terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Hergé (As Aventuras de Tintim)


 As Aventuras de Tintim (Les aventures de Tintin, em francês) é o título de uma série de histórias em quadrinhos (banda desenhada, em Portugal) criada pelo autor belga Georges Prosper Remi, mais conhecido como Hergé. Localizadas em um mundo meticulosamente examinado que muito tem em comum com o nosso, As Aventuras de Tintim apresentam vários personagens em cenários distintos. As séries foram as favoritas dos leitores e também dos críticos por mais de 70 anos.

O herói das séries é o personagem epônimo Tintim, um jovem repórter e viajante belga. Ele é auxiliado em suas aventuras desde o começo por seu fiel cão Milu (Milou, em francês). Os dois apareceram pela primeira vez em 10 de janeiro de 1929, no Le Petit Vingtième, um suplemento do jornal Le Vingtième Siècle destinado aos jovens. Mais tarde, o elenco foi expandido com a adição do Capitão Haddock e outros personagens pitorescos.

Esta série de sucesso era publicada em semanários e, ao término de cada história, os quadrinhos eram reunidos em livros (23 no total, em 2008). Ela ganhou uma revista própria de grande tiragem (Le Journal de Tintin) e foi adaptada para versões animadas, para o teatro e para o cinema. As séries são uma das histórias em quadrinhos europeias mais populares do século XX, sendo traduzidas para mais de 50 línguas e tendo mais de 200 milhões de cópias vendidas.

As séries de histórias em quadrinhos são há muito admiradas pelos desenhos claros e expressivos, com o estilo “ligne claire”, típico de Hergé. O autor emprega enredos bem elaborados de gêneros variados: aventuras com elementos de fantasia; mistério; espionagem; e ficção científica. As histórias nas séries de Tintim caracterizam-se tradicionalmente pelo humor em cenas de atividade, o que equivale em álbuns posteriores à sofisticada sátira e comentários político-culturais.

Descrição

Tintim é apresentado como um repórter: Hergé usa tal artifício para apresentar o personagem numa série de aventuras ambientadas em períodos contemporâneos àquele em que ele estava trabalhando (mais notavelmente, a insurreição bolchevique na Rússia e na Segunda Guerra Mundial e a alunissagem). Hergé criou também um mundo de Tintim, que conseguiu reduzir a um simples detalhe, mas reconhecível e com representação realista, um efeito que Hergé foi capaz de alcançar com referência a um bem mantido arquivo de imagens.

Apesar de as Aventuras de Tintim serem padronizadas – apresentando um mistério, que é, então, logicamente resolvido – Hergé encheu-as com o seu próprio senso de humor, e criou personagens de apoio que, embora sejam previsíveis, apresentaram-se com um certo encanto que permitiu ao leitor se engajar com eles. Esta fórmula de uma confortável e bem–humorada previsibilidade é semelhante a da apresentação do elenco na tira Peanuts ou em Three Stooges Hergé também teve um grande entendimento da mecânica dos quadrinhos, especialmente de seu andamento, uma habilidade demonstrada em As Joias de Castafiore, um trabalho que pretende ser envolvido com a tensão de que nada realmente acontece.

Hergé inicialmente improvisou na criação das aventuras de Tintim, exceto como Tintim iria escapar de qualquer situação que aparecia. Somente após a conclusão de Os Charutos do Faraó, Hergé foi incentivado a reformular e a planejar suas histórias. O impulso veio de Zhang Chongren, um estudante chinês que, sabendo que Hergé iria mandar Tintim à China na sua próxima aventura, instou–o a evitar que perpetuassem a visão que europeus tinham da China no momento. Hergé e Zhang trabalharam juntos na série seguinte, O Lótus Azul, que foi citado pelos críticos como a primeira obra-prima de Hergé.

Outras alterações à mecânica de Hergè criar as tiras se deram a partir de influências por parte de acontecimentos externos. A Segunda Guerra Mundial e a invasão da Bélgica pelos exércitos de Hitler determinaram o encerramento do jornal no qual Tintim era republicado. Os trabalhos foram interrompidos em Tintim no País do Ouro Negro, e os já publicados Tintim na América e A Ilha Negra foram proibidas pela censura nazista, que não concordou com sua apresentação da América e da Grã-Bretanha. No entanto, Hergé foi capaz de continuar com As Aventuras Tintim, publicando quatro livros e relançando mais duas aventuras no Le Soir, jornal licenciado pelos alemães.

Durante e após a ocupação alemã, Hergé foi acusado de ser um colaborador, por causa do controle nazista do jornal, sendo detido brevemente após a guerra. Alegou que estava simplesmente realizando um trabalho sob a ocupação, como um canalizador ou carpinteiro. Sua obra desse período, ao contrário do seu trabalho anterior e posterior, é politicamente neutra e resultou nas aventuras histórias clássicas, como O Segredo do Licorne e O Tesouro de Rackham o Terrível, mas a apocalíptica A Estrela Misteriosa reflete o sentimento de Hergé durante esse período político incerto.

A escassez do papel no pós-guerra exigiu mudanças no formato dos livros. Hergé geralmente desenvolvia suas histórias de forma que o tamanho fosse adequado à história, mas agora com o papel de dimensão reduzida, os editores Casterman pediram a Hergé para ele considerar a utilização de menores dimensões e adotar um tamanho estipulado de 62 páginas. Hergé continuou e aumentou sua equipe (os dez primeiros livros foram feitos por ele e sua esposa), surgindo assim os Studios Hergé.

A adoção de cor permitiu que Hergé expandisse o alcance das suas obras. Sua utilização da cor era mais avançada do que a dos quadrinhos norte-americanos da época, com valores que permitiam uma melhor combinação das quatro impressões tons e, consequentemente, uma abordagem cinematográfica em relação à iluminação e sombreamento. Hergé e seu estúdio permitiriam que as imagens enchessem meia página ou, mais simplesmente, mostrassem detalhadamente e acentuassem a cena, usando cores para realçar pontos importantes. Hergé cita este fato, declarando que “Considero minhas histórias como se fossem filmes. Sem narração, sem descrições, a ênfase é dada às imagens.” A vida pessoal de Hergé também afetou a série, com Tintim no Tibete sendo fortemente influenciada pelo seu colapso nervoso. Seus pesadelos, descritos por ele como sendo “todos em branco”, se refletem em paisagens cheias de neve. O enredo tem Tintim patinando em busca de Tchang Chong-Chen, previamente encontrado em O Lótus Azul, e a peça não tem vilões e uma pequena lição de moral, com Hergé até se recusando a se referir ao Homem das Neves do Himalaia como “abominável”.

