segunda-feira, 18 de julho de 2022

Leandro Bertoldo Silva (Apesar do tempo, pai)

– Desculpe, pai, mas desconfio que não lhe obedeci. Nem ao senhor nem à mãe. Lembra aquele dia quando eu tinha 5 anos? Tudo bem, faz muito tempo, mas o senhor há de lembrar. Foi aquele dia que eu vi outras crianças pegando papel na rua e colocando dentro de um saco para levá-lo a um depósito, onde era pesado e o seu peso pago em moedas. Pai do céu! O senhor não imagina como os meus olhos brilharam. Não sei se pela oportunidade de ganhar dinheiro, pois era muito bom quando o moço do depósito nos entregava as moedas, ou pela própria ação de juntar-me às outras crianças no trabalho de vender papéis. Acredito que eram as duas coisas, acrescido de ainda poder levar recursos para casa, afinal eu já estava me tornando um homem!  Lembro-me bem da sensação… “Uau! Ganhar dinheiro é tão fácil e tão gostoso!” O senhor não me reconheceu na rua. Tudo bem, pai, não há nenhum mal nisso. Não tinha mesmo como me reconhecer, eu estava todo sujo. Lembra como foi? O senhor estava a voltar do trabalho quando em uma das inúmeras idas e vindas minhas com o saco às costas cheio de papel a caminhar até o depósito,  passou por mim.

— Oi, pai.

— Oi, filho. Oi, filho?!

– Pois é, naquele momento o senhor me levou embora e junto com a mãe, depois dela ter me dado um banho daqueles, sentaram para conversar comigo. Nossa! Como me lembro dos olhos da minha mãe, olhos de ternura. Os do senhor também. Só não entendi muito bem o sorrisinho que estava junto deles quando eu disse estar trabalhando para ajudar nas despesas da casa. O quê? Eu não disse isso a vocês? Mas eu deveria. Então digo agora, mais de 40 anos depois. Engraçado, eu sempre achei que tinha dito isso… Porque lembro bem o senhor e a mãe — ah, os olhos da minha mãe… —, dizerem que eu não precisava fazer aquilo, que nesse ponto eu era diferente das outras crianças. Diferente como, pai? Porque elas eram pobres e a gente não? Sabe de uma coisa, pai, descobri que na vida existem vários tipos de pobreza e de riqueza, e aquelas crianças eram muito ricas. Puxa vida, como eram ricas em liberdade e alegria. O senhor precisava ver como ficávamos alegres no meio da rua, quando encontrávamos um papelão mais grosso que ia render boas moedas. As risadas, pai… Quanta riqueza naquelas risadas! Mas o senhor tem razão em um ponto… Pai, eu vou te contar um segredo que eu nunca contei para ninguém. Eu fiz uma coisa errada. Senti-me tão mal, pai! Era como se o senhor e a mãe nunca fossem me perdoar. Sabe, essa sensação era muito pior do que pensar no castigo de Deus que falavam nas igrejas. Nesse ponto eu fui mesmo diferente das outras crianças. Sabe o que elas faziam? Elas pegavam uma pedra bem grande e colocavam dentro do saco no meio dos papéis que era para pesar mais na hora da balança. Então… Eu fiz isso também. Mas foi uma tentativa só. Foi muito esquisito. Porque enquanto os meninos riam lá fora eu achava que aquilo não estava certo. Mas eles me chamavam de bobo. Ah, isso não! Aí fui provar que eu não era bobo. Peguei uma pedra bem pesada e coloquei no saco. Ela era tão pesada que foi parar lá no fundo. Bem, o moço do depósito logo achou algo estranho, porque eu mal conseguia carregar o saco. Além disso, eu tremia igual vara verde, e os meus olhos faltavam saltar do rosto de tanto medo. O meu coração batia de um jeito que dava para ver no peito sem camisa. O moço fez uma cara desconfiada, pegou o saco e pôs na balança. Pois é, deu para ouvir um “pléim” bem alto, o barulho da pedra no fundo ao bater no ferro. Que vergonha! Ele pegou a pedra, olhou e disse: “Ah, seu moleque…”. Ser chamado de moleque foi a pior coisa que já me aconteceu na vida. Os meninos tinham razão. Eu fui mesmo muito bobo, mas não por ter colocado a pedra no fundo e não no meio dos papéis, como eles disseram, mas por ter cedido àquela manobra. Não se preocupe, pai, o senhor e a mãe ensinaram direitinho, o erro foi todo meu. Mas valeu. Só não valeu o fato de não ter lhe obedecido, e aí voltamos ao início. Sabe o que é, pai? O tempo passou, não foi? E por mais que eu tenha estudado e formado no almejado curso superior, graças a vocês, com tanto sacrifício, eu queria mesmo era vender papéis. Desculpe, pai, mas aquele menino de 5 anos sempre cresceu dentro de mim. Ou melhor, eu crescia e ele vinha junto. Aí, no lugar do saco fiz uma prensa de madeira e nela colo e costuro papéis transformados em livros, que são pesados em uma balança um tanto diferente daquela de antigamente e enviados pelo Correio às pessoas. Está assim confessada a minha desobediência. Pois é, pai, precisava dizer isso ao senhor. Apesar de tudo, sou um vendedor de papéis. A diferença é que eles são escritos. Só não uso pedras; prefiro a poesia.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 57

"Adondiéque" andam aqueles dias que amanhecem sorrindo, sol radioso, luzeiros de felicidade? Por que as manhãs têm acordado como candeeiros bruxoleantes, não se sabe se vão clarear mais ou ficar na média luz? E os pássaros seguirão a a dormitar nestas auroras sombrias, nuvens densas com sol escondido?

Mesmo que a gente goste da chuva, do vento, da melancolia, bastam dois ou três dias para implorarmos o sol, o azul do céu, a plena luz. Por que esta ansiedade de estarmos às claras, com níveas manhãs e o lume de horas tantas ?

Talvez esteja dentro de nós o clarão, a claridade, a clarividência - faróis que nos fazem enxergar a existência como um mundo de dualidades, de que só nos damos conta quando um lado não existe, e nos faz entender que vivemos sempre no oposto, como antípodas, como contrários, divergentes desde o mundo da intimidade.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Anjos e padres)

Em Minas se diz que cada vez que um casal de namorados fica em silêncio, nasce um anjo – ou morre um padre.

A ser verdade, meus primeiros namoros teriam superpovoado o céu – e dizimado o clero.

Minha primeira namorada se chamava Jane. Estávamos no pré-primário, talvez no primeiro ano. Ela era linda, tinha cabelos lisos,e imagino que tivesse uma voz igualmente lisa e linda, que receio nunca ter ouvido. Eu a namorava sem que ela soubesse, claro.

Contei à minha mãe que estava namorando.  E que Jane nunca ia às aulas às sextas-feiras.

– Vai ver, é bruxa. – disse minha mãe, sem se desviar da costura.

Eu não sabia que havia relação entre bruxas e sextas-feiras. Jane – alva, silenciosa – em nada me lembrava as bruxas dos livros. Soube, depois, que ela apenas viajava com os pais todas as sextas. Por outro lado, descobri, naquele comentário, que minha mãe, com o humor característico da família, talvez não tivesse a menor vocação para ser a sogra mais amigável do planeta.

Zirlene, a namorada seguinte, também nunca soube que fomos namorados por quase um ano.

Estávamos então já na quinta série – sim, fiquei solteiro dos 6 aos 11 anos. Da Zirlene não me lembro de nada além do nome (como esquecer um nome desses?). Posso inventar agora que tinha cabelos cacheados, nariz de batata, que era baixinha. Não há de haver outra Zirlene, então será fácil localizá-la e verificar. Namoramos tempo suficiente para não trocarmos uma palavra, ainda que fôssemos colegas de turma.

Em seguida, ou em paralelo, não sei, houve a primeira Helena. Dessa me lembro bem. Era gorducha, tinha seios igualmente gorduchos – apenas intuídos, mas dobrinha aquilo com certeza não era.  Devo ter uma fotografia dela, numa dessas caixas que me recuso a abrir.  Uma foto de borda serrilhada, autografada no verso, e posso dizer que namorei com a foto, não com ela.

Muito antes do Manuel Carlos, tive a epifania de que minha musa, quando eu me tornasse escritor, se chamaria Helena.  Eu já lera sobre a Marília de Dirceu, a Dulcineia de Dom Quixote, e em qualquer história que eu viesse a escrever – porque eu já sabia que escreveria – minha heroína seria Helena, não como a de Troia, mas como aquela, gorduchinha, de Araguari.

