em minha velha memória. Toda vez que me lembro dela fico pensando no sofrimento daquele professor. Ele tinha fama de bravo, porém no fundo era muito gente boa. Deve ter perdido algumas preciosas horas de sono remoendo remorsos pela injustiça involuntariamente cometida.

Por ser a ”cola” uma prática tão antiga quanto a própria escola, qualquer professor, vendo um aluno passar um papelzinho a outro durante a prova, de pronto supõe tratar-se de uma tentativa desleal de ajuda ao colega. Todavia no caso não era. E deu no que deu.

Decerto foi para evitar situações embaraçosas como essa que Jesus, o máximo sábio, alertou os seus discípulos: “Cuidado... não julguem pelas aparências”. As aparências muita vez enganam. Daí a generalizada aceitação do princípio segundo o qual “in dubio pro reo” (na dúvida, decida-se a favor do réu), ou seja: “melhor um culpado solto do que um inocente preso”. Claro: há sempre o risco de alguém desvirtuar o “in dubio”, usando-o indevidamente em benefício de pessoas comprovadamente culpadas. Mas, mesmo assim, até em nome da civilização, é fundamental que se mantenha válida a bela máxima jurídica.

Julgar é muito difícil – implica enorme responsabilidade. Um mínimo erro de interpretação pode levar o julgador a tomar decisões gravemente defeituosas.

E todos nós, por algum lapso, ou mais frequentemente por boa-fé, estamos sujeitos a cair nas teias de enganosas aparências. Conclusões apressadas são, portanto, arriscadas demais. Nem sempre o que parece “cola” é realmente “cola”. Pode ser um belíssimo salmo.

Obrigado, Valtinho. Valeu a lição.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 15.7.2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Versejando 67

 


Renato Benvindo Frata (A Pá de Polenta)

Meu pai não era de trabalhos manuais. Como caixeiro-viajante saía na madrugada de segunda com o primeiro ônibus e retornava somente no escurecer da sexta. Vinha cansado, suarento, empoeirado e doido para encontrar os amigos e limpar a goela com uma branquinha, e mais uma e mais outras...

Sua mala de couro cheirava a roupa suja e sua maleta de pedidos cheirava a papéis e fumo; é que ele às vezes fazia seus próprios cigarros enrolando uma palha dita especial que um amigo fornecia. O fumo vinha de Minas, mas catingava tanto que servia para espantar pernilongos.

Pois bem, naquele fim de sexta ele trouxe na bagagem algo diferente: era um pedaço de madeira branca, serrada, que não tinha cheiro.

- Vá até o senhor Jacinto e tome emprestado uma verruma com ponta fina, uma grosa e um formão curvado de mais ou menos 3 centímetros. Nós dois faremos um presente para sua mãe - ordenou.

- O que dá para fazer com esse pedaço de pau?

– Vá buscar as ferramentas e na volta você fica sabendo. Veja bem: um pé lá outro cá!

- Sim senhor. E saí desembestado até a casa do dono das ferramentas que me atendeu com gentileza, colocando-as num embornal de lona.

Quando cheguei, a surpresa: ele havia desenhado o presente na ripa branca, Seria uma bela colher de pau.

- Pra quê servirá, pai?

- Ué, você não come polenta toda hora? Será a nova pá de polenta da sua mãe, ué. Tá na hora dela deixar de mexer o fubá com a espumadeira de alumínio que esquenta demais e machuca a mão. Entendeu?

- Sim. Ela vai gostar.

- Então, ao trabalho. - E se pôs a cortar com o canivete bem afiado e a desbastar a ripa com as ranhuras de aço da grosa. E, vai daqui e vai dali, em minutos - ou seria em horas? - com a camisa empapada, as mãos cheias de bolhas, ele admirou o objeto contra a luz, sorriu por ter conseguido o intento e disse com a cara alegre: - Passe-me a verruma - pondo-se a fazer um furo no cabo.

Instantes depois a nova pá ficou pronta. Branquinha, lisa, com os contornos suaves e no tamanho ideal. Talvez tenha sido o primeiro (e último) instrumento que ele tenha feito em toda a vida,

- Ficou linda pai.

- Linda e perfeita! Chame sua mãe, quero ver a reação dela.

- Santo Deus que bagunça! - Espantou-se ao chegar. - Quem vai limpar a sala agora? Porca miséria... - disse ela arrepiada de braba, com a sujeira de cepilho e pó de madeira espalhados sobre os móveis.

- Veja mãe, o que o pai fez para você. Uma pá de polenta! Novinha!

- Oh! Filho, que maravilha... - Pegou a pá, olhou para ele que aguardava o maior dos agradecimentos, fechou a cara e rumou para a cozinha sem mais nada a dizer. Ouvimos apenas o barulho da pá jogada sobre as panelas vazias do fogão apagado.

- Que fizemos de errado?

- Só Deus é capaz de entender as mulheres. - E foi pro bar, para retornar à noitinha, manguaçado como sempre, triste e com cara de vítima.

A sala brilhava com os móveis limpos, o chão encerado e a toalha da mesa trocada. Até um vaso de flor enfeitava o tudo.

Sobre a mesa da cozinha, um prato de costelinhas de porco, fritas, uma salada de couve temperada no alho, arroz e uma tábua redonda de polenta fumegante. Ao lado, um pedaço de cordonê que ele usava para cortar em fatias o alimento que sempre foi a base das nossas refeições.

– A pá ficou boa, muito boa e bonita. – disse – e sorriu se aproximando dele para um abraço.

Do outro lado da mesa e assistindo a cena, notei que ele piscou de um olho e sorriu para mim como se repetisse:

- Só Deus, mesmo, para entender as mulheres...

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXV

AQUI NESTE PROFUNDO APARTAMENTO

 
Aqui neste profundo apartamento
Em que, não por lugar, mas mente estou,
No claustro de ser eu, neste momento
Em que me encontro e sinto-me o que vou,

Aqui, agora,  rememoro
Quanto de mim deixar de ser
E, inutilmente, [....] choro
O que sou e não pude ter.
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AS LENTAS NUVENS FAZEM SONO
 
As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Boio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.

E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.

Que bom, à margem do ribeiro
 
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.
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AS NUVENS SÃO SOMBRIAS

As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.

Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.

E esse bocado é que é
A verdade que  está
A ser beleza eterna
Para além do que há.
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A 'SPERANÇA, COMO UM FÓSFORO INDA ACESO
 
A 'sperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.

Cada dia me traz com que 'sperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é sperar e se cansar.

O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança e gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
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BASTA PENSAR EM SENTIR
 
Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de  parar de andar,
Depois de ficar e ir,  
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Nilto Maciel (A Música)

Após banhar-se e jantar, ligou a vitrola, pôs sobre o prato em rotação o primeiro disco do dia e levou a agulha à borda. Correu para a poltrona e se deitou. Quando cruzava os braços sob o pescoço, sentiu na cabeça uma dor. Não exatamente uma dor, mas uma sensação estranha. Ora, não se lembrava daquela música. Não a conhecia

Há anos, quase todo dia, praticava os mesmos gestos e sentia as mesmas sensações. Irritava-se quando a chuva deixava lento o trânsito de veículos e o impedia de chegar à casa na hora de costume. Mas diante da eletrola esquecia o incidente e desligava o telefone. Não queria ser importunado por ninguém. Se algum vizinho batesse à sua porta, pulava da cadeira feito uma fera, pronto a esmurrá-lo. Quando o sono chegava, desfazia todo o processo, lentamente, como num ritual. Punha os discos no final da fila, para voltar a tocar neles dias e dias depois. Apagava as luzes e se deitava, deliciado.

Naquela noite, porém, todo o seu “modus vivendi” começou a se esfacelar inexplicavelmente. Ora, como podia ouvir uma composição que não conhecia ou não constava em sua pequena discoteca? Alguém teria ido à sua casa e deixado aquele objeto. Quem? Um dos filhos, um primo, um amigo? Rememorou todas as visitas recebidas nos últimos dias. Olhou  para a capa da gravação: nenhuma palavra, apenas um desenho. Não, aquilo não lhe pertencia. De quem seria, então? Passeou pela sala, dirigiu-se à cozinha, bebeu água, se irritou com a barata que se escondeu atrás do fogão. Ora, por que não escutar as outras músicas do disco? Pôs a vitrola para funcionar de novo desde o começo e se deitou na poltrona. Decididamente não conhecia aquela peça. Uma polca de Strauss? Talvez não. A segunda faixa lhe pareceu mais estranha ainda. E assim se deu por quase uma hora.