A conclusão das aventuras de Tintim ficou incompleta. Hergé morreu em 3 de março de 1983 e deixou a 24ª aventura, Tintim e a Alph-Art, inacabada. O enredo viu Tintim embrenhar-se no mundo da arte moderna, e a história é interrompida no momento em que Tintim está aparentemente prestes a ser assassinado para ser transformado em uma estátua de acrílico a ser vendida.

Personagens:

Tintim
Tintim é um jovem repórter que se envolve em casos perigosos e realiza ações heroicas para salvar o dia. Quase todas as aventuras retratam Tintim trabalhando, empenhado em suas investigações jornalísticas. Ele é um jovem de atitudes mais ou menos neutras e é menos pitoresco que o elenco secundário.

Milu
Milu é um cão terrier branco, o companheiro de Tintim. Eles regularmente salvam um ao outro de situações perigosas. Milu frequentemente “fala” com o leitor por meio de seus pensamentos (muitas vezes mostrando um humor um tanto seco), que supostamente não são ouvidos pelos personagens da história.

Como o Capitão Haddock, Milu tem gosto pelo uísque Loch Lomond, e suas ocasionais “bebedeiras” tendem a colocá-lo em problemas, assim como sua intensa aracnofobia. O nome francês “Milou” foi largamente atribuído como uma referência indireta a uma namorada da juventude de Hergé, Marie-Louise Van Cutsem, que tinha o apelido de “Milou”.

Existe outra explicação para as origens dos dois personagens. Foi afirmado que Robert Sexé, um fotógrafo-repórter, cujas proezas eram recordadas na imprensa belga entre a metade e o fim da década de 1920, foi uma inspiração para o personagem Tintim. Sexé tinha notadamente uma aparência similar a de Tintim, e a Fundação Hergé na Bélgica admitiu que não é difícil imaginar como Hergé poderia ter sido influenciado pelas proezas de Sexé. Naquele tempo, Sexé estivera viajando pelo mundo em uma motocicleta feita por Gillet de Herstal.

René Milhoux era um campeão do Grand-Prix e detinha o recorde de motocicleta da época, e, em 1928, enquanto Sexé estava em Herstal falando com Leon Gillet sobre seus projetos futuros, o Sr. Gillet o colocou em contato com seu novo campeão, Milhoux, que acabara de deixar motocicletas prontas para Gillet de Herstal. Os dois rapidamente iniciaram uma amizade, e passavam horas falando sobre motocicletas e viagens; Sexé explicando suas dificuldades e Milhoux oferecendo seu conhecimento sobre mecânica e motocicletas pequenas trabalhando acima de seus limites. Graças a essa união de conhecimento e experiência, Sexé partiria em numerosas viagens por todo o mundo, escrevendo incontáveis relatos jornalísticos. O secretário geral da Fundação Hergé na Bélgica admitiu que não é difícil imaginar como o jovem George Rémi, mais conhecido como Hergé, poderia ter sido inspirado pelas bem publicadas proezas desses dois amigos, Sexé com suas viagens e documentários, e Milhoux com seus triunfantes registros, para criar os personagens de Tintim, o famoso repórter viajante, e seu fiel companheiro Milu.

Capitão Archibald Haddock
Capitão Archibald Haddock, um capitão navegador de origem discutível (pode ser de origem inglesa, francesa ou belga), é o melhor amigo de Tintim, e foi introduzido em O Caranguejo das Tenazes de Ouro. Haddock foi inicialmente descrito como um personagem fraco e alcoólatra, tendo mais tarde, porém, se tornado mais respeitável. Ele evoluiu para se tornar genuinamente heroico e até mesmo da alta sociedade, depois de encontrar um tesouro de seu ancestral Sir Francis Haddock (François de Hadoque em francês), no episódio O Tesouro de Rackham o Terrível. A natureza rude do capitão e seu sarcasmo representam uma contradição ao frequente e improvável heroísmo de Tintim; ele sempre rompe com um comentário seco ou satírico quando o repórter parece demasiado idealista. O Capitão Haddock vive em sua luxuosa mansão chamada Moulinsart.

Haddock usa uma série de pitorescos insultos e maldições para expressar seus sentimentos: “com mil milhões de mil macacos”, “com mil raios e trovões”, “trogloditas”, “cleptomaníaco”, “anacoluto”, “iconoclasta”, mas nada que seja realmente considerado uma grosseria. Haddock é um beberrão, particularmente chegado ao uísque Loch Lomond, e sua embriaguez é frequentemente usada para propósitos cômicos.

Hergé afirmou que o sobrenome de Haddock deriva-se de um “peixe inglês triste que bebe muito”. Haddock permaneceu sem um nome próprio até a última história completa, Tintim e os Tímpanos (1976), quando o nome Archibald foi sugerido.

Personagens secundários

Os personagens secundários de Hergé já foram mencionados como muito mais desenvolvidos que os principais, cada um imbuído de força de temperamento e personalidade que se comparam aos personagens de Charles Dickens. Hergé usava os personagens secundários para criar um mundo realista onde colocar os protagonistas das aventuras. Para mais realismo e continuidade, os personagens voltariam às séries. Foi conjeturado que a ocupação da Bélgica e as restrições impostas a Hergé forçaram-no a focar-se na caracterização para evitar o surgimento de situações políticas incômodas. A maior parte dos personagens secundários foi desenvolvida nesse período.

Dupond e Dupont
São dois detetives desajeitados que, mesmo não tendo nenhum parentesco, parecem ser gêmeos, tendo uma única diferença física: a forma de seus bigodes. Eles muito contribuem no humor da série, devido às suas antístrofes* e incompetência. Os detetives foram, em parte, baseados no pai e no tio de Hergé, gêmeos idênticos.

Trifólio Girassol
O Professor Trifólio Girassol é um cientista quase surdo, que entende e age diante de tudo de maneira equivocada como resultado de sua deficiência auditiva. É um personagem menor mas que aparece regularmente nas aventuras de Tintim. Estreou em O Tesouro de Rackham o Terrível, sendo baseado, parcialmente, em Auguste Piccard.