Houve então Dulcineia. Que, claro, nunca tinha ouvido falar em Dom Quixote e deve ter rido muito do garoto desengonçado, magricelo, que um dia, depois de muito ensaio, ousou lhe perguntar se ela tinha lido Cervantes. Não, não tinha. E eu me senti o cavaleiro da triste figura.

Veio então outra Helena, que amei só pelo nome, e porque me parecia impossível não amar alguém que se chamasse Helena. Ou Cecília.

Mas Cecília era nome non grato lá em casa – Cecília era a noiva do meu pai, até ele se encantar por uma Conceição. Se Jane era uma bruxa só por faltar às aulas nas sextas-feiras, imagino que passaria uma Cecília nas mãos da minha mãe.

Tive notícias da Jane décadas mais tarde – casada, uma filha, que não sei se terá herdado seus poderes mágicos. De Zirlene e da primeira Helena, nem fumaça. Dulcineia há de ter encontrado um Sancho Pança – ou um moinho. A segunda Helena eu revi num daqueles shows de 1º de maio, no Riocentro. Veio falar comigo, me apresentou o namorado. Conversamos ali, em cinco minutos, mais que nos dois anos do nosso namoro sem palavras.

Foram namoros sem beijos, sem mãos dadas, sem uma sílaba sequer.  Namoros unilaterais, com aquele silêncio solitário incapaz de fazer brotar anjos e fenecer padres. No máximo provocariam bocejos em coroinhas ou acúmulo de tecido adiposo em querubins.

Se um dia for a Minas, e for à missa, repare no tédio dos coroinhas ao bambolear o incensório. Depois levante os olhos e preste atenção ao ventre dos querubins, às suas coxas roliças, às dobrinhas dos braços, às suas discretas papadas. Veja com que esforço as asinhas os sustentam no ar.  

É tudo obra minha, com a cumplicidade involuntária de Jane, Zirlene, Helena 1, Dulcineia, Helena 2. Só a partir de Maria de Fátima é que entrei no ramo da multiplicação de anjos e extermínio de autoridades eclesiásticas, atividades nas quais sou muito bom até hoje.

domingo, 17 de julho de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 9

 

Milton S. Souza (O canto da sereia)

Contam as lendas antigas que os marinheiros que escutavam o canto das sereias ficavam enfeitiçados pela maravilhosa melodia e terminavam perdendo os seus rumos e até colidindo os seus navios contra as ilhas onde moravam estas adoráveis criaturas. Estes belos seres, metade mulher e metade peixe, causavam as desgraças de tantos, que afundavam as suas embarcações e morriam nas armadilhas escondidas por trás daquele enfeitiçante canto. Verdadeiras ou não, as histórias das sereias aterrorizavam muitos homens do mar, que procuravam desviar das rotas onde, segundo as lendas, moravam as sereias.

No meio do oceano não deve ser difícil desviar de uma ilha onde tememos nos defrontar com perigos desconhecidos. Basta remar para outro lado, mudar a posição das velas ou, simplesmente, virar a roda do leme para outra direção. Acontece, porém, que ninguém consegue desviar do “canto da sereia moderno” dos nossos dias: a publicidade. E, por causa disso, tantas vidas naufragam no mar profundo do consumismo desenfreado. São poucas as pessoas que escapam dos apelos publicitários que invadem nossos olhos e nossos ouvidos desde o nascer do dia até o momento em que vamos dormir para refazer as energias. Antigamente, nossos filhos e netos rezavam: “Com Deus me deito e com Deus me levanto...”. Hoje a oração é outra: “Com a publicidade me deito e com a publicidade me levanto...”. A publicidade – sereia moderna – canta e encanta com suas “melodias” que prometem fama, beleza, riqueza e tantas outras “maravilhas” que todos nós sonhamos sempre conquistar.

As antigas sereias seduziam homens feitos e experimentados. A “sereias” atuais enfeitiçam seres humanos de todas as idades, desde o bebê que está apenas começando a caminhar e falar até o ancião que vegeta numa cama ou cadeiras de rodas. “Compre o talco tal, que perfuma melhor o seu bebê”; “Só o sabonete xis deixa a pele macia e sedosa”; “O melhor celular do mundo tira fotos, acessa a internet e ainda toca as suas músicas preferidas”; “Empréstimos para aposentados: basta apresentar a carteira de identidade e já sai com o dinheiro na mão”; “Crédito fácil para você comprar o que quiser...”. E por aí se vão os cantos das “sereias” que invadem as nossas vidas e nos fazem perder os rumos traçados pelo nosso orçamento pessoal.

Quem precisa de um talco que perfume melhor? Quem garante que aquele sabonete deixa a pele sedosa? Celular é para promover a comunicação ou para servir de máquina fotográfica? E será que a maioria dos empréstimos concedidos para os aposentados servem para melhorar as suas vidas ou apenas para livrar parentes espertos de dívidas que os próprios aposentados terão que pagar com o sacrifício do desconto em folha? Não é nada fácil escapar deste “canto das sereias” moderno. Compramos o que não precisamos. Gastamos fácil o dinheiro que ganhamos com tanta dificuldade. Afundamos em contas e prestações que só conseguiremos pagar através de novos empréstimos e de mais dívidas. Afundamos o nosso barco no seco, sem possibilidade de jogar qualquer âncora que possibilite a nossa salvação. O verbo “gastar” já está gasto de tanto ser usado nos dias atuais. E o pior é que, depois dele, teremos que conjugar o verbo “pagar”, bem mais difícil de ser conjugado no tempo certo…

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 23: Crônica do desapontamento

 DIA DESSES, num desses points de fim de semana, eu estava com um amigo tomando umas cervejas. De repente, a mesa atrás de nós foi ocupada por três jovens. Mais que depressa, tratei de passar os olhos na trinca e confesso, me encantei à primeira olhada com a beldade dos cabelos compridos com algumas mechas vermelhas. Acho que ela percebeu a minha insistência e, para jogar gelo na minha afoiteza, ou qualquer resquício de tentativa de aproximação futura, se sentou de costas para meu total desagrado e irritação.

Marquinho, meu amigo, também se deixou levar pela beleza e a elegância das recém chegadas. Eu não sabia — ele estava de olho exatamente na moça que eu havia escolhido. Indaguei, de chofre, qual das princesas ele teria coragem de “levar um papo” e, para meu espanto, ele apontou a que me deixara de queixo caído. Literalmente os quatro pneus furados:

— Vamos atacar? — disse ele a certa altura.

— Dá um tempo. — observei. — Elas nem sequer tiveram tempo de esquentar lugar.

Rolou mais quatro cervejas. Resolvi “tirar o time de campo”.

— Você me deixa em casa? Amanhã acordo cedo. O trabalho me espera...

Marquinho balançou a cabeça e chamou o garçom para pedir a conta. Dividimos as despesas. Quando o rapazola voltou com o troco, lhe pedi que me fizesse um favor:

— Pois não! Diga o que deseja e terei  prazer em atender.

— Está vendo as três simpatias que chegaram faz bom tempo?

— Sim senhor.

Entreguei a ele um papel de guardanapo com meu nome e o número de telefone celular:

— Faça chegar este bilhetinho às mãos da que está de frente para o balcão de frios. A  beldade de costas para mim... os cabelos avermelhados...

Segui no encalço do meu amigo que já ia longe:

— Aposto que ela não liga. — disse desdenhando enquanto abria o carro. – Vale uma cerveja?

— Tranquilo. Porém, se ela cair na rede, você me deve meia dúzia.

— Fechado.

Uma semana inteira se passou. Nem sinal da garota do rosto atraente, sorriso maroto, cabelos compridos, alguns tufos carmesins, o porte de uma rainha dos contos de Meg Cabot. Contudo, quase um mês depois, deu sinal de vida:

— Alô...

— Pois não?

— Queria falar com o Casinho.

— É ele.

— Sou a Márcia.

— Márcia? Que Márcia?!

— Do barzinho. Você me mandou seu número de telefone pelo garçom.

— Ah! Agora estou lembrado. Você é a gatinha que ficou de costas?

— Ela mesma.