Na noite seguinte se postou diante da discoteca, certo de que era a noite de uns noturnos. No entanto, não os localizou. Teriam roubado aquela preciosidade? Quem seria o gatuno? Insultou filhos, primos, amigos. Bando de ladrões! No frenesi da raiva, não viu os noturnos ao lado do objeto desconhecido e se lembrou da noite anterior. Ora, por que não ouvir novamente aquelas músicas incógnitas? Um dia descobriria toda a verdade. Repetiu o ritual e aguardou o início da execução da primeira polca. No entanto, para espanto seu, não ouviu uma polca, mas uma valsa. Ora, ora, ora. Que significava aquilo? Sentiu medo, angústia, raiva. Ergueu-se e se postou diante da eletrola, olhos no disco a girar. Desvairava-se o homem, tremia da cabeça aos pés, febril, alucinado. Estaria louco? A música seria capaz de enlouquecer, mesmo os mais sensíveis, os mais tranquilos, os mais sensatos seres? De onde surgira aquela valsa? Quem a gravara de um dia para o outro? Ou se tratava de outra gravação? Mas onde se achava a primeira?

Correu à estante e, descontroladamente, se pôs a mirar e remirar um a um os discos. Não, não havia nenhum novo, apenas os antigos, os conhecidos, os Tchaikovsky, os Grieg, os Bach, os Haendel, os Listz, os principais clássicos, todos ouvidos repetidas vezes, cem vezes, mil vezes. Súbito inicia-se a “Dança Eslava nº 2”, de Dvorak.

Espantou-se mais uma vez o homem. Restaurava-se a normalidade em sua casa, em sua sala, em seus ouvidos, em seu ser. O seu Dvorak reaparecia belo, pujante, perfeito. Aquela dança constava de um de seus Dvorak antigos. Seguiram-se obras ignotas, mas belas. Apesar disso, o cidadão não se tranquilizava. De quem seriam elas? E por que a mesma gravação, o mesmo objeto, de um dia para o outro se havia transformado?

Nos dias seguintes o fenômeno se repetiu: as músicas eram sempre diferentes das composições ouvidas nas noites passadas, umas conhecidas, outras não. E o homem se foi acostumando àquilo. Passados alguns meses, tinha conhecido centenas de novas melodias. E isso o conformava. Pelo menos não precisava comprar mais discos nem escutar as mesmas obras, embora aqui e ali também ouvisse as mais conhecidas peças dos mais famosos compositores, tudo na mesma gravação.

Pensou em procurar os jornais, as rádios, as televisões. Seria a mais fantástica reportagem. E se o chamassem de louco? Convocou os filhos para a confidência. Os rapazes saíram acabrunhados da casa do pai. Desistiu de dar publicidade ao fenômeno. Melhor permanecer em casa, calado, entregue à música, como sempre quis. Ouviria toda a obra musical composta até então. Coisa de que nenhum vivente seria capaz. Poderia escutar a peça nunca composta. E disso ninguém saberia. Somente ele, privilegiado ouvinte.

Porém, um dia o disco desapareceu, sumiu, evaporou-se, com capa e tudo. E o pobre homem não soube mais o que fazer em casa, na sala, na cozinha, no quarto, na rua. Não soube mais o que fazer da vitrola, da poltrona, da geladeira, dos ouvidos. E desapareceu, sumiu, evaporou-se, sem deixar rastros nem notícia. E nunca mais se ouviu falar dele. Como se nunca tivesse existido.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Arquivo Spina 40: Antonio Queiroz

 


Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 11–

A cruz, por velha que seja,
no mais tristonho abandono...
Nem pensa quem te apedreja,
que, és a dor do eterno sono!
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Adeus, palavra tão breve,
dois fonemas; e, ademais...
se já dói em quem escreve,
em quem diz, dói muito mais!
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Ante os rumores de guerra
e em meio a tantos deslizes...
Ouço os murmúrios da terra
no clamor dos infelizes!
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A saudade, cor de arminho,
toda tarde se distrai;
chega e se arrancha em meu ninho
e do meu ninho não sai!
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De volta ao meu chão, sozinho,
a saudade se completa,
na voz de um redemoinho
com minha alma de poeta!
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Distante do filho ausente,
meu olhar, perdendo o brilho,
sinto a dor que o cego sente
por não poder ver o filho!
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Em meio a sobras e orgias,
a ganância continua,
e esquece as almas vazias
pedindo sobras na rua!
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Enquanto o ocaso sepulta
a cor rubra do poente,
o manto da noite oculta
o fim da tarde da gente!
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Enquanto o sol, não se acalma,
e, antes que a luz se desfaça;
parece até que tem alma
no sol de minha vidraça!
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Fiz essa ponte na infância
unindo nascente e foz,
para encurtar a distância
dessa distância entre nós!
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Meu olhar se for preciso,
querendo se desculpar...
Pede a esmola de um sorriso
que há no teu jeito de olhar!
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Nosso amor, não foi em vão;
vive ainda bem guardado,
na aliança em minha mão,
unindo o nosso passado!
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Num mundo carente e pobre,
para afastar tanta dor,
Deus pôs o sabor mais nobre,
na massa do pão do amor!
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Num velho rancho de palha
a vida não passa em vão;
sobra de amor se agasalha
numa esteira pelo chão!
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Nunca me causa empecilho
manter sempre um livro aberto;
mesmo fechado, meu filho,
mostra a luz com passo certo!
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O amor, que tudo conquista,
que afasta a cegueira e a dor,
faz com que cego de vista
enxergue a chama do amor!
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O encanto do teu sorriso,
e a minha dor, por enquanto...
Mostram-me a fonte do riso
ninando a fonte do pranto!
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Ouço o velho coração,
dizer segundo a segundo:
– Poupe o piso deste chão
que é terra de todo mundo!
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Pai, não herdei nada em vão;
e, ainda sinto, por suposto...
Em minha mão, tua mão
e o teu suor no meu rosto!
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Percebo, por teus deslizes,
que entre nós, algo incomum,
quer fazer dois infelizes,
sem haver motivo algum!
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Percebo que as mãos divinas,
logo após o entardecer,
fecham no céu, as cortinas
para a noite adormecer!
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Por vivermos tão distantes,
disfarço a minha alegria,
porque nem mesmo os amantes
são felizes todo dia!
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Quando a luz do sol declina,
a saudade se revela,
no choro da chuva fina
batendo em minha janela!
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Quando a trova não me acalma,
depressa a torno mais bela
pondo um pouco de minha alma
no corpo dos versos dela!
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Quando a voz, atrapalhada,
chega à fronte embranquecida;
são sinais da longa estrada
por todos nós, percorrida!
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Revendo a cartilha antiga
junto à velha tabuada...
Não sei qual foi mais amiga
nem sei qual foi mais amada!
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São tantas as evidências
em decisões desiguais...
Que o choro das indecências
põe nódoas nos tribunais!
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Se em meio a tantas ciladas,
há lamentos, pranto e dor;
que em vez de balas trocadas,
haja intercâmbios de amor!
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Sinto no infinito brilho,
da aurora, cor de maçã
que, a luz dos olhos do Filho,
brilha no Sol da manhã!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Preta Velha)

Numa humilde rua de um bairro do Nordeste brasileiro, vivia uma mulher negra de idade avançada chamada Rosária. Filha de escravos, passou mais da metade da vida em quase completa miséria. Trabalhava como doméstica, mas ganhava pouco. Se muitas mulheres de pele branca já eram exploradas nas ditas casas de família, imagina as de pele preta. É uma vergonha, mas em pleno 2020, isso ainda acontece muito!

Depois da infância pobre, da adolescência limpando a casa de exploradores, ela acreditava que sua vida iria melhorar após o casamento. Que nada: piorou. O marido logo revelou-se um sujeito violento e alcoólatra.

Certo dia Rosária se perguntou: - Mas a escravidão não acabou em 1888? - No papel de esposa tornara-se mais escravizada do que as mulheres de seus antepassados, pois não tinha liberdade para expor vontades ou opiniões. Sequer tinha o direito de sair de casa. Seus dias resumiam-se em obedecer cegamente o seu esposo.