Bianca Castafiore
Bianca Castafiore é uma cantora de ópera, a quem o capitão Haddock absolutamente despreza. Contudo, ela constantemente aparece de súbito onde quer que eles estivessem, junto com sua criada Irma e o pianista Igor Wagner. Seu nome significa “flor branca e pura”, algo que o Professor Girassol entende quando oferece uma rosa branca à cantora pela qual é secretamente apaixonado em As Jóias de Castafiore. Ela foi baseada nas grandes cantoras de ópera em geral (de acordo com a percepção de Hergé), na tia de Hergé’s, Ninie, e, no pós-guerra, em Maria Callas.

Outros pesonagens secundários: o General Alcazar, um ditador sul-americano; Mohammed Ben Kalish Ezab, um emir, e seu filho Abdallah; Serafim Lampião, um vendedor de seguros; Tchang Chong-Chen, um menino chinês; o Doutor J.W. Müller, um maléfico médico alemão; Nestor, o mordomo; Roberto Rastapopoulos, o responsável pelos crimes; Oliveira da Figueira; o Coronel Sponsz; Piotr Szut; Allan Thompson; além do açougue Sanzot, que é um local recorrente na série.
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* Antístrofe = figura baseada nas diferenças de sentido que resultam da associação das mesmas palavras em um mesmo tipo de construção sintática, invertendo-se-lhes a ordem.
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Críticas

Muito se tem escrito sobre a ideologia da série. A obra é objeto de polêmica, em grande parte graças à contínua reedição das aventuras, que foram concebidas há muitos anos, em um contexto inteiramente diferente. Já se acusou Hergé de propagar em seus álbuns violência, crueldade para com os animais, pontos de vista colonialistas, racistas e até mesmo fascistas; foi acusado também de suposta misoginia, dado que quase não aparecem mulheres na série. Essas acusações se referem apenas a aspectos pontuais da série, não podendo-se dizer que sejam pontos de vista predominantes da série. Nesse sentido, há uma certa “lenda negra” de Tintim, devido ao fato de Hergé ter publicado algumas histórias em um jornal aprovado por nazistas, o Le Soir, durante a ocupação alemã na Bélgica.

Ainda que a Fundação Hergé tenha tomado tais acusações por ingenuidade do autor, e que certos pesquisadores como Harry Thompson afirmem que “Hergé fazia o que lhe dizia o abade Wallez (o diretor do jornal)”, o próprio quadrinista sentia que, visto suas origens sociais, não poderia escapar de preconceitos: “Ao conceber Tintim no Congo e Tintim no País dos Sovietes, estava sustentado por preconceitos do meio burguês no qual vivia. (…) Se tivesse de refazê-los, refazer-los-ia de outro modo, certamente.”

Em Tintim no País dos Sovietes, os bolcheviques são descritos como personagens maléficos. Hergé se inspirou num livro de Joseph Douillet, antigo cônsul da Bélgica na Rússia, Moscou sans voile, que era extremamente crítico ao regime soviético. Hergé inseriu isto no contexto afirmando que para a Bélgica da época, uma nação devota e católica, “tudo o que fosse bolchevique era ateu”. No álbum, os chefes bolcheviques são motivados apenas por interesses pessoais, e Tintim descobre, enterrado, “o tesouro escondido de Lênin e Trotsky”. Mais tarde, Hergé assimilou os defeitos desses primeiros álbuns a “um erro de minha mocidade”. Mas hoje, parte de sua maneira de representar a URSS da época pode ser considerada aceitável. Em 1999, o jornal The Economist publicou que “retrospectivamente, a terra da fome e da tirania desenhada por Hergé estavam estranhamente corretas”.

Tintim no Congo foi acusado de representar os africanos como seres ingênuos e primitivos. Na primeira versão do álbum, em preto-e-branco, vemos Tintim diante de uma lousa dando aula a crianças africanas. “Meus caros amigos”, diz ele, “hoje, vou lhes falar de sua pátria: a Bélgica”. Em 1946, Hergé redesenhou o álbum, transformando esta cena numa aula de matemática. “Sobre o Congo, eu conhecia apenas o que contavam na época: ‘os negros são como grandes crianças, sorte deles estarmos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com estes critérios, no mais puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica”, explicou-se Hergé.

Em 1988, no jornal britânico Mail on Sunday, Sue Buswell resumiu os problemas evidenciados nesse álbum: “lábios grossos e pilhas de animais mortos”, em referência à maneira como foram desenhados os africanos e aos animais que Tintim caça (atividade muito em voga na época em que o álbum foi feito). Todavia, Harry Thompson nota que tal citação pode ter sido tomada “fora de seu contexto”.

Transpondo uma cena de Les Silences du Colonel Bramble, livro de André Maurois, Hergé apresenta Tintim como um caçador, abatendo quinze antílopes, sendo que apenas um já seria o bastante para se alimentar. O grande número de animais mortos ao longo da história levou o editor dinamarquês dos álbuns Tintim a exigir algumas modificações. Hergé teve de substituir uma cena em que Tintim faz um furo no dorso de um rinoceronte para depositar uma dinamite e explodir o animal.

Em 2007, a Comissão pela Igualdade Racial (Commission for Racial Equality), órgão britânico, exigiu que o álbum fosse retirado das prateleiras de livrarias após uma reclamação, afirmando ser “triste saber que haja ainda hoje livreiros que aceitem vender e divulgar Tintim no Congo”. Em 23 de julho de 2007, um estudante congolês fez uma queixa em Bruxelas, capital da Bélgica, na qual considera a obra um insulto para o seu povo. O caso é investigado, mas o Centro para a Igualdade de Oportunidades e Combate ao Racismo (Centre pour l’égalité des chances et la lutte contre le racisme, instituição belga), advertiu que não se tome uma “atitude hiper-politicamente correta”.

Vários dos primeiros álbuns de Tintim foram alterados por Hergé em edições subsequentes, geralmente a pedido das editoras. Em Tintim na América, por exemplo, os traços caricatos dos personagens negros foram redesenhados como sendo brancos ou de etnia indefinida, incitado pelos editores americanos. Em a Estrela Misteriosa, um vilão americano tinha originalmente o sobrenome judeu Blumenstein. Isto era controverso, tanto que o personagem tinha exatamente o aspecto estereotipado de um judeu. Blumenstein foi alterado para Bohlwinkel, sobrenome menos etnicamente específico. Em edições posteriores, o personagem foi novamente alterado, desta vez para sul-americano, de um país ficcional chamado São Rico. Mais tarde, Hergé descobriria que Bohlwinkel também é um sobrenome judeu.