Marcamos um encontro para aquele mesmo final de noite. O lugar escolhido: uma pizzaria que não ficava muito distante de onde nos avistamos pela primeira vez. Para início de conversa, na bucha, depois da pizza regada a refrigerantes, arrisquei fazer um convite indecente. Pedi que viesse ao meu apartamento.

Para meu espanto e satisfação, ela topou. Prometi solenemente que a respeitaria e não tentaria nada que viesse magoá-la. Sentados no sofá da sala, diante da tevê, assistindo a um filme sintonizado ao acaso do controle remoto e bebendo um vinho que guardava para ocasiões especiais, coloquei as mãos em torno de seu rosto e escancarei o coração:

— Quer ser minha namorada?

Ela foi rápida, fria e ao mesmo tempo séria:

— Casinho, procuro um amigo. — disse com um sorriso largo. – Alguém em quem confiar. Preciso falar dos meus problemas. Careço de uma pessoa que tenha a paciência de Jó e me ouça. Para ser sua namorada, de papel passado, me acho muito complicada. Além do que, sou chata, imatura e sem chão. E olha que sequer mencionei ser extremamente maçante. Você não me aguentaria muito tempo... logo me mandaria embora com todas as minhas tralhas e atribulações...

Depois desse papo inaugural em meu apê — liguei para ela umas seis vezes. Se não me falha a memória, deve ter me retornado umas duas, talvez três, as ligações. Foi só. Márcia sumiu na poeira. Desapareceu tão silenciosa como chegou. No pouco tempo em que ficou, deixou no meu peito uma saudade estranha. Uma agonia que não demorou muito atingiu, em cheio, toda a parte fraca da minha carência.

Às vezes, na minha agonia gritante, fico imaginando se ela tivesse concordado com a proposta de namoro, logo no início, e assim, sem mais nem menos, topasse comigo em redor de um copo de cerveja colocando um anel de compromisso em seu dedo. Com certeza, hoje estaria sentindo mais forte a dor do chute no traseiro, virado quem sabe, às avessas, perdido num certo éter de um círculo do nada, sendo premido, massacrado por estiletes me cortando impiedosamente os pulsos, ou por outra, apunhalado por fantasmas iracundos e desintegrados de algum tipo de essência.

De certo, de palpável, de conciso, a Márcia passou pela minha vida como um cometa. Um sonho gostoso e bom, uma quimera que durou apenas o tempo de uma pizza e, logo depois, de um copo de vinho gelado. Márcia, pequena luz concêntrica, esperança que brilhou dentro de mim, de maneira muito forte e abundante. Da sua voz restou o desprovido de conteúdo. Da sua presença adocicada, o adeus sem regresso. Permaneceu também a imensidão dos carinhos e afagos, dos beijos e abraços que deixaram de ser permutados.

Em meu ser, em cada batida do coração, algo indescritível segue me atiçando ao amplexo do tempo, como se a minha vida tentasse se manter viva dentro de uma bolha. De tudo, ficou, a lembrança daquela menina tímida que me virou as costas. Persistiu a mágoa dolorida, perseverou o descaso, teimou a insensatez, porfiou o vazio incomensurável de um adeus pesado e sem volta.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 16 de julho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 10

 

Samuel de Costa (A unção (Os Anjos Caem Primeiro))

— São só vinte quilômetros meu amigo! — disse a figura ao volante.

— Que bom! — respondeu de imediato o passageiro, não escondendo o mau humor, pois ele não gostava muito das cidades grandes. Achava-as barulhentas, congestionadas e distantes, ao contrário das cidades pequenas, que para ele eram, as ideais de se viver. E o fato de estar ali era um calvário e um alívio ao mesmo tempo. Há muito queria que aquilo acabasse logo, e mil coisas passavam pela cabeça a esta altura. Mas tinha decidido ir até o fim com a coisa toda e de uma vez por todas. O fato dele ser pastor de profissão e, acima de tudo, por fé, e ter que lidar todos os dias, com a ideia do pecado de si mesmo, e das outras pessoas, não alterava o fato em nada para ele.

Uma simples olhada do motorista de táxi pelo retrovisor, foi o bastante para acabar com a agonia iniciada quando ele saiu do hotel e embarcou naquele veículo de aluguel. O olhar do chofer de praça denunciava a ambos.

— Posso fazer uma pergunta? O que o senhor veio fazer aqui na capital? — pergunta afinal o taxista, com seu sotaque inconfundível do norte do país.

— Vim procurar um pouco de diversão meu amigo, só um pouquinho e mais nada! —  e ambos deram risadas juntos durante um certo tempo. Daí para parar em um motel de quinta categoria em uma parte suspeita da cidade foi um pulo e tudo estava indo como ele bem imaginava que seria. Tudo muito rápido e também impessoal.

A garota com a descrição que ele pedira estava lá esperando-o no quarto. Ao bater com força na porta da pocilga três vezes, como o instruíram e a mesma se abrir, lá estava ela, como ele bem imaginava que seria, linda, cálida, decadente e toda sorridente como um anjo que perdeu as asas.

— Vim te buscar, filha, vamos voltar para casa! Tua mãe te espera...   

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 68, 69 e 70


COLEGUISMO


Dois assaltantes assaltaram-se mutuamente e foram separados por um terceiro assaltante, que exigiu deles o produto dos dois assaltos. Como eram dois contra um, acabaram subjugando o terceiro e reclamaram não só a devolução do que lhe haviam cedido como ainda o que ele já trazia no bolso.

Foram atendidos, mas continuou a pendência, pois o assaltante no 1 queria de volta o que perdera e o que ganhara, o no 2 pretendia o mesmo, e o no 3 tentou acalmá-los, ao mesmo tempo que pleiteava a devolução do seu e mais cinquenta por cento do que pertencia a cada. Esclareceu que, desistindo do total, contribuía para a união e harmonia da classe.

Os outros não se mostraram persuadidos e, à falta de tribunal especializado que dirimisse a questão, acordaram em submetê-la ao julgamento de um passante que, pelo aspecto, merecesse fé. O senhor bem vestido, de roupa escura, que se aproximou e ouviu a exposição do caso, abanou a cabeça lamentando:

— Não posso decidir contra colegas. Também sou assaltante.

E deu no pé, antes que os três lhe reclamassem o dele.
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DESTA ÁGUA NÃO BEBERÁS

— Por que Demétrio não se casa? Era indagação geral. Demétrio namorava, noivava, não casava. Sete dias antes do casamento, olha aí Demétrio fugindo. As versões eram múltiplas. A noiva é que o despedira. Tiveram uma briga feia. Gênios incompatíveis. Mal secreto. Intrigas.

Demétrio continuava a namorar, noivar e não casar. Não lhe faltavam noivas, pois era agradável, tinha status. Quanto mais se desmanchavam os projetos de casamento, mais apareciam mulheres dispostas ao desafio, exclamando:

— A mim ele não deixa na porta do mosteiro de São Bento.

Deixava. E quanto mais deixava, mais seu prestígio crescia. Concluiu-se que era sua maneira de afirmar-se.

Então Livaniuska decidiu enfrentá-lo. Noivou com ele e, uma semana antes do casamento, deu-lhe um fora solene. Demétrio quis reagir, explicou à repórter social que ele é que tomara a iniciativa, mas a mentira foi patente. Livaniuska foi contratada como atriz por uma emissora de tv e ficou célebre.

Daí por diante ela repetiu a carreira de Demétrio, noivando e desmanchando com inúmeros cavalheiros. No fim de cinco anos, Livaniuska e Demétrio casaram-se para sempre, como era fácil de prever, mas ninguém previu.
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DIÁLOGO DAS NOTAS

A nota de cinco mil cruzeiros estava preocupada. Anunciaram para breve a sua entrada em circulação, e já passavam muitos sóis sem que a retirassem do almoxarifado. No almoxarifado, chega-lhe o zum-zum de que continuamente as coisas sobem de preço e as notas baixam de valor.

Embora os algarismos continuem os mesmos, cada dia significam uma realidade menor. Quando chegar minha vez de andar por aí — receia a nota de cinco mil — quanto valerão meus cinco mil?

Ao ser desenhada, sentira-se toda garbosa, cheia de minhocas na cabeça. Iria suplantar as coleguinhas, dando a vera ideia de grandeza. Mas até agora nada, e a nota inquieta-se:

— Quando vejo o cruzeiro metálico passar do tamanho de medalha de chocolate ao de botão de manga de camisa (e amanhã ele chegará talvez a semente de tangerina), sinto que meu futuro não será nada fagueiro. Vão-me reduzir às proporções de ficha de ônibus, feita de papel, e servirei para pagar a passagem de um coletivo circular. No máximo.