Depois de sofrer por muitos anos com o marido, o qual ela pensou que pudesse mudar sua triste realidade, finalmente começou a se libertar. O fígado do covarde bêbado não resistiu aos efeitos de tanta bebida e ele acabou morrendo.

As graças dos privilégios de uma boa vida, sempre fugiram do seu caminho. Estéril, nem filhos do seu ventre brotaram. Sentada numa calçada, triste, cabisbaixa, aquela senhora não sabia mais o que pensar de seu destino.

Repentinamente, como se um ser divino tocasse seu ombro, ela ergue os olhos para o céu e começa a conversar com Deus. À noite, ao repousar seu cansado corpo, um anjo aparece aos pés de sua cama. Pede a ela que, apesar das tristezas vividas, continuasse sendo uma pessoa doce, pois sua alma era bela e tinha muito o que oferecer ao mundo.

Ao raiar o dia, ela pensa que a visita do anjo tinha sido apenas um sonho. Mas não era. Sem família, muito sozinha, começou a cogitar a possibilidade de aprender alguma coisa, só não sabia bem o quê...

Com o passar do tempo, bateu uma enorme saudade de sua querida avó que, apesar de ter sido escrava, secretamente curou muita gente com suas rezas.

Sua memória relembrou alguns trechos de uma oração muito citada pela velha nas benzeduras que fazia:

“Deus os livre da praga que derruba.
Da aflição que chega.
Da decepção que assombra.
Da falsidade que ludibria.
Do esforço que esgota.
Da inclemência que afasta.
Da inveja que consome.
Da mágoa que adoece...

A partir de então ela buscou aprender a ler, passou a estudar as rezas curativas. E assim, a felicidade lhe abraçou com ternura. Se viu cercada de pessoas. Curou muita gente. Muitos passaram a lhe chamar de mãe. E assim a preta velha nunca mais sentiu-se triste e nem sozinha.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Adega de Versos 35: Amilton Maciel Monteiro

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) – 28 –

Juntar as ilhas culturais para fazermos um grande arquipélago de conhecimentos. Quanta identidade cultural, quanta riqueza cultural, quanto sabor cultural, quanta vivência cultural, quanta delícia cultural, quanto luzeiro cultural.

Grandioso estuário de pensares, de fazeres, de força motriz de dias melhores.

Junção de águas correntes claras, cristalinas. Lago azul, lago imenso, lago denso de aguapés a joeirar, a peneirar ideias e nutrientes do pensamento humano.

Águas claras, ideias puras, vidas luminosas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Hablase, Cantase y Tocase)

Era só um churrasco. Nada demais... não fossem as circunstâncias.

Na chácara dos pais de Adriano e Carmen, ela namorada de meu filho. Lugar lindo! Bosque de pinheiros, grama verde, céu azul e tempo colaborando.

Em Curitiba , Adriano e meu filho possuem inúmeros amigos paraguaios. O Paulinho até foi hóspede por duas vezes na casa de um deles, o Carlos, em Asunción.

Era aniversário de um paraguaio, e os patrícios estavam lá para prestigiá-lo. Os carros chegaram quase todos juntos. Havia mesas e bancos no meio dos pinheiros e uma enorme churrasqueira. Todos se acomodaram.

Os paraguaios cantam. Os paraguaios tocam. E bem! É lindo! Vários violões não ficam calados um só instante. Quando um se cansa, passa o instrumento para outro e a festa continua. Cantam de todas as maneiras: sozinhos, em dupla, trio, quarteto, conjunto... E de tudo: guarânias, boleros, tangos, rock, samba, música popular de quanto país do mundo, canções de Roberto Carlos... nem sei mais o que! Uma beleza!

Sanchez, o que cuidava da carne, envergando um comprido avental branco, de repente largou do que estava fazendo e veio cantar uma canção para mim, acompanhando-se ao violão, juntamente com os outros. Belíssima voz! Depois pediu-me que cantasse. E daí também a turma não me deixou parar. Desenterrei tudo o que sabia, só faltou que eu cantasse ária de ópera...

O ambiente era convidativo. Era bom cantar.

Saí para andar com a Carmen pela chácara e aproveitei para perguntar-lhe quem eram as pessoas.

"Quem é aquele que está pondo a maionese na mesa?"

"É o Gildo, engenheiro da Itaipu, E o aniversariante,"

"Brasileiro?"

'"Não. Paraguaio. Mas a mulher dele é carioca. É a Lourdes, moça muito simpática. Ali, olhe".

"E aqueles dos violões?"

"São o Toni, o Firmin, o Victor, o Carlos, e Pomerito" (Não lembro todos os nomes).

"Brasileiros?"

"Não. Paraguaios."

"E aquela garota linda, de boina vermelha?"

"É a Kitty".

"Brasileira?"

"Não. Paraguaia."

"Poxa… pelo que estou vendo, hoje não ficou ninguém no Paraguai…"

Chamou-me a atenção outro casal.

"E aqueles quem são?"

"São o Gil e a esposa".

"Paraguaios?"

"Não. Brasileiros".

"Arre! Até que enfim!"

Enquanto a carne assava, foram jogar futebol. Brasil versus Paraguai, naturalmente. Só que para completar o time dos brasileiros... faltou gente. Dois paraguaios tiveram que jogar no nosso time. E nós perdemos...

A carne ficou pronta. Estava muito boa. Havia todos os outros elementos que acompanham um bom churrasco. Por último, bolo de aniversário. Delicioso!

A música não parou enquanto a turma comia. Dois ou três largavam os violões, outros dois ou três os empunhavam e continuavam cantando até que todo mundo almoçou.

E foi assim pela tarde afora, até a hora da partida.

Dia esplêndido! Em pleno município da tradicional Curitiba - população cabelo-de-milho-verde, uma alegre "fiesta" paraguaia com tudo a que tem direito, e toda cantada, tocada e hablada... em portunhol.

(Tribuna de Itararé —  01/11/89)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Fabiano Wanderley (Glosas) – 1

 COMO DÓI, VER UM VELHINHO,
PELA RUA, ABANDONADO.


Ao relento, sem um ninho,
falseando, o caminhar,
tão tristonho, a mendigar,
como dói, ver um velhinho.

Solitário, sem carinho,
tão carente, amargurado,
sem ter um rumo traçado,
sem algo, que lhe conforte,
exposto às farpas da sorte,
pela rua, abandonado.
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FECHANDO AS JANELAS DJALMA,
PUDE ESCONDER MINHA DOR.


Para disfarçar meu trauma,
ou não deixá-lo aparente,
só há, um meio, evidente,
fechando as janelas d'alma.

Só assim, o meu ser se acalma,
conforta-me o interior,
não permitindo se expor,
minha angustia, meu tormento,
com o doloroso argumento,
pude esconder minha dor.
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NESTA VIDA, QUEM PEGA O BONDE ERRADO,
VAI PARAR NA ESTAÇÃO DO DESENGANO.


Terá sempre o destino mal traçado,
sem turno, sem um sonho positivo,
jamais alcançará o objetivo,
nesta vida, quem pega o bonde errado.

Desista desse intento malogrado,
não deixe que essa escolha, cause dano,
reflita, mude o seu cotidiano,
para os trilhos da verdade e do alinho,
por que, quem o conduz ao descaminho,
vai parar na estação do desengano.
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DIZ BEHRING, O GRANDE POETA:
QUE BRILHO, TINHA O PERCY!


Com a verve de um esteta,
e a corda de um coração,
exaltando nosso irmão
diz Behring, o grande poeta.

E esse tema se completa,
por todos termos, que eu vi
e em todas frases, que eu li,
vi nos versos, a franqueza:
— "ele era uma luz acesa"...
que brilho, tinha o Percy.

O poeta, Behring Leiros, em seus versos,
definiu, que o Zé Percy,
"era uma luz acesa".

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CANTA CHARLES MADUREIRA,
COM O ARDOR, QUE O CANTO TEM.


Sua verve é prazenteira,
sua música é envolvente,
com carisma e som dolente,
canta Charles Madureira.