Outro álbum apontado como racista é Perdidos no Mar (também conhecido como Carvão no Porão), de 1958. Ainda que a história seja uma denúncia da escravidão, na qual Tintim e Haddock defendem claramente os mais fracos, um artigo publicado em 1962 na revista Jeune Afrique criticou duramente a representação dos africanos, especialmente a forma de falarem. Hergé rebateu as críticas e, em 1967, reescreveu alguns diálogos.

A ideia do fascismo da série pode estar relacionada à atitude do autor na época da Segunda Guerra e ao seu vínculo inicial com o abade Norbert Wallez, homem de extrema-direita e anticomunista assumido. Vale notar que os álbuns publicados durante a guerra são histórias nas quais não há nenhuma alusão política.

Álbuns como O Cetro de Ottokar, de 1939, desmentem a suposta simpatia de Hergé pelo fascismo. Nessa história, há críticas evidentes à política expansionista de Hitler. “Creio que todos os totalitarismos são nefastos, sejam eles de direita ou de esquerda.” disse o autor.

Hergé jamais negou suas ideias conservadoras. Talvez por esse motivo, Tintim seja a favor da ordem estabelecida, o que não o impede de dar atenção aos menos favorecidos, e, em muitas ocasiões, tomar o partido destes. Ao longo de suas viagens, Tintim demonstra um verdadeiro interesse e respeito pelas culturas não europeias, o que se manifesta também na vontade de Hergé pesquisar meticulosamente para a realização dos álbuns.

Influências

Na sua juventude, Hergé era um grande admirador de Benjamin Rabier, e esta influência manifestou-se, principalmente, numa série de imagens em Tintim no País dos Sovietes, em particular as imagens dos animais, sugeridas por Hergé. René Vincent, o ilustrador art-deco, também influenciou no início das aventuras de Tintim: “A influência pode ser detectada no início dos soviéticos, onde meus desenhos são projetados ao longo de uma linha decorativa, como um ‘S’…”. Hergé admitiu que havia roubado uma parte do trabalho de George McManus, afirmando que estavam “tão divertidos, que utilizei-os, sem escrúpulos!”.

Durante a pesquisa extensiva que realizou para escrever O Lótus Azul, Hergé foi influenciado pelos estilos ilustrativos e xilogravura chineses e japoneses. Isso é especialmente notável na paisagem marítima, que é similar ao trabalhos de Katsushika Hokusai e de Hiroshige.

Hergé também afirmou que Mark Twain foi uma influência, embora sua admiração possa tê-lo levado a desviar-se quando representou os incas como não tendo nenhum conhecimento do eclipse vindouro em O Templo do Sol, um erro atribuído por T.F. Mills como uma tentativa para retratar “incas em pavor aos tempos modernos (Um Ianque na Corte do Rei Artur, de Mark Twain)”.

Selos

A imagem de Tintim foi usada em selos postais em numerosas ocasiões, o primeiro emitido pelo Belgian Post em 1979 para celebrar o dia da filatelia. Esta foi a primeira de uma série de selos com as imagens dos quadrinhos de heróis belgas, sendo o primeiro selo do mundo a ter um herói dos quadrinhos.

Em 1999, a Royal Dutch Post lançou dois selos, em 8 de outubro de 1999, baseados na aventura Rumo à Lua, com os selos vendidos totalmente poucas horas após o seu lançamento. Os correios franceses, em seguida, emitiram um selo de Tintim e Milu em 2001. Para marcar o fim do franco belga, e também para comemorar o aniversário da publicação Tintim no Congo, mais dois selos foram emitidos pelo Belgian Post em 31 de dezembro de 2001. Os selos também foram emitidos no Congo, ao mesmo tempo.

Prêmios

Em 1° de junho de 2006, o Dalai Lama condecorou com o prêmio Luz da Verdade o personagem, juntamente com o arcebispo sul-africano Desmond Tutu. O prêmio foi em reconhecimento ao trabalho de Hergé no livro Tintim no Tibete.

Em 2001, a Fundação Hergé exigiu a retirada da tradução chinesa da obra, que havia sido lançada com o título Tintim no Tibete Chinês. O trabalho foi publicado depois com a tradução correta.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/As_Aventuras_de_Tintim

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 35

 

Machado de Assis (Um Apólogo)


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor com melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Fonte:
Projeto Releituras. Acesso em 3 de fevereiro de 2008. 
Conto disponível em Domínio Público. 

Quadras de Autores Desconhecidos


Adeus, para sempre adeus!
Ingrata sem coração:
Tu és pia de água-benta
onde todos põem a mão.
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Encontrei o dá e toma
na rua do toma lá;
inda não vi dá sem toma,
nem toma sem deita cá.
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Eu já fui à sua casa
e já sei o que ela é.
A fartura que vi nela
foi pulga e bicho de pé.
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Eu jurei de nunca mais
dizer adeus a ninguém.
Quem parte leva saudades,
quem fica não vai no trem.
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Eu não quero, nem brincando,
dizer adeus a ninguém:
quem parte, leva saudades,
quem fica, saudades tem.
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Eu recuso mulher nova,
que é espelho dos enganos:
Quero uma velha bem velha
de vinte, ou vinte e dois anos
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O amor de um estudante
não dura mais que uma hora:
toca o sino, vai pra aula,
vêm as férias, vai-se embora.
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Os rapazes de hoje em dia
são falsos como melão:
tem de se partir um cento
para se encontrar um são.
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Quem é pobre, sempre é pobre,
quem é pobre, nada tem;
quem é rico sempre é nobre
e às vezes não é ninguém...
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Quem fala de mim, quem fala.
Quem fala de mim, quem é?
É algum chinelo velho
que não me serve no pé.
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Quem quiser ter vida longa
fuja sempre que puder
de médico, boticário,
melão, pepino e mulher!
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Quero cantar, ser alegre,
que a tristeza não faz bem;
Inda não via tristeza
dar de comer a ninguém.
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Se onde se mata um homem
pôr uma cruz é preceito
tu deves trazer, Maria,
um cemitério no peito.
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Tanto limão, tanta lima,
tanta silva, tanta amora,
tanta menina bonita...
Meu pai sem ter uma nora!
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Tenho tosse no cabelo,
dor de dentes no cachaço,
sinto canseira nas unhas,
não vejo nada de um braço.
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Todo sujeito sensato
sabe a verdade de cor:
A mulher bela, de fato,
sem fato fica melhor.
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Você diz que sabe muito,
há outros que sabem mais;
há outros que tiram pomba
do laço que você faz.
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Vou deitar a despedida,
por hoje não canto mais;
já me dói o céu da boca
e o coração inda mais.
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Vou-me embora, vou-me embora,
para aqui não volto mais,
que eu não sou bonde da Light,
que vai pra diante e pra trás.