Estava nessa tristeza quando lhe apareceu, ainda em forma de neblina futura, o projeto da nota de cinco milhões, com efígie de cabeça para baixo, e sussurrou-lhe:

— Maninha, depois de mim virá a cédula de cinco trilhões, e assim sucessivamente, pois infinito é o número dos números. Até que um dia o homem se cansará de escrever no papel grandezas que são insignificâncias, e passará a escrever insignificâncias que valham grandezas. Já pressinto no horizonte maravilhosa nota zero, que nos resumirá a todas e alcançará o máximo valor metafísico.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 13: Conspiração

 

Filemon Martins (Questão de valores morais)

Não sei se por formação no lar ou se o indivíduo já nasce com aquele instinto que o faz pensar ser superior aos outros. Muitas pessoas nascem em berço de ouro e no decorrer da vida têm uma educação esmerada, fazem Cursos Superiores, pós-graduação nisto ou naquilo, mas profissionalmente se tornam arrogantes e prepotentes.

O contrário também é verdadeiro: o indivíduo faz inúmeros Cursos Superiores, adquire muito conhecimento, possui uma cultura exemplar, torna-se rico, mas se mantém entre os mortais, detesta bajulação e se relaciona normalmente.

Quando na ativa, em todos os locais em que trabalhei sempre havia um ou vários autoritários e arrogantes. Imaginavam-se insubstituíveis, donos da verdade, mestres em tudo e queriam, por força, mandar em todos. Tornavam-se uns gravatinhas, como eu costumava chamá-los. Vez por outra nos enfrentávamos em embates de trabalho quanto a Organização e Métodos (OM) ou mesmo quanto à eficácia do trabalho,

No cotidiano da vida são pessoas que valorizam a aparência, o externo, a roupa, o sapato, o carro, a casa, sem enxergarem o principal que todos nós carregamos no coração. Andam pelas ruas de nariz empinado, falam bonito, de peito estufado e são capazes de pisar em qualquer pessoa descuidada que, por infelicidade, cruzem seus caminhos. Nós, pobres mortais, somos classificados como aquele antigo sabonete "VALE QUANTO PESA". Se temos uma casa, valemos a casa; se temos um carro, valemos o carro; se nada possuímos, não valemos nada.

Em minha existência, conheci muitas pessoas soberbas, vazias e arrogantes, mas pelo menos duas foram inesquecíveis. Ambas trabalhavam na Empresa Folha da Manhã S/A. A primeira pessoa trabalhava bem próximo de nós e fora conduzido ao cargo pelo famoso QI (quem indica). Era uma espécie de Assessor Especial que fazia o elo entre o setor de cobrança e figuras importantes, ator, atrizes, empresários que preferiam pagar suas assinaturas direto no jornal FOLHA DE S. PAULO, Para isso, trabalhava numa sala mais sofisticada com café, chá e bolachinhas, onde recebia essas pessoas ilustres, como Raul Cortez, Décio Piccinini, Wagner Montes, Moacyr Franco, entre outros. Quando necessário, ele solicitava ao setor de cobrança a emissão de um recibo com o valor, com o qual era possível receber em dinheiro ou cheque, conforme a preferência do pagante. Dias depois prestava conta ao setor responsável pela cobrança para depositar em banco e a consequente quitação do débito. O que ele não sabia é que nosso gerente de cobranças havia criado um setor de nome Centro de Controle, de tal forma que todo recibo ou fatura emitida na empresa deveria conter uma cópia a mais para o Centro de Controle. Por sua vez todo o pagamento recebido, após depositado em banco, obrigatoriamente seria comunicado ao setor de Controle com documentos comprobatórios dos valores pagos. Ocorre que com o passar do tempo, havia várias cópias de recibos de assinaturas pendentes, todos solicitados pelo nosso Assessor Especial. Ora, se o assinante esteve na empresa pessoalmente pagando sua assinatura, alguma coisa estranha estava acontecendo. Foi aí que o chefe do setor pegou as cópias desses recibos em aberto e comunicou ao gerente, que por sua vez, teve que chamar o gravatinha para dar explicações. Dessa vez nem o QI o salvou. Foi dispensado da empresa por ter-se apropriado do dinheiro ilicitamente.

O outro caso foi quando o jornal O Estado de São Paulo resolveu fazer uma campanha para angariar mais assinantes e lançou pela televisão uma propaganda informando que quem fizesse assinatura do jornal o receberia em 12h. Um diretor da Folha ao tomar conhecimento da promessa de O Estado, sentenciou: -"se o Estadão entrega o jornal em 12h, nós vamos entregar em 6h". Com sua prepotência aguçada, esqueceu-se de consultar o Departamento de Entregas e setores envolvidos se era viável tal entrega e se a estrutura existente suportaria tamanha demanda. O setor de vendas deitou e rolou. Foi um sucesso total de vendas. Quando o assinante percebeu que as 6h prometidas eram 72h ou mais, choveu telefonemas cancelando os pedidos.

O assinante dizia: - "Estou há 3 dias esperando a entrega do meu jornal. Não Imaginava que as 6h da Folha fossem mais de 72h". Assim, a confusão se formou. Quem vendeu a assinatura queria receber a comissão, e a empresa não queria pagar o percentual devido por uma venda não efetivada, por culpa de um diretor arrogante.

Não sei que fim levou esse diretor da empresa por atitude tão precipitada. Mas sei que a empresa teve prejuízos não só econômicos, mas também morais, por propaganda enganosa.

Muitas pessoas se deixam levar pela possibilidade de dinheiro fácil, é o que constatamos diariamente nos corredores dos negócios, especialmente entre os políticos e empresários.

Muito bem escreveu minha amiga trovadora Vanda Fagundes Queiroz;
"ÀS VEZES TENHO CISMADO
QUE, AO INVÉS DE CORAÇÃO,
MUITA GENTE TRAZ GUARDADO
DENTRO DO PEITO, UM CIFRÃO".  

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (A Fonte do Itororó)

Comecemos por esta relíquia histórica, bastante querida do povo santista:

"Eu fui no Itororó
beber água e não achei...
Achei bela morena,
que no Itororó deixei.


Ó Mariazinha! Ó Mariazinha..." etc

Variante:

"Eu fui no (I)Tororó
beber água, não achei.
Achei bela morena
e com ela me casei."


Eis duas estrofes da modinha bastante popular, que cada um altera a seu modo, e que pertencem ao poemeto referente à famosa Fonte do Itororó, ao pé do Monte Serrat, conhecida de norte a sul do Brasil, embora muitos não saibam ao certo onde está localizada como demonstra a surpresa do "Príncipe dos Trovadores do Brasil", Luiz Otávio, que, ao dar com a Fonte num dos escaninhos da cidade de Santos, exclamou: - "Esta é a famosa Fonte do Itororó?!! - Vocês, santistas, têm uma das maiores relíquias folclóricas do país!". Tão entusiasmado ficou, que partiu para pesquisas, pois pretendia escrever algo a respeito dessa relíquia, embora viesse a falecer pouco depois, sem cumprir o que a si mesmo prometera.

Entretanto, a origem desta fonte é contestada por nossos irmãos baianos, que reivindicam sua propriedade, já que têm, em Salvador, o Dique do Itororó, hoje restaurado e embelezado pela arte de Burle Marx.

Entretanto, Luiz Otávio resguardava em suas anotações, o que, repetimos, em sua memória: - "Ver: - Diário Oficial do Município de Santos, de 26 de maio de 1970, n. 96 pg. 27, página que conta a História da Fonte do Itororó, em Santos, ilustrada por uma foto da mesma. Traz um soneto de Antonio Carlos Ribeiro Machado de Andrada (faltando os dois primeiros versos do último terceto) de exaltação à fonte". A nota ainda explica: - "Sua importância vem do início da Povoação de Santos, desde o tempo da sesmaria de Paschoal Fernandes e Domingos Pires. E certo que, desde 1540, abastecia aos moradores colonos que aportavam em Enguaguassú".

"Paschoal Fernandes vendeu a sesmaria a Domingos Pires e a Brás Cubas, este último considerado fundador de Santos".