Com sua alma seresteira,
a poesia sobrevêm,
interpreta muito bem,
com grande discernimento,
expressando o sentimento,
com o ardor que o canto tem.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos.
Natal/RN, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Sílvio Romero (A lebre encantada)

Havia em um reino um rei que tinha um filho. Um dia o rei estava muito doente e disse ao filho que fosse matar uma caça para ele comer. O príncipe saiu com uma espingarda e quando viu, saiu do mato uma lebre toda branca.

O príncipe correu atrás dela para pegá-la, quando de repente abriu-se um buraco no chão e a lebre entrou, levando consigo o príncipe. Quando este viu, estava dentro de um palácio muito bonito e rico, tendo nele uma princesa também muito formosa. O príncipe ficou tão encantado da beleza da princesa, que nunca mais se lembrou do palácio do pai e nem deste.

Passado muito tempo, vai um dia o príncipe lavar as suas mãos e tira do dedo uma joia que o pai tinha lhe dado. Aí ele lembra de seu palácio e da família, e diz à princesa que ia vê-los.

A princesa insistiu muito para que não fosse, mas ele disse que ia e tornaria a voltar. A princesa então bateu com uma vara no lugar onde tinha entrado com o príncipe e o chão logo abriu-se e o príncipe passou.

Quando chegou ao palácio do pai, achou-o todo coberto de luto e abandonado, pois já tinha morrido toda a família de desgosto por causa do desaparecimento do príncipe.

Ficou muito triste e não quis voltar mais para o palácio da princesa. Saiu sem destino tendo trocado a roupa de príncipe por uma de um sapateiro, e foi a uma cidade que estava toda em festa. Perguntou que festa era aquela, então disseram que era porque a princesa deste lugar era a mais bonita do mundo.

O príncipe, que estava mudado em sapateiro, pediu que lhe mostrasse a princesa, e disse quando a viu que já tinha visto uma moça muito mais bonita.

Correram e foram logo dizer ao rei que aquele sapateiro disse que tinha conhecido uma princesa muito mais bonita do que a filha dele. O rei mandou chamar o sapateiro e disse que sob pena de morte ele havia de trazer a princesa à presença dele.

O sapateiro pediu o prazo de quinze dias e saiu. Quando chegou ao lugar onde a lebre tinha entrado com ele, principiou a cavar. Levou muito tempo cavando porque a terra estava muito dura, mas afinal conseguiu passar.

Aí encontrou o palácio da princesa todo fechado. Ele bateu na porta e apareceu uma criada. Quando esta viu o príncipe disse: “Príncipe meu senhor, a princesa esta muito doente por sua causa; só o que diz é: “Ah! Ingrato, que foste e nunca mais viste quebrar meus encantos.”

A criada disse mais, que naquele dia à meia-noite o mar crescia muito e afogava todo o palácio, e então entrava um peixe muito grande e engolia a princesa, mas se tivesse uma pessoa que matasse o peixe, quebrava os encantos da princesa.

O príncipe quis ir falar com a princesa, mas a criada disse que não, porque ela podia morrer mais depressa. Aí o mar principiou a crescer e a princesa a ficar pior. O príncipe pegou uma espada e escondeu-se atrás de uma janela. O mar foi tomando o palácio, e quando foi meia-noite, o peixe entrou para engolir a princesa, então o príncipe enfiou-lhe a espada e o matou.

O mar foi diminuindo outra vez e a princesa escapou. Então o príncipe apareceu e a princesa ficou muito alegre e houve muita festa.

Depois o príncipe disse: “Princesa, eu já lhe salvei a vida, agora é você que vai salvar a minha”. E contou que sob pena de morte havia de mostrar uma princesa mais bonita que a filha do rei. A princesa disse que ele fosse descansado.

Ele saiu e chegou no outro reino no dia marcado. Já estava a forca armada para ele morrer. Então ele pediu ao rei que esperasse mais um pouco. Quando apareceu uma nuvem de prata, que veio descendo, descendo, e quando chegou no meio do povo apareceu uma criada toda coberta de prata dizendo: “Arreda, povo, deixa botar a cadeirinha de minha sinhá.”

Aí o povo ficou pasmo. O sapateiro tornou a pedir ao rei que esperasse mais um bocadinho, que ainda não era aquela.

Apareceu outra nuvem, de ouro e foi descendo e quando chegou no meio do povo apareceu uma criada toda coberta de ouro e disse: “Arreda, povo, deixa eu botar a cadeirinha da minha sinhá.”

O sapateiro tornou a pedir ao rei que esperasse, quando apareceu uma nuvem de brilhante e foi descendo. Quando chegou no meio do povo apareceu uma moça linda e toda coberta de brilhantes, que era a princesa, e assentou-se no meio das duas criadas.

O povo ficou maravilhado. O rei e a princesa, quando viram aquela beleza incomparável, ficaram envergonhados e pediram muitas desculpas ao rapaz. Convidaram este e sua formosa noiva para se hospedarem no palácio. Mas os dois não aceitaram. Preferiram voltar para o seu reino, onde viveram alegres e felizes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. 
Publicado pela primeira vez em 1885, em Lisboa.

domingo, 18 de julho de 2021

Evely Libanori (A gente sabe que ele não vai viver...)

Um bebê recém-nascido e abandonado. Era um gato largado no chão, na calçada.

Foi assim: ele estava caído sozinho na calçada em frente à AABB numa manhã de quarta-feira. Não é possível saber como ele foi parar nessa calçada. O comportamento humano... Era uma manhã de quarta-feira de setembro, quando um menino fazia o seu caminho diário de menino que volta da escola. Então ele viu que, na calçada, uma vida se mexia. Olhou atento e viu... Extraordinariamente, era um gato!

Um gato tão pequeno como ele nunca vira antes na vida. Um gato tão gatinho e tão vulnerável... O gato no meio da calçada, perdido, do tamanho de uma semente, abandonado, sozinho. A sorte do gatinho: foi achado por um menino bom.

O menino levou o gato para casa, mas lá havia cachorros. E então o menino, como menino que é, procurou a mãe: "Mãe o que fazer com o que me aconteceu?" A mãe orientou. E ele, de algum jeito desses jeitos que meninos têm para se mexer (a pé, de ônibus, de bicicleta), levou a vidinha nas mãos para a Sociedade Protetora dos Animais. É verdade que os gatos são animais fortes; o gatinho viveu todo o tempo do salvamento dele.

O menino chegou lá com o gatinho e falou tudo o que viveu. O menino começava a virar homem. Quando o gatinho chegou, ele estava embrulhadinho num cobertor que foi do menino quando o menino tinha sido bebê: um cobertor azul antigo e quentinho de calor e de amor. Eu acho que era por isso o gatinho vivia, do amor que cercava todo ele. Chegou vivo, Eles olharam e falaram: "Meu Deus, um gato tão pequeno, o que fazer com ele?" A Rayssa, que estava lá, disse: "Tenho uma amiga que sabe cuidar".

Então trouxeram para mim. Eu estava quieta na minha casa, lendo no computador, quando chegou o carro branco, Eu vi da janela e fui atender. Era uma moça no portão com um bebê num manto azul. Antes de saber tudo, pensei que era filho dela. Quando abri o portão ela me mostrou o gato no manto, e meu universo mental se abriu para a explicação. A explicação é a história acima.

Eu olhei para ele e vi um borrãozinho, uma manchinha cinzenta. A gente não via direito os bracinhos e as perninhas. Era feio, indefinido. Não se mexia, parecia uma mariposa, mas era um gato, E então eu pus a mão nele. Gelado, gelado. Ele estava todo molhado, totalmente molhado, e eu sabia o motivo: ele está fazendo xixi e não estão secando, Eles não sabiam de nada, não tinham a menor ideia do que fazer com o gatinho que acabava de pular para dentro da vida. Por isso vieram até minha casa.

Eu tive medo. Ele estava muito fraco. Eu disse:

"Não sei se ele vai viver", E então a moça respondeu: "A gente sabe que ele não vai viver, mas pelo menos alguém se preocupou com ele".

Peguei o bebê no manto azul e entrei. Fiz o que devia fazer, mas não tinha certeza se ele viveria. Ele estava tão gelado, quieto, tão pequenino... Mas então... Bem, ele era um gato! E se recuperou como se recuperam os gatos, esses seres que são como pequenos tratores de potência e vigor.