Fonte:
Idel Becker. Humor e Humorismo. SP: Brasiliense, 1961. Disponível em Projeto Releituras
Acesso em 19 de fevereiro de 2008. 

Dorothy Jansson Moretti (Uma Historinha bem Antiga)


O Cambuci era balzaqueano (se posso usar essa palavra), pois o bairro tinha ainda trinta anos, na época em que se passa este fato.

Eu era menina pequena, morava em Itararé e estava de férias em São Paulo, na casa do juiz Dr. Oscar Martins de Mello, na rua que então se chamava Apiaí (nas placas a grafia era Apiahy). Hoje o nome é outro, que não me ocorre no momento.

A empregada da casa era Luzia, uma morena sarará muito prosa, de quem Floriza, filha do juiz, e eu, ouvíamos mirabolantes histórias em que ela, Luzia, figurava como estrela principal. Ela costumava guardar o dinheiro que economizava durante o ano, para gastá-lo todo no Carnaval em fantasias de luxo, caras e vistosas. Era uma foliona para Arlequim ou Pierrot nenhum, botar defeito.

E o Carnaval já se prenunciava. A marchinha “Seu China”, tocava o dia inteiro no rádio da casa e, naturalmente, no dos vizinhos. Eu acho oportuno aqui, gravar a letra da marchinha: Lá vem o Seu China na ponta do pé / ligui-liligui-liliguililé / dez tões, vinte pratos, banana e café / ligui-liligui-liliguililé. / Chinês come somente uma vez por mês / não vai mais a Shangai buscar a “butterfly” / Aqui com a morena fez a sua fé / ligui-ligui-liguilé. (Se alguém souber o que significa “dez tões”, agradeço pela ajuda. Seria por acaso “dez tostões”?)

Outra música que os rádios tocavam diariamente era uma valsinha que o palhaço de um circo cantava... E a gente também: Eu fui à cozinha fazer o café / a pulga malvada mordeu o meu pé./ Eu fui à cozinha fazer o almoço / a pulga malvada mordeu meu pescoço./ Eu fui à cozinha fazer o jantar / a pulga malvada mordeu meu calcanhar. / Como pula, como se agita / como é perversa essa pulga maldita! / (bis). Esse era o refrão que se repetia a cada “ida à cozinha”.

Era época de Natal e com Dona Rosinha, esposa do juiz, e a filha Floriza, íamos até a Vila Prudente, encomendar uma árvore viva, um pinheiro para enfeitar a nossa festa natalina. A rua paralela era a Muniz de Souza, que tinha uma caída íngreme para o que se poderia, mesmo, chamar de buraco. E no buraco havia uma fileira de cortiços que apesar de serem construídos de alvenaria, feios do jeito que eram, bem poderiam ser taxados de barracos.

Ao sairmos, atraiu nossa atenção um garoto subindo pela escada que vinha do buraco para a Rua Apiaí. Chegando, sorrateiro, ele olhou furtivamente para a direita e para a esquerda, com muita atenção. Depois, virando-se, deu um discreto assobio lá para o buraco. Curiosas, nós ficamos observando. De lá debaixo surgiu uma bonita moça muitíssimo bem vestida, com luvas, chapéu e bolsa de muito bom gosto. Deu uns trocados para o menino, e sentindo-se segura, calmamente seguiu até a parada de seu ônibus. Divertidas, nós percebemos o porquê da coisa. Ela não queria que alguém visse de onde assomava toda aquela elegância, e mandava o garoto espiar primeiro, para saber se o trecho estava “limpo”... Um bom expediente.

Esta é a minha “historinha antiga”.

Surpresos com a minha boa memória?

Ora essa! Afinal, não foi há tanto tempo assim... Apenas setenta anos!...

Fonte:
Texto enviado pela autora. Disponível em Sorocult.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Adega de Versos 100: Elisa Alderani

 

Humberto de Campos (Elas...)

O relógio da igreja próxima havia acabado de anunciar as dez horas da manhã quando a encantadora mundana Suzete Latour penetrou, nervosa e célere, na risonha "garçonniére" do jovem advogado Silvestre Lobato, que envergava, ainda, àquela hora, o seu felpudo roupão de banho.

- Isto é certo? - indagou a rapariga, estendendo-lhe um jornal com a mão esquerda, enquanto atirava para uma cadeira, com a direita, o seu lindo chapéu de palha da Itália, florido como uma campina pela primavera.

A notícia do jornal era, nada mais, nada menos, do que o noivado do ilustre bacharel com uma senhorita de família distintíssima, chegada recentemente de São Paulo. Sem tocar na folha que a amante lhe estendia, o rapaz respondeu, simplesmente, acendendo um cigarro:

- É.

Essa resposta fria, seca, brutal, desnorteara Suzete. Aquela afirmativa, embora esperada, fora, para ela, um golpe no coração. Fulminada por esse monossílabo, a rapariga segurou-se ao espelho da cama, para não cair. De súbito, porém, subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, e foi vermelha, rubra de cólera, com os olhos brilhantes e os dentes cerrados, que ela, amassando na mão o jornal, rugiu, num desespero de leoa ferida:

- São assim, os homens! Nascem, dizem eles, para o amor, para sorverem, altivos e alegres, todos os gozos da vida. Encontram no seu caminho uma mulher cheia do mesmo sentimento, disposta a conceder-lhes tudo, tudo, tudo, para que eles experimentem, até o êxtase, a glória de viver. Com a alma ardente, ela entrega-se a eles; dando-lhes venturas que eles nunca sonharam, oferecendo-lhes a taça do prazer, da alegria, da felicidade livre, para que a esvaziem, até o último gole. E, no entanto, eles têm vergonha, têm nojo, têm asco dessa mulher, preferindo, a ela, que não esconde os ardores do seu sangue nem os ímpetos do seu coração, a mulher-mentira, a mulher-falsidade, a mulher-simulação, que lhes não entrega nem a alma, nem o corpo, em obediência, unicamente, a preconceitos, a exigências sociais! À mulher que afronta a sociedade, fiel ao seu temperamento preferem eles, covardes diante do mundo, aquelas que não têm coragem para vencer, para atirar longe, em nome do seu amor, a grilheta das conveniências!...