(Publicação esta confirmada pelo historiador Sérgio Willians, do Arquivo e Memória). Sem entrar no mérito da contestação, vejamos o que diz a respeito o saudoso jornalista-historiador Olao Rodrigues, que descreve a Fonte do Itororó santista em sua Cartilha da História de Santos, vinda a público em 1980, ou seja, um ano antes do seu falecimento. Diz ele:

"A Fonte do Itororó é uma das mais ricas tradições desta terra, situada em Santos, no sopé do Monte Serrat. Servida por água límpida, cristalina, que brotava da rocha a meio caminho do lendário morro, muita gente para lá acorria para saborear o bom líquido, com, ou sem sede, pois dizia-se que, quem dessa água bebesse, não mais deixaria a cidade".

"A lenda pegou. Fez fama!" - finaliza o jornalista.

Aliás, tornamos a repetir, este atributo já vem de longe. Há várias fontes que dele se beneficiam em lugares diferentes Já citados. Em Barcelona, mais uma delas goza deste privilégio, a famosa Rambla, com várias bicas, chamada "La Rambla del Cavalete", à qual também é atribuída a mesma propriedade de trazer de volta quem beba um gole da sua água.

Certo é que, muita gente, após ter provado a água da fonte santista, acabou ficando por aqui mesmo, por este ou por outro qualquer motivo. Itororó lembra o nome do riacho que atravessava as ruas do Rosário e XV de Novembro, cantante e ligeiro, ansioso por ser mar.

Pena ver, com o passar do tempo, que a chamada Fonte do Itororó perdeu aos poucos sua função mais nobre. As águas da nascente, também aproveitadas para uso doméstico, lavagem de roupas, etc., alcançaram tal nível de contaminação que, a principal função, a de saciar a sede, acabou sendo interrompida por lei, em 1930. A bica secou e a própria nascente, aos poucos, acabou também por desaparecer.

Contudo, a força da tradição santista não permitiu que a existência da Fonte do Itororó ficasse esquecida, ou, tão somente, virasse lenda. Por volta do ano 2000, foi ela "restaurada pela Prefeitura, com muito critério, sob a rigorosa supervisão do Condepasa, recebendo pintura, verde e branco, de acordo com a original, e também azulejos absolutamente iguais aos da época, ostentando figuras da mitologia grega - as mesmas da fonte original". O piso asfaltado, fugido aos padrões, foi substituído por paralelepípedos e a fonte recuperou o primitivo aspecto.

O Indicador Turístico, lançado no Brasil, em 1885, já citava a Fonte do Itororó e, também, o seu dom - "de fixar na cidade quem suas águas sorvesse".

Ao ensejo, deixamos aqui um apelo de paz:

- Que as relevantes e históricas cidades. Santos e Salvador, de modo bastante fraterno, concedam dividir entre si as honras de terem dado à Nação duas Fontes Xarás, sem que seus egos se estranhem. Afinal, por que não?! Tudo é Brasil!... E, se a proposta historicamente permanecer questionável, que seja relevada a ousadia, muitíssimo bem intencionada, desta santista que se arrisca a propô-la em nome de uma fraterna e desejável paz!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 9

 

Carlos Leite Ribeiro (Nomes que nos marcam numa época...)

Há nomes que nos marcam para sempre, principalmente, quando se referem à nossa juventude. Para mim, o nome Nandinha, traz-me recordações da minha meninice.

Teria uns dez anos, morava num rés-do-chão de um prédio da Pascoal de Melo (Estefânia – Lisboa), e no último andar, por sinal o 5º, morava a Nandinha, uma moça que na altura teria uns 16 ou 17 anos. A mãe da moça, de nome Senira, viúva de um obscuro subchefe de uma repartição, era uma figura muito castiça: Muito magra, não muito alta, sempre vestida de preto e, fosse em que estação fosse, andava sempre de sombrinha. Quando aqui em Portugal passou a telenovela “Tieta do Agreste” (que eu parodiei para a radiodifusão), logo me lembrei da D. Senira, que a vi retratada na “Charifú” desta novela.

A Nandinha era filha única e sua mãe a defendia de todos e quaisquer “Moinhos de Vento”. Se a moça lhe ia fazer algum recado, logo a mãe se empoleirava na varanda começando logo a berrar assim que ela saía do prédio: “Nandinhaaaaa! Não te demores, olha que eu estou aqui à tua espera!” ; ou “Nandinhaaaaaa! Estás a demorar muito! Que estás para aí a fazer?”.

Se nas traseiras da casa, a moça estava a estender a roupa na varanda, lá estava sua mãe ralhando comigo: “Olha lá, menino, estás a olhar para as pernas da Nandinha... etc ...”.

Recordo-me um vez minha tia dizer em voz alta para ela ouvir bem: “Carlitos, não olhes para cima! Podes estar a cobiçar umas pernas que não valem nada ...”. Claro que a opinião era de minha tia, porque a minha, embora não me recorde bem, talvez fosse uma “bela panorâmica”!

Mas voltando à Nandinha, andava num colégio de feiras, onde a mamãe a ia levar e trazer. Recordo-me de um carnaval no Clube Estefânia, em que a D. Senira quando notava (?) que o par da filha a estava a agarrar “demais”, se levantava e o ia afastar do corpo da filha. De tantas vezes que repetiu, que se tornou um escândalo hilariante. Nessa altura, um D. Juan da época, virou-se para a D. Senira, perguntando-lhe: “Olhe lá minha senhora, é católica?”. A senhora olhando-o de frente, replicou-lhe: “Sou sim, seu desavergonhado!” Então o “malandreco” respondeu-lhe perante a hilaridade de todos : “Então vá com Deus e deixe sossegada a sua filha!”.

Era assim a vida da Nandinha...

Meses depois, a pequena, não se sabendo muito bem porquê, apareceu grávida. É verdade! Já na gravidez avançada, tanto a mãe como ela, juravam a pés juntos que não sabiam com “aquilo tinha acontecido”. Algumas vizinhas, daquelas mais aconselhadas, aconselharam a D. Senira a ir a uma senhora de grande virtude, que morava na Horta das Tripas (Casal de Santa Luzia – Rua D. Estefânia) para que ela expulsasse o “Mafarrico” do corpo da moça, porque tal só podia ter sido “obra do diabo”. Outras menos “cultas” diziam que tinha era sido “obra e graça do Espírito Santo”... Fosse como fosse nasceu um bebê que teve como nome Francisco (o Chiquinho).

Muito mais tarde, já a D. Senira tinha entregado a alma a Deus e o corpo à terra fria, a Nandinha confessou que “talvez fosse obra de um ajudante de limpa-chaminés”. Na altura, existiam em Lisboa os “limpa-chaminés” que subiam aos telhados, punham uma corda muito comprida dentro das chaminés e tiravam a “ferrugem”; pelo menos faziam muito lixo. Normalmente quem tinha a chave da porta que dava para o telhado era o locatário do último andar. Assim, um dia, a Nandinha foi abrir a porta ao ajudante de limpa-chaminés, enquanto o mestre ficava junto às chaminés das cozinhas, segurando a corda, o ajudante abanava-a no telhado.

Ainda segundo o relato da Nandinha “foi tudo muito rápido”. Nós podemos acrescentar: Rápido e Eficiente! Ficamos sem saber se teria sido no abrir da porta, ou, ao abanar da corda. Mas isso também não interessa.

Claro que a moça teve depois vários namorados. Enquanto esperavam pela dama, havia sempre um “malandreco” a avisá-lo: “Não cuspas para cima que ela pode engravidar...”.

E assim, o nome de Nandinha, ficou sempre gravado na minha memória…

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Luís Fernando Veríssimo (A aliança)

Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim.

Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro. Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

— Você não sabe o que me aconteceu!

— O quê?

— Uma coisa incrível.

— O quê?

— Contando ninguém acredita.

— Conta!

— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

— Não.

— Olhe.

E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

— O que aconteceu?

E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

— Que coisa. — diria a mulher, calmamente.

— Não é difícil de acreditar?

— Não. É perfeitamente possível.

— Pois é. Eu...

— SEU CRETINO!

— Meu bem...

— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

— Mas, meu bem...

— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!

E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações.

Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito transito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

— Que fim levou a sua aliança?

E ele disse:

— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta.

Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

— O mais importante é que você não mentiu pra mim.

E foi tratar do jantar.

Fonte:
Luís Fernando Veríssimo. As mentiras que os homens contam. Publicado em 2000.