Depois que sequei e aqueci o corpo dele, ficou quentinho e bebeu bastante leite, E foi crescendo, crescendo, dobrando de tamanho a cada semana. Pois nunca até hoje na vida ele teve uma febre, com exceção uma vez quando ele foi atropelado. Mas isso já é uma outra história do gato que a gente pensava que não viveria, eu e a moça da Sociedade Protetora. Ele, não sabendo de nada da sua biografia, não sendo o culpado de nada do que lhe acontecia, queria mais era o calor, o leite, a vida.

Aí, a vida tem umas coisas que a gente não sabe como explicar: se com o Destino, o Deus, ou se com o destino, o acaso. Seja pela via divina, seja pela via do acaso, fiquei sabendo que o nome do salvador menino do meu gato é "Luã". Quando eu fiquei sabendo disso, já tinha posto o nome do meu gato de "Lua", O meu gato se chama "Lua". O manto azul que embrulhou o Luã e o Lua ficou na minha casa por um tempo. Até que ele foi embora junto com uma cachorrinha que largaram aqui e que eu encaminhei para a costureira que mora no bairro vizinho. O cobertor do Luã e do Lua agora está com a Sanchinha, a cachorra adotada pela vizinha.

E é o ritmo da vida. Só sei que o Lua, não sabendo que era o gatinho que ia morrer, viveu. E vive. Alegre, cinza, saltitante no jardim.
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Evely Libanori é mestre e doutora em Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa. É professora de Literatura Brasileira na graduação e de Literatura Latino-americana na pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. É líder do Grupo de Atividades Interdisciplinares sobre os Animais-GAIA. Escreve artigos acadêmicos sobre os animais na Literatura e também narrativas sobre libertação animal.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) X

ALVORECER


Num festival de luz, a madrugada
vem surgindo no céu, risonhamente;
a Estrela d'Alva brilha alcandorada
sobre a Terra, que a fita, resplendente!

A Natureza, então, qual namorada,
de flores se engalana, sorridente,
cigarras cantam, canta a passarada
agradecendo a Deus esse presente.

E a estrela que brilhava, já sombria
desaparece... E o mundo que dormia,
desperta, alegre, em meio dessa festa...

Não há beleza que se iguale a esta,
quando luzente o sol se manifesta
no começo feliz de um novo dia!...
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ANTES…

Antes que seja tarde, eu me pergunto:
- por que dói tanto a despedida, assim?
Meu coração, teimoso, já foi junto
sem entender por que foges de mim?

A minha vida agora sem assunto
não tem sentido e segue para o fim,
sem teu amor me sinto qual defunto
seguindo num caixão fechado, enfim.

Mas se voltares num abraço ardente
tu me acharás aqui, pois certamente
nosso amor é maior, assim eu penso.

E nunca mais hás de ficar com medo
nem haverá jamais algum segredo
que nos separe deste amor imenso!
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BARRA DO MENDES

Plantada no Sertão, Velha Chapada,
aos pés da bela Serra Santa Cruz,
Barra do Mendes cresce, abençoada,
sob o signo da Fé, cheia de Luz.

A Natureza esbelta foi talhada,
mas a Amizade é flor que nos seduz,
porque a cidade acolhe gente honrada
e a um futuro brilhante nos conduz.

Grutas, lagoas, rios, cachoeiras,
paisagens deslumbrantes, gameleiras,
riquezas naturais que tu deténs.

Bem haja o teu valor, Barramendense,
o teu progresso a todos já convence,
eu te saúdo, então, meus parabéns!
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BONDADE

Essa bondade que nasceu comigo,
herdei, um dia, de meu velho pai.
Até parece, às vezes, que é castigo
pra quem lutando pelo mundo vai...

Meu coração cansado é tão amigo
ajuda e ampara quem na vida cai.
Ninguém será feliz, sem ter abrigo,
- o egoísmo do mundo não me atrai.

Pode até parecer que sou um louco,
pois o amor verdadeiro é muito pouco
para expressar a força da Verdade.

Quero que Deus, então, me dê guarida
para que eu possa ser por toda a vida:
- emissário da Paz e da Bondade!
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CANTANDO O AMOR

É belo o amor sublime do meu sonho
que em minha vida já se fez real.
não há razão para viver tristonho,
se estás comigo eu venço o vendaval.

O céu está mais lindo e mais risonho,
saudando a nossa paz transcendental.
O tempo passará, mas - pressuponho,
nosso amor subirá ao pedestal.

Viver este momento tão singelo
sempre foi meu desejo e meu anelo
e sentir teu carinho e o teu calor.

Querer-te assim numa expressão sincera,
Verão, Outono, Inverno ou Primavera,
hei de te amar com todo o meu amor!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. 
São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Paulo Mendes Campos (Receita de domingo)

Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da trombeta do arcanjo.

Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão - caçarolas, panelas, frigideiras, cristais - anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente.

Também o canário-belga do vizinho, descobrir deslumbrado que faz domingo. Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.

Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilinguida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais magníficos do que os próprios cavaleiros.

Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão-doce, refrigerantes, balões em forma de pinguim, macaquinhos de pano, papa-ventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais a crianças.

No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.

A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.

Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more (*).

Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrantes não nos repartam em uma existência de egoísmos.

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* Never more: referência ao poema "O corvo", de Edgar Allan Poe, escritor e poeta norte-americano (1809-1849), em que o pássaro repete por várias vezes o refrão never more (em português, "nunca mais").

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O cego de Ipanema. RJ: Ed. do Autor. 1960.

sábado, 17 de julho de 2021

Apollo Taborda França (A Trova e O Trovador)

A TROVA


A minha TROVA é silente,
toda de luz e calor...
Ponho na rima meu poente,
meu universo de amor!
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A TROVA boa, sentida,
fluindo com emoção...
é como a prece florida
que brota do coração!
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A TROVA etérea, maviosa,
Desperta suave emoção...
Quando fluente e ardorosa,
Fala-nos ao coração!
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A TROVA, graça divina,
de inspiração é repleta…
Surge da verve mais fina
e valoriza o poeta!
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A TROVA, graça suprema,
sintetiza e muito ensina...
Tem a luz de pura gema,
nos envolve e nos fascina!
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A TROVA não morre nunca,
retempera a humanidade...
e vence a tristeza adunca,
alegrando a mocidade!
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A TROVA que tem valor,
é muito simples, singela...
e diz um mundo de amor,
com tintas de uma aquarela!
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Cinco letras... Viva a TROVA!
Quatro linhas... de verdade;
Poesia se renova
e ganha longevidade!
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De TROVAS uma revoada,
pra alegrar o nosso ambiente…
O verso é muito, é nada,
mas, deixa-nos bem contente!
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Para fazer boa TROVA,
verso puro que se integra,
cuide a rima, como prova,
e respeite bem a regra!
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Poesia?... Salve a TROVA,
Quatro versos de estatura.
O poeta põe á prova,
com o denodo e cultura!
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Quem falou que a TROVA é dura,
sem valor, um tanto azeda?...
Pois que certa ela perdura,
se consagra de vereda!
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Quem tem estro e tem cultura
e se inclina à poesia,
vai na TROVA com lisura,
cheio de graça e estesia!
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Recrudesce a bela TROVA,
para a glória da Cultura;
Poesia põe à prova
o bom senso, em miniatura!
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Sempre no pequeno frasco
é que está a grande essência…
e a TROVA traz no casco,
o rigor dessa exigência!
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Sete sílabas por cima
e ideia sempre nova,
com cadência e boa rima,
numa quadra... bela TROVA!
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TROVA tem aura dileta,
enebria o pensamento.
É magia do poeta,
arroubo do seu talento!
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TROVA tem sabedoria,
é tão fértil como a terra…
Bons conceitos ela cria,
pelas verdades que encerra!
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Uma TROVA de cadência,
conteúdo e expressão.
Precisa de inteligência
e muita reflexão!
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Uma TROVA pra ser boa,
expressiva, universal…
na mensagem que apregoa
mostra cultura e moral!
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Uma TROVA...    um belo tema,
pra dizer o que se quer;
sendo um poeta da gema,
inspira-se... na mulher!
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Você tem tristeza n'alma?
Esqueça! Não se apoquente...
Tente a TROVA, que ela acalma,
retempera a nossa mente!
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O TROVADOR