Cabisbaixo, olhos pregados no tapete semeado de flores de seda, o rapaz ouvia, sem um protesto, a explosão daquele cofre de jóias malditas, daquela criatura venenosa, mas admirável, que o guiava, há três anos, pelo complexo labirinto da vida boêmia. E a rapariga continuava a andar, agitada, de um lado para outro do compartimento, passando, nervosa, as mãos finas, alvas, esguias, pelos finos cabelos dourados:

- É bom, mesmo, que eu seja punida. A virtude, para os homens, é a falsidade, é a simulação, é a mentira. Eles não sabem que o amor é incompatível com o pudor, com o receio, com o respeito às convenções, e que ele está, só ele, acima da vida e acima da morte!

E, numa onda de soluços mal sufocados, crispando os dedos:

- Infelizes! Buscam o amor, e onde o encontram, puro e selvagem, fogem dele! Procuram a sinceridade, a lealdade feminina, a mulher que não mente, nem com a sua boca, nem com o seu coração, nem com a sua carne, e, quando querem amparar diante da lei uma criatura, vão buscar aquela que menos conhecem, sem imaginar que a timidez é, nas mulheres, um cálculo, e sem se lembrarem que as mulheres que amam não calculam nem pensam!...

Arrebatada pelas próprias palavras, Suzete limpou os olhos no lencinho de seda, já ensopado de lágrimas, e, na mesma agitação, tomou o chapéu, disposta a partir.

- É a última vez, sabes? Nunca mais me verás no teu caminho. Adeus!

E ia já no rumo da porta, quando ouviu uma voz, que era um gemido:

- Suzete!...

A rapariga voltou-se, imperativa. Sentado na cama, com o rosto molhado de pranto, o rapaz a fitava, olhos implorantes, braços estendidos. Ela fixou-o, severa, e ouviu, então, esta súplica, ou, melhor, este soluço, que era uma capitulação para a vida e para a morte:

- Suzete... Fica!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Livro em Domínio Público.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 19


Ainda senti a fragrância
do suor da primavera,
e o cheiro de minha infância
sobre as cinzas da tapera!
= = = = = = = = =

A lua, sobre a cascata,
beijando as águas, decreta
que a noite, é de serenata,
dos bandolins, do poeta!
= = = = = = = = =

A música que conforta,
que cura mágoas e dor...
às vezes, também transporta
falsas promessas de amor!
= = = = = = = = =

A natureza distinta
cora pinceladas extremas,
ao por do sol, põe mais tinta
de saudade, em meus poemas!
= = = = = = = = =

Ao ver na poça uma lua,
olho o céu, paro e medito,
aos pés da poça da rua,
fotografando o infinito!
= = = = = = = = =

A saudade e a solidão,
em nada são desiguais.
São feras sem coração
e sem doçura em seus ais!
= = = = = = = = =

Crê nos reveses da vida,
não nas promessas servis;
que a ambição vive escondida
por trás de falsos perfis!
= = = = = = = = =

Da ternura, peregrinas;
do amor, grandes construtoras...
As mães, também são divinas,
mesmo sendo pecadoras!
= = = = = = = = =

Enquanto há mãos escondidas,
fechadas entre os irmãos...
Há muitas mãos excluídas
à procura de outras mãos!
= = = = = = = = =

Ergue o braço, estende a mão,
acolhe os mais oprimidos,
que Deus inclui na inclusão,
quem acolhe os excluídos!
= = = = = = = = =

Eu sei que no amor se exprime,
do choro ao canto da fonte;
mas o amor é mais sublime
no regaço do horizonte!
= = = = = = = = =

Lembrando canções antigas,
de volta ao meu velho chão...
Vi muitas sombras amigas
na orquestra da solidão!
= = = = = = = = =

Mãe preta, de olhar sem brilho,
presa às algemas, no chão...
Dava o leite de seu filho
aos filhos do seu patrão!
= = = = = = = = =

Medindo as forças, parece
por mais que eu possa supor,
que igual a força da prece
só mesmo a força do amor!
= = = = = = = = =

Mesmo nas horas mais graves,
quando em silêncio, eu medito...
Ouço os conselhos suaves
das confissões do infinito!
= = = = = = = = =

Na dor da mãe, tão sofrida,
ao ver o filho, eu confesso,
ter visto a dor da partida
pelo abraço do regresso!
= = = = = = = = =

Não se curve ante o cansaço
das horas do entardecer!...
Espera o novo regaço
da aurora que vai nascer!
= = = = = = = = =

Nas cinzas de uma coivara,
que gesto de amor sublime;
Uma flor da cor mais rara,
perfuma as mãos desse crime!
= = = = = = = = =

Nossa trova se assemelha,
seja aqui, seja onde for...
a nossa Rosa Vermelha,
símbolo eterno do amor!
= = = = = = = = =

Ó, velho mar, quem vós sois?
eu percebo em vossos ais,
que o entardecer de nós dois,
tem sentimentos iguais!
= = = = = = = = =

Por não temer nada disso,
vim descobrir bem depois,
cigana, que teu feitiço
pôs mais feitiço em nós dois!
= = = = = = = = =

Quem me dera que essa voz
que escuto, mesmo à distância,
fosse do amor, que entre nós,
vem desde do tempo da infância!
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Se a solidão, eu descarto
e, entre os véus da noite avança,
apago a luz do meu quarto
e acendo a luz da esperança!
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Se ofertas flores, se ofertas,
a quem te fere e magoa,
tu terás portas abertas,
no Reino de quem perdoa!
= = = = = = = = =

Um livro velho, sem cor,
mudo, num canto da sala,
guarda um bilhete de amor
que de nós dois, tudo fala!

Fonte:
Enviado pelo trovador: Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Fernando Campanella (Conversa de Compadres)

Conta-se que lá pelas bandas do Curralinho, a umas boas léguas de Santana de Caldas, vivia um homem, chamado por Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar os grãos, para gerar maior lucro e evitar dissipação.

Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Possuía tal homem uma azenha, onde transformava o milho em fubá ou quirera. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo parte de sua safra de milho para a troca com a farinha ou o fubá. E o Sr. Bastião sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam.