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Água de pés)

Há muito tempo, em todas as casas do campo as pessoas lavavam os pés, tal como fazem hoje, depois jogavam a água fora, porque não se podia deixar água suja dentro de casa durante a noite. Os mais velhos sempre diziam que algo de ruim entraria na casa se a água usada para lavar os pés fosse mantida em seu interior. Sempre diziam também que ao jogar a água era preciso gritar "Cuidado!" para evitar que almas ou espíritos ficassem no caminho. Mas isso não é coisa daqui nem de agora, e tenho que continuar a minha história.

Há muito tempo, uma viúva morava a leste do condado Limerick, num lugar ermo. Uma noite, quando ela e a filha foram dormir, esqueceram-se de jogar fora a água dos pés. Pouco depois de terem se deitado, ouviram bater à porta e uma voz que dizia: "Chave, deixe-nos entrar!".

Bem, a viúva não disse nada, e a filha também ficou de bico fechado.

"Chave, deixe-nos entrar", a voz repetiu e tchan! — dessa vez a chave falou em voz alta: "Não posso deixá-los entrar, e estou amarrada à coluna da cama da velha senhora".

"Água de pés, deixe-nos entrar", a voz disse, e então a tina com a água de pés se partiu, a água se espalhou pela cozinha, a porta se abriu e entraram três homens com sacolas cheias de lã e três mulheres com rocas.

Sentaram-se ao pé do fogão. Os homens tiravam toneladas de lã das sacolas, as pequenas mulheres a fiavam, e os homens punham o fio nas sacolas. Isso continuou por algumas horas, e a viúva e a filha estavam à beira da loucura de tanto medo. Mas ainda restava um pouco de juízo à jovem.

Lembrando-se de que havia uma vidente não muito longe dali, ela foi do quarto para a cozinha e pegou um balde. "Vocês vão tomar um gole de chá depois de todo esse trabalho", ela disse na maior cara-de-pau, e saiu porta afora.

Eles não a ajudaram nem a impediram de sair.

Lá foi ela à casa da vidente e lhe contou sua história. "É um caso complicado, e ainda bem que você me procurou", a vidente disse, "pois você ia ter que andar muito para achar alguém que as salvasse deles. Eles não são deste mundo, mas sei de onde são. E eis o que você precisa fazer." E ela explicou à jovem o que deveria fazer.

A jovem tomou o caminho de volta, encheu o balde na fonte e entrou em casa novamente. Ao se aproximar da escada, ela jogou o balde no chão fazendo o maior barulho e gritou o mais alto que pôde: "Sliabh na mBan* está toda em chamas!".

Ouvindo isso, os homens e mulheres estranhos se puseram a correr rumo ao leste, em direção à montanha.

Sem perder tempo, a jovem jogou fora a tina quebrada, aferrolhou a porta e colocou a tranca. E ela e a mãe voltaram para a cama.

Não demorou muito, e elas mais uma vez ouviram passos no terreiro, e a voz lá fora gritando: "Chave, deixe-nos entrar!". E a chave respondeu: "Não posso deixá-los entrar. Já não lhes disse que estou amarrada à coluna da cama da velha senhora?". "Água de pés, deixe-nos entrar!", a voz disse.

"Como poderia", a água de pés disse. "Estou aqui no chão embaixo dos pés de vocês!"

E, por mais que gritassem e se esgoelassem cheios de raiva, não conseguiram entrar na casa. Tudo em vão. Não podiam entrar, pois a água de pés tinha sido jogada fora.

E lhes digo que se passou muito tempo antes que a viúva e sua filha esquecessem de jogar fora a água dos pés e de limpar a casa direitinho antes de dormir.
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* Sliabh na mBan (ou Slievenamon) é uma montanha com uma altura de 721 metros em County Tipperary, Irlanda. Nasce de uma planície que inclui as cidades de Fethard, Clonmel e Carrick-on-Suir. A montanha é rica em folclore e está associada a Fionn mac Cumhaill. (wikipedia)
Fonte:
Angela Carter. 103 contos de fadas. Publicado originalmente em 1990.

Jaqueline Machado (A Luz de Tieta)

Era uma vez uma cidadezinha localizada no ventre da Bahia, chamada Santana do Agreste, e sua mais célebre filha. A bela e sensual pastora de ovelhas, Maria Antonieta – vulgo TIETA. Seu pai, o mesquinho Zé Esteves, ao descobrir através da invejosa Perpétua, sua filha mais velha, que Tieta, muito liberada e dona de si, não era mais virgem, expulsa a jovem pastora de casa e a espanca em praça pública.
 
Sentindo-se profundamente humilhada e sozinha, pois na praça ninguém parte em sua defesa, Tieta sai sem rumo, prometendo, a si mesma, um dia retornar rica e poderosa para calar a boca de todos aqueles hipócritas que a condenaram quando ela mais precisou de socorro.
 
E comprovando o poder de seus desejos, vinte e cinco anos depois, ela retorna se apresentando como viúva de um importante comendador.

Rica, ainda mais bonita e sensual. Volta em triunfo ao vilarejo. Com dinheiro e influência política, ajuda a família, que por interesses financeiros passa a tratá-la com deferência, Perpétua, a irmã traidora do passado é a que mais lhe presta bajulações.

Tieta também promove benefícios à comunidade que estava estagnada no tempo. Entre os benefícios estava a luz elétrica. Era a luz de Tieta a iluminar a pacata cidade.

A tal luz citada na composição de Caetano Veloso que assim diz:

“Toda a noite é a mesma noite
A vida é tão estreita
Nada de novo ao luar
Todo mundo quer saber
Com quem você se deita
Nada pode prosperar
É domingo, é fevereiro
É sete de setembro
Futebol e carnaval
Nada muda, é tudo escuro
E até onde eu me lembro
Uma dor que é sempre igual
Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você de mim
Que grita para quem quiser ouvir
Quando canta assim
 Eta, Eta, Eta, Eta
É a Lua, é o Sol é a luz de Tieta
Eta, Eta“


Tieta do Agreste, livro publicado em 1977, pelo amadíssimo Jorge Amado, é uma obra que retrata o povo brasileiro, é um verdadeiro patrimônio cultural do nosso país que virou novela, filme e letra de música. O best - seller, também é, sem sombras de dúvidas, um retrato que revela de maneira nua e crua o rosto lavado da hipocrisia da sociedade de ontem e de hoje. Sociedade essa, infeliz e julgadora. Que foi capaz de torcer o nariz, zombar e apedrejar uma jovem pelo fato de não ser mais virgem, e depois, como se nada tivesse acontecido, aceitar  dinheiro das mãos da vítima, que por sua intolerância um dia foi expulsa da terra onde nasceu.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Versejando 116

 

Leon Eliachar (O jantar)

Vejam que situação. Um jantar com lugares marcados, todos sentados, e foi logo nascer um furúnculo no Amadeu, justamente no lugar onde o impedia de sentar. Sujeito com furúnculo só deve aceitar convite pra jantar americano. Lugar marcado é fogo, nunca se sabe se daqui até lá vai nascer um furúnculo. É contra a etiqueta desmarcar em cima da hora um convite que já foi confirmado há quase uma semana.

Amadeu não teve outro jeito senão ir. Pegou a mulher pelo braço, entrou no táxi:

— Ui!

— Que foi, Amadeu?

— Nada, não.

— Ah.

Na porta, ela ajudou-o a descer, o que já foi chato. Os dois eram metidos a respeitar os pequenos detalhes que tornam mais insuportável o convívio social. A bíblia de ambos era o livro de Amy Vanderbilt, e só cometiam gafes quando nenhum dos presentes sabia qual o certo e qual o errado, muito embora eles sempre estivessem certos.

— Vai você na frente, Amadeu. – Ele ia.

— Desse lado, não, Amadeu. O cavalheiro deve ficar desse lado.

— Mas desse eu não posso, meu bem.

Lá em cima, emendaram os sorrisos num só. Tinham o apelido de “casal simpatia”, tal a força que faziam pra serem simpáticos. Muitas vezes, sua simpatia hostilizava aos menos íntimos. Dona Violeta os recebeu de braços abertos, dentro do seu imenso decote. Estava chiquérrima:

— Quero lhes apresentar o conde e a condessa,

— Prazer.

— Ui!

Amadeu não podia se curvar pra beijar a mão das senhoras.

— Ui!