Eu sinto as trovas nas veias,
meu sangue todo alvoroço...
Verso me envolve nas teias.
meu coração é de moço!
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Por trovador eu me esmero,
no rito de bem compor...
Nas minhas trovas sou mero,
puro instrumento do amor!
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Ser trovador, uma graça,
é bênção que cai do céu...
Nas rimas ele bem traça,
de sua glória o troféu!
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Sou trovador e entendo
a rima, em forma de flor...
e tal qual um reverendo,
só rezo trovas de amor.
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Sou trovador sem remendo,
O verso meu é de cor...
Vou com assombro dizendo
as minhas trovas de amor!
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Sou trovador, tenho senso
da importância da poesia...
Encerra tudo o que penso,
realidade e fantasia!
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Sou trovador venturoso,
amo a vida por demais...
Da infância lembro meu gozo.
Da juventude meus ais!
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Sou trovador venturoso,
conheço desse fulgor...
Trovar de modo charmoso
sobre a mulher, com sabor!
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Trovador que demais ama,
passa momentos terríveis...
Trova loucuras na cama
e sonha coisas incríveis!
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Trovo porque me dou bem,
no ritmo, rima e cesura...
Meus versos como requiém,
rebrilham lá pela altura!

Fonte:
Apollo Taborda França. Trovas maravilhosas. 
Curitiba/PR: O Formigueiro, 1986.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Arquivo Spina 39: Carla Bueno Oliveira

 

Carolina Ramos (Pedras e Almas)

As pedras são sólidas, visíveis, palpáveis, duras e estáticas - puramente matéria. As almas por sua vez, etéreas, fluidas, impalpáveis, invisíveis, não estáticas e puramente espírito.

Todavia, será que pode haver alguma relação entre estes dois elementos, apesar dos contrastes que os colocam em pontos opostos?

Pensando bem, até que pode, sim!

Tanto as pedras, como as almas, podem ser trabalhadas e modificadas pelo tempo e pelas ações. Ambas podem ser lapidadas, pacientemente cinzeladas, polidas e transformadas, com golpes brandos, por quem se empenhe em torna-las mais suaves, a evitar que as contundências da vida, às marteladas e a duras penas, acabem por lhes vencer a resistência.

Mas... se as pedras nada sofrem com isto, evidentemente as almas, quanto mais se debatam, tanto mais se rebelem, maiores sofrimentos irão encontrar pela frente!

Podem as pedras esboroar-se antes de assumirem novas formas, como também acontece com certas almas empedernidas que, cegas à razão, preferem rachar a se deixarem modificar. São as chamadas almas de pedra, que sofrem estoicamente vergastadas por ventos maus, que as fustigam, sem conseguir modela-las, quer com a desejável brandura da brisa, quer com a rude tenacidade de um implacável martelo bate estacas.

Aquele homem rústico, cara fechada, passos firmes, para quem os portões que o mantinham prisioneiro abriam-se agora magnânimos para que pudesse passar o Natal junto à mulher e filhos, já sofrera bastante! Sofrera, sim, mas sua alma, rija como um paralelepípedo, resistira aos golpes recebidos, sem perder a agressividade dos contornos esculpidos a cada nova infração. Sempre à mercê das marteladas contínuas, ônus das culpas assumidas, e sem mostrar qualquer arrependimento.

Em casa, abraçou a mulher com ternura imprevisível, provando que os brutos também têm sentimentos! As filhas pequeninas, duas gatinhas saudosas do calor paterno, enroscaram-se em suas pernas, pedindo carinho. Após a emoção da chegada, a pergunta do pai saltou espontânea;

- E o moleque... por onde anda?! - captou, no olhar escamoteado e na gagueira da resposta da esposa, que alguma coisa não andava bem.

- Ah... o Valtinho... esse anda por aí... pensa que já é home... nem dá mais satisfações...

- Péra aí... não é assim, não!... Esse moleque não tem nem quinze anos... e já qué sê fazê di gente?! Ele não sabia que o pai táva chegando?!

- Sabia, sim... é que ele ia fazê num sei quê... num sei aonde... tarvez demore pra chegá... si é que chega... Inda hoje...

O final da frase... reticente... apenas sussurrado, dava chão às desconfianças.

A angústia estampada no rosto daquela mãe e a descontração mal simulada, denunciadas pelo olhar fugidio, eram janela aberta a dar acesso ao que, em vão, ela procurava ocultar. A suspeita agigantou-se, transformada em ameaça.

- Não mente, não, Maria, que eu não engulo!... me diz duma vez... o que está acontecendo c 'o moleque?! - As mãos rústicas do marido sacudiram a mulher pelos ombros, com rudeza que exigia a verdade: - Desembucha logo, muié! Não me engana não!... Tu sabe que eu não tolero enganação!

Cara lavada de lágrimas, a pobre mãe explodiu em soluços: – ...O Valtinho tá preso! - gaguejou - ele andô aprontando por aí... metido com droga... roubando... brigando... Uns poco dias atrais... Sabe aquele canivete que tu deu pra ele? Pois ele pegou lá na gaveta e acabô furando o filho daquele bandido que tem cara de cangacêro... Aquele que tu bem conhece... e.. daí... Daí...o bandido jurô de cruiz qui vai acabá co nosso minino! - despejou tudo como água de rio que, sem encontrar chão, desaba cachoeira abaixo. Tentou amenizar a queda, acrescentando

- Inté qui é bom qui o moleque fique detido por mais uns tempo... O delegado disse que é mais seguro... E perciso dexá a reiva do home esfriá...sinão, pode até acuntecê uma disgraça! Ele é bandido!! Tu sabe, home!!! Tu sabe!!!

O desabafo saiu de supetão, como se aquela pobre mãe desejasse livrar-se dele o mais depressa possível. Sentiu-se aliviada ao jogar fora o peso da culpa que, calada, a manteria cúmplice do drama.

Os punhos daquele homem fecharam-se com violência. Um gemido rouco, misto de dor e ódio, saltou-lhe da garganta lembrando bicho ferido! Nem toda a oportuna clemência com que julgava e absolvia os próprios atos impediu-lhe a revolta. Ele poderia fazer o que bem quisesse! Era homem consciente do que fazia... tanto certo quanto errado! E respondia pelos atos feitos! Mas... o filho, não!... Valtinho era uma criança!... Uma criança, sim... nada mais do que uma criança! Brincava de ser bandido! Mas não era um bandido! E nunca haveria de ser!.,. Precisava manter o nome limpo! Fosse o pai dele o que fosse... o filho tinha que ser um homem de nome respeitável... sem mancha!

Homem como ele mesmo um dia pretendera ser... embora a vida não tivesse deixado que isso acontecesse! Mas... isso não tinha nada a ver com o seu garoto! Nada de misturar os dois no mesmo tacho! Pai é pai! Filho é filho! Cada um na sua!

Desenroscou as filhas das pernas e saiu de casa como um corisco, largando faíscas por todo lado, rumo à Delegacia. Nem bem chegado à Praça da Matriz, percebeu o tumulto. O povo grudara alguém que estrebuchava no chão, mercê de chutes e safanões! Reconheceu na vítima o bandido que jurara de morte o filho. Cresceu-lhe no peito o horror da suspeita! A voz saiu sussurrada e cheia de veneno, ao indagar:

- Que é que esse bandido fez?! - A resposta aterrou-o:

Deu duas facadas num pivete! O garoto ia pra casa, esperar o pai, indultado como ele - os dois saídos da cadeia pra passar o Natal com a família... Covarde!! - novo chute na vítima completou a frase.

Consumido pela dor, aquele pai arriscou outra pergunta, mais temeroso da própria imaginação do que da resposta que viria de volta...

- O garoto... morreu? - indagou num fio de voz... logo engrossado pelo desespero ao reforçar a pergunta quase aos gritos: - O meu minino morreu?!...

Alguém tentou explicar:

- A ambulância levou o rapaz para o hospital... perdeu muito sangue... não sei não... se vai aguentar...

Aquele homem rústico não pensou em mais nada. Esqueceu até a chance de vingança que o acaso lhe oferecia! As pernas ligeiras, aceleradas pela ansiedade, não o abandonaram. Quase sem fôlego, chegou ao não distante Pronto Socorro, onde entrou estabanado... sendo imediatamente barrado;

- Epa!... aonde pensa que vai?! Aí não pode entrar, não! Aguarde o chamado!