Se era hora do café, às crianças, cujos pais até seu sítio chegavam para uma visita, de amizade ou a negócio, era dada apenas a metade de um bolinho de chuva que a esposa fazia; se hora do almoço, uma lasquinha cozida do imenso castrado que abatera…Tudo calculado, medido, regulado.

Seus cavalos eram os mais belos e mais possantes, seu milharal o mais viçoso, seu gado o mais gordo da região.

Conta-se , também, que Bastião Medonho era um caloteiro de primeira, mau pagador, embora houvesse amealhado uma pequena fortuna, que esquentava o único banco da pequena Santana de Caldas. Acertava suas dívidas só quando não havia mais jeito e pesava contra ele a ameaça de um processo na comarca da região.

Ora, havia um compadre seu, o Sr. Maneco da Lua, um homem de caráter íntegro, pródigo, uma ‘candura de pessoa’ , como se dizia por lá. Conheciam-se os dois desde que nasceram. Brincaram juntos, as famílias tinham um laço de compadrio que remontava há várias gerações, embora morassem distantes.

Acontece que, certa vez, o Sr. Maneco vendera um belo cavalo para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que os unia desde o berço. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era ‘cumpadi’, amigo dos ‘bão’ um ‘irmãu’. E se o companheiro não pagava era porque devia estar em situação ‘das pior’, como este sempre lhe dizia, chorando as mágoas, prometendo saldar a dívida logo que se recuperasse.

O tempo passou e Bastião nunca mais deu as caras no sítio do compadre, mais por safadeza que por vergonha de encarar o bobo do compadre.

O Sr. Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Colocava os valores do sentimento acima de tudo, a fidelidade, a integridade eram seus bens maiores, embora fosse constantemente acusado de ingenuidade pela esposa e familiares.

E certa feita, em regresso de uma viagem de vários dias, Bastião passou em um armarinho de Santana para a compra de alguma peça de vestuário. E viu que lá estava o Maneco. Tentou disfarçar, evitar o encontro, um certo mal-estar lhe gelando as veias como se houvesse enxergado um fantasma. Mas o bom compadre dele se aproximou, em sua aura de cordialidade, sempre discreto em sua elegância, o chapéu bem limpo, os óculos, a calça mais curta, deixando ver as botas sem meia, o embornalzinho a tiracolo.

– Salvi, Cumpadi Bastião. Comu tem passado a famia? E ocê, irmãu, já tá melhozinho lá nu sítiu? Miorô as coisa por lá?

– Vigi, cumpadi, a situação tá ruim, mais tá ruim… tô penano dimais, doença no gado, praga no milhu, perdi tudinhu, Deus tenha dó….

E continuou a ladainha, tentando despertar piedade no amigo, evitando tocar no assunto da dívida contraída.

Porém, o Maneco também nem referência a tal dívida fez. Só lembrou para o Bastião os bons tempos em que nadavam nas enchentes, lá no Lava-Cavalos, bons tempos da infância em comum dos dois. E despediu-se assim como viera, uma leveza de espírito, quase um sopro de candura. Uma luz calma que de repente alumia e esvaece.

Meio encolhido pela grandeza do amigo, disse então Bastião ao dono da loja -Bom sujeitinhu este Manequinhu – Pareci até um espíritu di tão levezinhu …. E riu, meio a contragosto.

– O senhor tá bem? – perguntou o proprietário do armarinho. – Tava falando sozinhu… Tá passandu bem?

– Tava proseanu aqui com meu Cumpadi, ora, o Maneco da Lua, irmão dos báum…..

– O Sô Maneco lá da Juruaia? – indagou o dono da loja, espantado?

– Sim, meu cumpadi….

– Ele faleceu esta manhãzinha … O corpo tá lá na igreja agora…

Diz a lenda que Bastião, após confirmar falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, se arrepiou dos fios do cabelo às unhas do pé, e disparou da loja, como se o Maldito, o Coisa-ruim, a Besta-de-Barba-de-Bode, o tivesse atacado.

Seu sítio foi vendido, a família dali se foi. De Bastião Medonho não mais se ouviu falar.

Se honrou as dívidas, se continuou medonho, não se sabe…Se morreu ninguém sentiu.

Fonte:
Palavreares. Acesso em 13 novembro 2011.

Aparecido Raimundo de Souza (Cotidiano número um)


DURANTE TODA A MINHA VIDA, nunca pensei confesso, nunca me passou pela cachola, sinceramente falando, que um dia fosse me cansar. E pior, cansar de viver. Hoje, aos sessenta e nove, compreendo, a gente se cansa sim, de tudo. De todos. Se melindra, se farta, se enraivece, se desgasta, com bobagens, a ponto de se incomodar com uma coisa banal procurada ao acaso, tipo (uma caneta, uma camisa, um par de meias) que por algum motivo não estava no lugar onde deveria ser encontrada.

De tudo é possível se cansar. Mas, de viver, de viver é quase surreal, inimaginável e, de certa forma, desatinadamente insano. Fui pego para Cristo. Aconteceu comigo. Talvez um dia, não sei, idêntico fato ocorra com alguém do meu convívio. Cansar de viver. Cansar de estar sem fazer nada, é a mesma coisa que viver, ou melhor, vegetar num lugar distante como num útero acolhedor. Viver é como estar respirando por obrigação, por dever de ofício.

É levar uma vida estranha, imprópria, misteriosa, uma existência que não era minha, como se, em algum lugar do passado, eu a tivesse roubado de alguém. Geralmente a gente se sente fatigado e exausto, pelo árduo rotineiro do trabalho, de pegar a condução com pessoas saindo pelo ladrão, de criaturas sobrecarregadas, tanto para ir, como para voltar, de segunda a sexta, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.

Rotina estressante, é bem verdade. Todavia, se contínua, se avança, se desembesta, segue em frente, aos trancos e barrancos, sem parar, sem dar tréguas. A gente se aperreia dos elos que nos une. Nosso ser se agasta da casa, se desgosta da mulher, se enerva com os filhos, se entoja dos problemas que eles arranjam na escola, com os coleguinhas.

A certa altura da corrida contra o tempo, bate uma fadiga de todo santo dia ver as mesmas caras, os mesmos amigos. Aborrece parar no boteco da esquina, de almoçar sempre no restaurante mantido pela empresa... igual mesa, idêntico prato de comida, mesma garçonete (apesar da sainha curta que ela usa e do rostinho com um sorriso encantador).