Se evitasse, era pior, porque sua mulher lhe dava discretamente uma joelhada bem em cima do furúnculo.

— Aaaaaaaaaaaaaaai!

Pior foi depois, na hora do jantar. Estavam todos à mesa e o lugar do Amadeu vazio.

— Você não vem, Amadeu? — insistia dona Violeta.

— Vou já. Um minutinho só, que vou lavar as mãos.

Começaram a pilheriar com ele, surgiram as brincadeiras maliciosas, alguns chegaram a bater com os talheres no prato, como nos filmes de penitenciária. E o Amadeu, nada. O garçom já estava ficando impaciente, e quando um garçom de casa de família fica impaciente, imaginem a própria família. A mulher do Amadeu já não aguentava mais de vergonha, levantou-se furiosa e foi diretamente ao banheiro:

— Amadeu, você vai ou não sair daí de dentro?

Silêncio.

— Como é, Amadeu, está todo mundo esperando por você!

Silêncio.

— Amadeu! Ó Amadeu! Responda, pelo amor de Deus.

Sua mulher já estava em pânico, quando os convidados levantaram da mesa e foram ao seu encontro. Alguém sugeriu:

— Acho melhor arrombar a porta.

Foi o que fizeram. A torneira do lavatório estava aberta, havia um chumaço de algodão no chão. Só não encontraram o Amadeu, que havia escapulido pela janelinha. O vexame foi tão grande que ninguém entendeu nada, voltaram todos mudos para a mesa e dona Violeta mandou servir o jantar. Só que agora havia dois lugares vazios.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLIII

HOJE, NESTE ÓCIO INCERTO

 
Hoje, neste ócio incerto
Sem prazer nem razão ,
Como a um túmulo aberto
Fecho meu coração.

Na inútil consciência
De ser inútil tudo,
Fecho-o, contra a violência
Do mundo duro e rudo.

Mas que mal sofre um morto?
Contra que defendê-lo?
Fecho-o, em fechá-lo absorto,
E sem querer sabê-lo.
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HOJE 'STOU TRISTE, 'STOU TRISTE
 
Hoje 'stou triste, 'stou triste.
'Starei alegre amanhã...
O que se sente consiste
Sempre em qualquer coisa vã.

Ou chuva, ou sol, ou preguiça...
Tudo influi, tudo transforma...
A alma não tem justiça,
A sensação não tem forma.

Uma verdade por dia...
Um mundo por sensação...
'Stou triste. A tarde está fria.
Amanhã, sol e razão.
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INCIDENTE
 
Dói-me no coração  
Uma dor que me envergonha...
Quê! Esta alma que sonha
Âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena coisa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
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JÁ NÃO VIVI EM VÃO
 
Já não vivi em vão
Já escrevi bem
Uma canção.

A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?

Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.
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JÁ OUVI DOZE VEZES DAR A HORA
 
Já ouvi doze vezes dar a hora
No relógio que diz que é meio dia
A toda a gente que aqui mora.
(O comentário é do Camões agora:)
«Tanto que espera! Tanto que confia!»
Como o nosso Camões, qualquer podia
Ter dito aquilo, até outrora.

E ainda é uma grande coisa a ironia.
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LADRAM UNS CÃES A DISTÂNCIA
 
Ladram uns cães a distância
Cai uma tarde qualquer,
Do campo vem a fragrância
De campo, e eu deixo de ver.

Um sonho meio sonhado,
Em que o campo transparece,
Está em mim, está a meu lado,
Ora me lembra ou me esquece,
 
E assim neste ócio profundo
Sem males vistos ou bens,
Sinto que todo este mundo
É um largo onde ladram cães.
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LÁ FORA ONDE ÁRVORES SÃO
 
Lá fora onde árvores são
O que se mexe a parar
Não vejo nada senão,
Depois das árvores, o mar.

É azul intensamente,
Salpicado de luzir,
E tem na onda indolente
Um suspirar de dormir.

Mas nem durmo eu nem o mar,
Ambos nós, no dia brando,
E ele sossega a avançar
E eu não penso e estou pensando.
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LÂMPADA DESERTA
 
Lâmpada deserta,
No átrio sossegado.
Há sombra desperta
Onde se ergue o estrado.

Na estrada está posto
Um caixão floral.
No átrio está exposto
O corpo fatal.

Não dizem quem era
No sonho que teve.
E a sombras que o espera
É a vida em que esteve.
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LEMBRO-ME OU NÃO? OU SONHEI?
 
Lembro-me ou não? Ou sonhei?
Flui como um rio o que sinto.
Sou já quem  nunca serei
Na certeza em que me minto.

O tédio de horas incertas
Pesa no meu coração,
Paro ante as portas abertas
Sem escolha nem decisão.

Miriam Leitão (O poeta e as palavras órfãs)

Quando um poeta morre as palavras ficam órfãs. Cada poeta é único e sabe do seu labor. Desentendido de tantos, o ofício é delicado e misterioso. Por que os versos escolhem umas pessoas e não outras? E por que passam a ser de todos após lapidados? Sabe-se pouco da poesia. Apenas que dela nada se sabe.

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases.
Manoel de Barros


Esta semana ele nos deixou. Fiquei numa tristeza! Viveu tanto. Quase um século, recluso no seu pantanal. Quando foi embora, versos dele aparecerem no Twitter em lamento e eu fiquei com aquela necessidade urgente da sua poesia.

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade.


Estava em Brasília e meu livro Poesia completa — Manoel de Barros, no Rio de Janeiro. Foi presente de um amigo querido a quem nem sei se agradeci direito. Na cabeceira grande que fiz para colocar muitos livros, como sonhei na infância, está lá o poeta. Tem boa companhia. João Cabral, Drummond, Cecília.

São tantos e tão grande a cabeceira — rodeia a cama inteira — que eu perco os livros algumas vezes, mas sabia onde aquele estava e tinha precisão.

Foi uma semana dura de muito trabalho e pouco sono. Palestras, aulas, entrevistas, comentários, colunas e crises. A fiscal é crise velha, porém reaparece todo dia.

Os políticos: os que perderam mandato, os que querem ganhar, os que vão dar o troco, todos iam de um lado para outro como formigas confusas quando perdem o centro do formigueiro. Fui ao Planalto, de lá olhei Brasília. É bonita a vista.

Manoel de Barros fazia poesia sobre bichos, sobre pássaros, sobre água.

No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas.


A semana dura terminou num dia longo, cheio de acontecimentos. Todos presos. Os suspeitos de sempre, mas que nunca eram visitados pela lei. A polícia chegou e disse que era o dia do juízo final. A sujeira é muita, o povo desconfia. Daqui a pouco: todos soltos. Bons advogados. No entanto, o dia, véspera do aniversário da República, foi bem republicano. Os jornalistas tiveram muito o que fazer. A economia e a política foram parar na polícia. No fim da sexta, comecei a voltar para o Rio. O Brasil ainda estava confuso. Escrevi a coluna enquanto o avião atrasava.

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.

Tinha dito ao autor deste blog, ao ver a chuva cair forte sobre uma Brasília nervosa com a prisão dos empreiteiros, homens de posses e doações, uma frasezinha assim: "Que a chuva lave e não me leve."

Não devia ter dito, porque quase que o avião não sai. Espera longa no fim do dia, atraso demais dentro do avião, fila grande para pegar o táxi, e uma mulher ainda caiu em cima da minha mala. Pedi mil desculpas. Achei que tinha colocado a mala no caminho. Ela disse que caiu porque estava olhando "pra ontem" e que minha culpa era nenhuma. Era noite e o trânsito estava todo fechado no Rio. Demoro a chegar em casa. Estava exausta da semana e do dia, longos demais.

Na minha cabeça, a poesia única de Manoel de Barros: "O sentido normal das palavras não faz bem ao poema." Tentava me lembrar de cabeça, mas era difícil.

Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...


Foi chegar em casa e me preparar para descansar de tanto trabalho. Apaguei a luz para dormir, quase dormia, quando a precisão ficou forte demais. Acendi a luz de novo, puxei lá debaixo numa das pilhas dos livros, sabia onde estava, derrubei os outros, eles hão de me desculpar, necessidade forte. Abri meu Manoel de Barros e li aos saltos o que está salteado neste texto doido.

Concluindo: 
há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

Dormi muito bem. Sonhei que escrevia um artigo que começava assim: "Quando um poeta morre, as palavras ficam órfãs."