- Meu filho está mal... precisa de mim! Me déxe passá, pelo amor de Deus! Ele está morrendo!! Quem sabe, até já teje morto! Me dêxe entrá!!!! - O tom da súplica final já era quase uma ordem... e temível!

A angústia estampada no rosto daquele homem rude, determinado a não respeitar barreiras, desfez qualquer entrave. Envolto em lençóis ainda tintos de sangue, o garoto, pálido, quase em colapso, reanimou-se ao vê-lo... sorrindo seraficamente como se visse Deus estampado na cara daquele pai!

O médico que o atendia exultou: - O senhor é o pai?! Ótimo! Qual é o seu tipo de sangue?

- Não sabe ?! Mas... vamos saber já, já! E a resposta não tardou:

- Perfeito! Não foi nada grave, não!... Sossegue!... Houve apenas uma grande perda de sangue… e esse sangue precisava ser reposto. Chegou na hora certa, amigo! Posso dizer-lhe que salvou a vida do seu filho!

A frase mágica do médico, que o chamara de amigo, ficou por largo tempo a cantar nos ouvidos daquele homem abatido, não só pelo susto, mas pelos remorsos também!

As palavras do médico devolviam-lhe a autoestima, ao conscientizá-lo de que resgatara a vida do filho... para ele, quase morto! Incorporou a frase à própria vida - tão valiosa quanto uma condecoração, que haveria de honrar até a morte!

O péssimo histórico de mau pai - sempre ausente e sangue ruim - pesava-lhe ainda na consciência, já que, em última análise, quase lhe roubara o filho!

Mas, agora, a coisa era bem diferente - Aquele mesmo sangue-ruim, de pai-bandido, acabara de salvar a vida do seu garoto!

Autoabsolvido, inflou o peito... sentindo-se herói!

Chamuscadas pela fogueira da desgraça, as almas daquelas duas Phoenix, pai e filho, renasciam das mesmas cinzas!

No entanto, ainda réus, ambos tinham contas a acertar com a Justiça.

Por conta disto, lá ficaram retidos, por mais algum tempo, aqueles dois rudes paralelepípedos, a serem dimensionados e rigorosamente esculpidos, para melhor encaixe na pavimentação do Amanhã.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Fabiane Braga Lima (Trilogias do Amor, da Paixão e…)

TRILOGIA DO AMOR, DA PAIXÃO E DA SEDUÇÃO


OLHE BEM EM MEUS OLHOS

Olhe bem em meus olhos, veja!
Amo -lhe tanto que me perco
perco-me toda na minha loucura,
com o corpo trêmulo de desejo.

Mas errei, me perdi e nada fiz
Na ânsia de amar, enlouqueci
Minh’alma entrou em conflito,
Nesse imenso e árduo labirinto.

Ouça-me, esqueça todo passado
E, sem medo vamos recomeçar,
dois insanos amantes a se amar.
Não prometo romance perfeito
Mas gritarei alto com coração,
minha louca e intensa paixão…!
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O CORAÇÃO CONHECE...

Ah! Meu amor, como explicar a vastidão
de tanto amor que sinto por ti!?

Me entreguei intensamente, e agora?
Busquei-te no lugar mais belo...
Nada exige, simplesmente aconteceu...

Se em sonhos te encontro!
É porque realmente me entreguei inteira,
transbordei-me de amor...
É como se palavras falassem por mim...

Conheço quando se entristece e se alegra
e nada explica este motivo!
Desta telepatia, somente o universo...

Dizem que para o amor chegar, não há dia,
não há hora marcada nem momento
para acontecer...
Ele vem de repente e se instala no órgão
mais sensível de nosso corpo...o coração...
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INSANO AMOR

Como o tempo passou, meu amor...
Tudo se encaixou, cessou a dor
Mas todo sentimento aqui ficou
Não existe amanhã, apenas talvez.

Foi um passado de tanta agonia
Brigas sem razão, nos esquecemos
do mais belo sentimento, aquele
que se fazia morada no coração.

Hoje, ao findar da tarde me lembrei
Lembrei -me das tardes de amor,
onde nossos corpos perdiam a razão.

Mesmo depois de anos, reconheço
ainda sou a mesma, louca d’amor,
trêmula e desejosa. Insano amor…!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

TRILOGIA DO AMOR, DA PAIXÃO E DO DESEJO

NÃO POSSO FUGIR

Não posso fugir da verdade...
Crueldade! Amo sem vaidade.
Meu corpo intacto, padece….
Vejo-lhe distante, sinto saudade.
Nesse meu querer adormeço!
Sinto-me serva desse desejo.
Guardo n’alma infindo segredo,
Tocar-lhe e no oculto buscar.
Madrugada afora não lhe vejo.
Resignei! Finjo ser rude, forte,
De sua boca palavras sem nexo!
No meu coração tanto sentimento,
Indelével! Como não querer, almejar,
Amo-lhe, em todo momento…!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MEU ANJO

Um anjo de luz me abraçou!
Aceitei, pois estava ferida.
Sem permissão me beijou,
Sua essência transbordou.
Naquele dia conheci o amor
Minha dor se calou, o senti.
Minha alma se alegrou,
Despiu-me sem permissão.
Hoje, sinto sua presença
Chega sem que eu perceba,
Em minha poesia, ou crença.
Meu anjo, onde moras!?
Coração incauto implora,
Traz-me magia na poesia…!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

REFÉM

Fez-me refém de tua loucura,
Grito contido, desejo omitido.
Preciso possuir teu corpo.
Insanidade!

És a primícias que ofereço aos deuses,
Mistério que toma meu corpo,
Invade meus desejos libidinosos,
Transbordando de vasta saudade.
Mas não lhe sinto,
Se esconde em versos profanos,
Heresia, me faz teu atroz pecado!

Imploro!
Deixe-me sentir teu corpo sobre o meu.
Diga-me se é loucura, fantasia!?
Não me torture.
Afasta-se do nada, deseja-me intensamente,
E ignora-me. Juro!
Não consigo desvendar tuas inúmeras faces,
Nem ao menos lhe esquecer.

Complexidade que alimenta,
Paixão que aos poucos machuca,
Minha cura, sem juras...!
Desatino ou destino!?

Fonte:
Poemas enviados por Samuel da Costa (Itajaí/SC)

Eduardo Affonso (Superlativinho, diminutivíssimo)

Tem coisas que só a língua portuguesa faz por você.

Ou principalmente a língua portuguesa do Brasil, sei lá.

O diminutivo não ser pouco, mas muito.

Ficar pertinho é ficar muito perto.

Ficar quietinho é ficar muito quieto.

O diminutivo não ser só pra diminuir, mas pra tornar intenso.

O superlativo ser mais que um grau mais elevado: tornar-se um grau épico.

Na concessionária, há o carro novo, o seminovo e o seminovíssimo.

Em que outro idioma um carro conseguiria ser meio novo – logo, meio velho – (o prefixo latino “semi” quer dizer “metade”), e, ainda assim, novíssimo?

O seminovíssimo é a metade que alcança a plenitude. O meio cheio e meio vazio que transborda.  

Nas imobiliárias, há o imóvel “na quadra da praia”. Isso quer dizer que pelo menos um dos lados da quadra é de frente para o mar.

Um apartamento “na quadra da praia” nunca é de frente para o mar, ou seria “apartamento de frente para o mar”.

Há apartamentos, entretanto, que não chegam a estar cara a cara com o oceano, mas tampouco estão num lugar qualquer. Eles estão na quadríssima.

A quadríssima não é uma quadra como as outras. É “a” quadra – seja isso lá o que for.

Ela pertence à variação linguística falada no Rio de Janeiro.  Não há notícia de quadríssimas em Belo Horizonte – até porque lá seria quarteirãozíssimo, e belo-horizontino algum conseguiria pronunciar isso.

Nos anúncios classificados, oferecem-se os serviços das profissionais do sexo. Há as ninfetas, as ninfetas completas, as ninfetas completinhas e as ninfetas completíssimas.