Fonte:
Miriam Leitão. Refúgio no sábado. RJ: Intrínseca, 2018.

Julimar Andrade Vieira (Lançamento do livro “Terra Nua”)


Julimar lançará em breve o livro de poesias "Terra Nua", com 148 páginas, contendo 18 poemas, 45 sonetos e 70 trovas (sete delas, acompanhadas de ilustração).

Caso alguém se interesse, poderá adquiri-lo mediante contato com o poeta, por meio do e-mail julimar1@terra.com.br ou pelo watsapp (79) 98837-8243.

Nascido em Teixeira-PB, em 01/07/1949, Julimar Andrade Vieira é advogado e escritor, autor dos livros “Coisas da Vida”, “Foi Deus que me ajudou” e “Terra Nua”, este último prestes a ser lançado. Trabalhou na Rádio Rural de Caicó, Rádio Arapuan de João Pessoa, Banco do Nordeste do Brasil e Procuradoria-Geral do Estado de Sergipe. Faz parte do Clube dos Trovadores do Seridó, Academia Literária do Clube da Poesia Nordestina e União Brasileira de Trovadores, da qual é Delegado em Aracaju-SE.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Adega de Versos 85: Cláudio de Cápua

 

Humberto de Campos (O Javali de Calydon)

Amigo íntimo do casal, o Dr. Fernando Magalhães tinha a vantagem, que o bairro inteiro invejava, de penetrar, a qualquer hora do dia, sob qualquer pretexto, ou sem pretexto algum, no gracioso palacete do engenheiro Alfredo Scholl, nos fins da Avenida Atlântica, ao lado da montanha e diante do mar. Pessoa de confiança, o Dr. Fernando conversava alguns momentos com a encantadora dona da casa, que lhe dava o prazer de, minutos depois, colocá-lo à sua frente, na pequenina mesa de chá, com serviço para dois. E, como o ilustre médico dispõe de uma cultura variada, bebida na ciência de toda ordem e na literatura de todo gênero, sucedeu-lhe, naquela dia, lembrar-se, a propósito de um incidente comum, da triste fábula do rei Anceo, que tomou parte, como se sabe, na famosa expedição dos argonautas.

- A senhora não conhece, então, essa história fabulosa, D. Alaíde? – indagou, gentil, o ilustre ginecologista.

A moça levou a xícara de porcelana chinesa aos lábios mais delicados e vermelhos que a porcelana da xícara, e, com a boquita cheia, e uma torradinha entre os dedos, pediu:

- Não! Conte-me.

E, sorrindo, com tentação:

- Conte-me, sim?

O ilustre médico fitou-a, com os olhos doces, e começou, com simplicidade, mas com graça:

- De regresso da Colchida, aonde havia ido com os outros príncipes gregos, governava Anceo o seu povo da Arcádia quando, certo dia, um escravo lhe disse, à mesa, que ele nunca mais beberia vinho da sua vinha. Soberbo e incrédulo, Anceo achou espírito na predição, zombando da palavra do servo. E, para demonstrar a sua incredulidade, ordenou, de pronto, ao escravo:

- Traze-me vinho da minha vinha! Queres ver como o bebo?

O escravo trouxe-lhe uma taça de ouro transbordante, e entregou-a ao senhor.

- E agora, que te disse eu? - observou o monarca.

- O que eu sei, meu senhor, - retrucou o servo, curvando-se, - é que entre o copo e a boca ainda medeia um espaço que pode ser, talvez, uma eternidade!

Anceo sorriu, na sua arrogância, e ia levantar a taça de vinho fervente, quando a guarda apareceu, de súbito, em tumulto, à porta do grande salão.

- O javali de Calydon, meu senhor! - gritavam todos, alarmados - o javali de Calydon acaba de entrar na vossa vinha!

Abandonando a taça, antes de levá-la aos lábios, o soberano atira-se, de um salto, sobre a sua lança, sobre o seu escudo, sobre a sua espada, ordenando, ao mesmo tempo, que as buzinas convoquem, sonoras, os guerreiros da vizinhança. E, precipitando-se para o vinhedo, enfrenta, alí, sozinho, a fera formidável, a qual se atira contra ele, ferindo-o, matando-o, estraçalhando-o, de modo que se cumpriu o que dissera o escravo, o qual assegurara que ele não chegaria aos lábios, apesar de tê-lo nas mãos, o vinho da sua vinha!

Com o queixo de mármore na curva da mão pequenina, debruçada sobre a toalha de linho bordado, D. Alaíde ouvia, embevecida, de olhos semicerrados, a palavra do narrador, que se debruçara, também, no seu rumo, para falar-lhe melhor. De rosto a rosto não havia mais, talvez, que a distância de um palmo, quando bateram, de leve, na porta que dava para o terraço, a qual se achava trancada à chave. Pé ante pé, D. Alaíde vai até à vidraça e espia, sem ser vista.

- Quem é? - indaga, em segredo, o Dr. Fernando.

E a moça, à meia voz, com a mãozinha junto da boca:

- É o javali!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 9

A cinza morta revela,
na tapera abandonada...
Que um fantasma dentro dela,
mantém a cinza apagada!
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A jovem mãe, no abandono,
consola a filha do amor;
a mãe, uma flor sem dono
amamentando outra flor!
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A saudade só se explica,
neste Natal, sem meus pais,
na dor da ausência que fica
das noites de outros Natais!
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Às vezes, ao pé do monte,
contemplo sozinho ao léu,
os olhos tristes da fonte
pedindo justiça ao céu!
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A trova muito me importa;
pequenina, se agiganta
quando, em tudo que transporta,
carrega a voz de quem canta!
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Comparo as luzes do outono,
aos antigos castiçais,
mantendo as luzes sem sono
em seus velhos rituais!
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Converso com as reticências;
e, entre esperas e demoras...
Sinto ritos de existências
que há no silêncio das horas!
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Daquele instante risonho,
que moldou nosso roteiro...
Guardo o derradeiro sonho
como se fosse o primeiro!
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Depois de feita a moldura
da aquarela do arrebol,
Deus pôs gotas de ternura
na rosa rubra do Sol.
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Eis que espera tão divina:
Mesmo aos pontapés, e aos trancos,
sinto que a paz dobra a esquina,
nestes meus cabelos brancos!
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Em todo canto, ele cabe,
sem ele, o amor, não resiste;
quem ama, sente e não sabe,
porque é que o ciúme existe!
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Esta fé que compartilho,
que me arrasta e me seduz,
é a fé de um velho andarilho
que vence o peso da cruz!
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Eu busquei com tanto ardor
esse amor que Deus me deu...
Que encontrei cegos de amor,
bem mais cegos do que eu!
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Eu peço nas horas calmas
aos meus versinhos sem teto,
que levem meus pães às almas,
dos mais famintos de afeto!
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Larga esse orgulho senhor
e vê que exemplo feliz,
há na humildade do amor
de São Francisco de Assis!
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Na miséria da favela,
surge um velhinho indefeso,
mantendo acesa uma vela,
ao lado de um sonho aceso!
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O amor quando pinta e borda,
domina e faz o que quer,
faz vibrar corda por corda
do coração da mulher!
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Olha o céu, sem poder vê-la,
mas pela fé, que o conduz...
Será que a luz de uma estrela,
não é do cego uma luz?!
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Ó, velho mar, eu presumo
que és grande e, eu tão pequenino;
sou grão de areia sem rumo
no imenso mar do destino!
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Para enfrentar a velhice
e o pó da aridez do outono,
eu trouxe da meninice,
halos da paz do meu sono!
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Rondando o circo do sonho,
num suspiro derradeiro,
velho, o palhaço tristonho,
diz adeus ao picadeiro!
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Sem mais te ver, sem teus laços,
passei a ouvir sons em vão,
da saudade de teus passos,
nos espaços do meu chão!
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Se o ódio, turva a razão,
o tédio, vira um temor;
purgam-se pelo perdão,
queixas e mágoas de amor!
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Só depois que tu me olhaste,
e olhei esses olhos teus,
senti que tu não pecaste
e, eu pequei diante de Deus!
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Tentei, mas não tive escolha;
dois mil e vinte chegou,..
Já rasguei folha por folha
do ano velho que passou!
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Teus velhos chinelos são
guardados hoje, ao meu lado,
partes dos pés do teu chão,
sobre o chão do meu passado!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.