O que faltará às ninfetas básicas para atingir a completude? Como o diminutivo de intensidade conseguirá completar o já completo? E, uma vez completas e completinhas, qual será o plus, o dom, o dote que as levará ao grau superlativo de “completíssima”?

Tem coisas que só a língua portuguesa faz por você.

Ou só a publicidade, sei lá.

Estante de Livros (Hilda Furacão, de Roberto Drummond)

O AUTOR E A OBRA

Hilda Furacão é um romance escrito por Roberto Drummond, publicado em 1991. O romance foi adaptado para a televisão, em forma de uma minissérie, pela autora de telenovelas Glória Perez, e exibido na Rede Globo, em 1998, obtendo enorme sucesso. A minissérie colaborou para que Hilda Furacão fosse a obra mais famosa de Roberto Drummond, tendo sido vendido 200 mil exemplares. Hilda Furacão foi escrita com rapidez, se comparada às outras obras do autor: 64 dias, enquanto levou anos para escrever outros livros.

O livro foi baseado na história de juventude da prostituta Hilda Maia Valentim, conhecida na zona boêmia de Belo Horizonte, como Hilda Furacão “O feitiço volta-se contra o feiticeiro. Desde que foi lançada a campanha a favor da Cidade das Camélias, a Zona Boêmia é um promontório da alegria. sugere os últimos dias de Pompéia. Tudo lá é encantado. A rua principal, a Guaicurus, conhece noites inesquecíveis. E nunca se viu tanto dinheiro. O vendedor de churrasquinhos triplicou as vendas. No restaurante Bagdá, especialista em comida árabe, é preciso disputar um lugar. As mulheres dos hotéis de primeira, segunda , terceira e quarta categorias jamais foram tão solicitadas. E na noite da última quinta feira, a polícia foi chamada para conter os ânimos dos que disputavam um lugar na fila que vai dar num território mágico: o quarto 304, no terceiro andar do Maravilhoso Hotel onde Hilda Furacão é uma fada sexual.”

O romance Hilda Furacão [1991] tem uma proposta narrativa interessante, bem ao gosto pós moderno. Várias ações transcorrem no texto conferindo uma dinâmica que prende o leitor à narrativa, perseguindo um desfecho que nos é insistentemente prometido.

A história central focaliza a personagem que dá nome ao romance, Hilda Furacão. Entretanto, o lugar de protagonista é disputado pelo narrador que conta a sua história e ao contá-la, conta várias outras histórias, que se entrelaçam formando um tecido de conflitos que vamos conhecendo e com os quais muitas vezes nos identificamos.

Os capítulos se sucedem ao modelo dos folhetins, criando um suspense que buscamos desvendar com a leitura do próximo, sucessivamente. Essa técnica permite que, a cada capítulo, as personagens se revezem e ganhem um destaque na trama. Isto é tão evidente que a obra já foi encaminhada para o teatro pela direção de Marcelo Andrade e ainda ganhou projeção nacional ao se tornar uma grandiosa mini-série homônima, na Rede Globo.

O cenário principal da obra é a capital mineira do final dos anos 50 e início dos anos 60 [lembramos que o autor reside em Belo Horizonte e hoje representa um dos grandes nomes do jornalismo mineiro], mas há que se falar no cenário secundário que é a pacata cidade de Santana dos Ferros.

PERSONAGENS

Roberto = é o alter- ego biográfico do jornalista Roberto Drummond. Jovem comunista e idealista que ama a bela M. Aramel, o belo “nunca houve homem mais belo que Aramel” jovem que almeja o estrelato hollywodiano por sua aparência de galã. Acaba por tornar-se um cafetão a serviço do poderoso Antônio Luciano. Após um desencontro amoroso humilhante vai para os EUA e torna-se gângster

Frei Malthus = o pivô do grande romance julgado pela comunidade como “o santo”, este personagem se apaixonará pela bela Hilda Furacão. O mito da Cinderela é passado ao leitor quando do acidente que deixa o sapato de Hilda sob a posse do frei que tentará fugir do pecado martirizando-se e comendo o seu favorito doce de jabuticaba.

As tias Ciana e Çãozinha = são as representantes [há vários flashes de Santana dos Ferros, interior mineiro] do conservadorismo e liberalismo. São as tias que Roberto trava correspondência constantemente.

Gabriela = A primeira amada de Aramel, que fora contratado pelo traumatizado, gordo e tímido jornalista Emecê para representá-lo no encontro marcado.

Antônio Luciano = representante do poder econômico e político. Sua diversão era deflorar virgens e Aramel era o encarregado de receptá-las.

CENÁRIO / TEMPO / ESPAÇO

Alguns dizem que o romance é bairrista, e não é a verdade , pois o que se apura dessa obra é uma grande homenagem à cidade de Belo Horizonte e tudo que faz dela um grande cenário natural para representar o microcosmo político e social do macrocosmo que era o regime militar em seu tempo cultural e estético.

ESTRUTURA NARRATIVA


É muito presente nos textos de Roberto Drummond um constante diálogo com o leitor. A esse diálogo entre textos do mesmo autor damos o nome de intratextualidade. Outros diálogos intertextuais aparecem ao longo da narrativa, mesclando ditos populares e modinhas ao discurso narrativo. Outro aspecto intertextual que se observa é a construção da intriga entre Hilda Furacão e Frei Malthus desencadeada a partir do sapato que a moça perde e do qual o rapaz se apossa, tal “qual acontece no conto da Gata borralheira ou Cinderela.” Logo na abertura do romance, e nos capítulos que se seguem, Roberto narrador deixa claro que, por toda o texto, vai estar dialogando com o leitor, fazendo- nos presentes no tempo da enunciação -presente da narrativa. Essa é uma técnica bastante usada por nossos escritores, em especial por Machado de Assis. e confere uma dinâmica interessante ao relato, tornando-nos quase cúmplices do escritor.

O estilo do autor causou suspense quanto à real existência de Hilda Furacão. Roberto Drummond misturou personagens reais a imaginários, oferecendo verossimilhança. Contudo, até falecer em 2002, Roberto preferiu não esclarecer o que é realidade e o que é ficção. Segundo ele, se transformou em refém da Hilda Furacão. Dessa forma, a existência de Hilda continua sendo tema de debates entre os leitores e os moradores de Belo Horizonte – cenário onde a trama acontece. Diferentemente de Hilda, o personagem Malthus tem uma explicação: foi inspirado em Frei Betto, grande amigo de Roberto Drummond.

RESUMO

Como já dito anteriormente o romance é muito desfragmentado, pois possui constantes mudanças de enfoques. Para facilitar o nosso trabalho proporemos que se faça duas leituras: uma primeira que almeja desvendar o mistério da garota do maiô dourado [ a Hilda que desfilava sua beleza pelo Minas Tênis e depois tornou-se prostituta]; uma segunda que mistura ficção e realidade histórica brasileira [ditadura militar e censura]; o mais brilhante é que tudo começa e termina no dia 1° de abril que simboliza o dia da mentira eis então a grande proposta ficcional do autor. Roberto começa narrando em 1° pessoa a sua própria condição jovem de comunista e idealista. Pretende ser um grande jornalista e irritadiço por compararem seu sobrenome com o grande poeta Carlos Drummond de Andrade. Pelo que o narrador fala de si e da cidade observamos que o tempo precede os anos de 64 [época do golpe militar]. Nesse interím, o narrador trava correspondência com as tias de Santana dos Ferros Tia Ciana e Çãozinha, que são as interlocutoras do relato. A grande trama da obra verifica-se no encontro entre o santo Frei Malthus e a bela Hilda no qual aquele, ao tentar expurgar o mal da zona boêmia acaba enredado pela paixão que estabelece-se entre ele e Hilda. Roberto é o jornalista que relatará ao leitor como estão acontecendo os fatos na zona boêmia [lembre-se que Malthus, Aramel e Roberto são os três mosqueteiros amigos de infância e desta forma Roberto terá maior possibilidade de levantar dados para o leitor].

Após o desaparecimento do seu sapato, Hilda lança um concurso para que o devolvam então inicia-se um conto de Cinderela às avessas pois Malthus acabará por reconhecer o seu amor pela bela. Contudo o final é triste pois ambos desencontram-se quando da fuga para viverem um grande amor Malthus será preso no primeiro dia de vigência do golpe militar de 64.