Dá uma leseira mórbida dos companheiros que recontam as velhas e surradas piadas ou, expõem, incansavelmente, as tarefas postas sob as suas responsabilidades. A gente se abomba (1) dos parentes, dos irmãos chatos, das brincadeiras sem graça e repetitivas, das fofocas, do quadro sistêmico que não se altera nunca.

A gente procura se esquivar da mediocridade que carregamos para baixo e para cima, como um fardo extremamente pesado e danoso à saúde. A gente se esfalfa (2) de olhar sempre pela mesma janela, ver a rua, respirar as casas, dar bom dia ou boa noite aos vizinhos, e as vistas miúdas pelo contemplar do mesmo quintal, os mesmos vasos de plantas, o mesmo lixo acumulado produzindo moscas a bel prazer na calçada suja da rua.

Na garagem o possante dos tempos do ronca. A lata velha caindo aos pedaços, os pneus gastos, o infeliz serve apenas para os finais de semana, ainda assim se sobrar uma merreca para a gasolina, o que nunca passa de uma volta na praia com a família. A gente se esbandalha (3) de respirar, de deitar todas as noites, levantar às cinco horas da matina, tomar o café correndo, e à noite, sentar o cansaço arreliado (4) no sofá sujo da sala.

Estou por aqui a alguns passos de jogar tudo para o alto. Me vejo cheio por ver o jornal maquiado, com tudo dando certinho. Passou dos limites assistir as propagandas maçantes, onde cada anunciante tem a solução milagrosa e na dose certa para fazer com que a gente compre o produto e aumente a conta da próxima fatura do cartão de crédito.  

Depois o mais degradante. Engolir a novela. Sempre a titica repetitiva. A gente se abodega (5) até os ossos dos filmes que, igualmente, se reincidem numa continuidade irritante e doentia. A mente se enraivece e se sobrecarrega da inconstância das mesmas coisas, sempre, sempre. Observo que nada muda. Tudo é sempre igual, como um caminhão abarrotado de japoneses, embora alguém viva anunciando por aí, que “nenhum dia é igual ao que passou...”. Pode até ser. Particularmente acho quem disse tremenda asneira, deveria se enforcar sem mais delongas, num pé de alface.

O fato é que chega uma hora, bate uma sensação de impotência, de sofrimento reprimido, de sonhos desfeitos, de planos não realizados. Do nada, aparece uma impressão tétrica de causa perdida, de tempo vivido à esmo, sem futuro, sem hoje e sem amanhã. É como se o próprio ceticismo pirrônico (6) que alimentamos no peito houvesse sido atingido por uma lança afiada e sangrasse pelas veias a derradeira gota do “eu” espúrio (7) que habita dentro de cada um de nós.

Sinto que estou prestes a engolfar a alma e me remeter às profundezas de um nada negro e sem volta. Nessas horas, a gente se pega abalado, se vê emocionalmente tolhido, amarrado, de pés e mãos, os olhos vendados, garganta apertada, indefeso, como se o mundo tivesse despencado do alto de um penhasco imenso e escolhesse cair exatamente sobre a nossa cabeça.

Tenho a impressão de que o medo me bate à porta com um estrondoso ruído, ao tempo em que o receio do que poderei encontrar lá fora (se abrir a guarda), me desassossegará o espírito e o porá em frangalhos. A gente, de uma forma ou de outra, se amofina das músicas, do romantismo, do amor, do amar, de como amar, de como renovar, a cada novo segundo, o carinho pela companheira de tantos janeiros sob o mesmo teto.

Mesmo caminho, a afeição pelos filhos. O aconchego pelos consanguíneos (pai, mãe, avô, bisavô) a turminha antiga e amarrotada que faz parte do esteio familiar cheio de pelancas. A gente se amua de tudo. Um sinistro prognóstico me lança à cova do abismo, e não só dela, da depressão e do terror. À linha disso, me invade uma vontade quase mórbida de não querer mais acordar.

De contrapeso, de colocar um basta definitivo, um ponto final, no meu viver, enfim, é difícil, complicado, inexplicável, inexorável. Não sei por que cargas d’água, esse vento de giro rápido resolveu embaralhar meus cabelos, levar para longe os meus planos para formalizar uma vida mais digna. Pois é: aconteceu comigo. Literalmente entediei. Grosso modo, me enfadei de... vejam se é possível uma coisa dessa natureza. Cansar de viver. EU CANSEI!

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Vocabulário enviado pelo autor:
1 Abomba – O que cansa ou deixa exausto.
2 Esfalfa – Tudo o que esgota ou causa fadiga.
3 Esbandalho – Estragar, quebrar, tirar da ordem.
4 Arreliado – Irritado, incomodado.
5 Abodega – Aquilo que emporcalha ou produz zanga.  
6 Pirrônico – Rabugento e teimoso.
7 Espúrio – Adulterado, ilegal ou viciado.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Tertúlia da Saudade 01

 

André Carneiro (Do outro lado da janela)

Ele notava o defeito bem tarde, quando já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar defeito.

Mandou consertá-la. No primeiro dia foi tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados... Não eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. Alguns filmes terminavam por volta das três horas da manhã. O técnico foi chamado de novo, e tudo se repetiu, até que ele resolveu vender o aparelho por qualquer preço e comprar outro, com sacrifício, o melhor e o mais caro nos anúncios.

Até a meia-noite a imagem estava nítida, mas meia hora depois apareceu a sombra, vaga e móvel, como se fosse parte de outra transmissão. A mancha não era estática, tinha movimento, suas bordas modificavam-se, dissolviam-se como algo em crescimento, em evolução. É isso, em evolução. Ele notou que a mancha era uma coisa viva, às vezes tinha tanto interesse quanto os filmes. Ele se perturbava olhando para aquilo, tentando descobrir o que era, o que significava, enquanto se esforçava para não perder o que estava acontecendo atrás, no filme que acompanhava. Atrás? Por que atrás? A mancha não estava na frente, misturava-se à imagem do programa transmitido.

Ele já mudara a televisão de lugar, comprara filtros especiais, inutilmente. Embora não falasse com ninguém do prédio, um dia, no elevador, quando conversavam sobre novelas, criou coragem, perguntou se eles notaram um defeito, uma leve mancha na imagem. Não, ninguém vira nada parecido.

Aos poucos, desistiu de lutar contra a mancha. Não chamaria mais os técnicos, não tentaria eliminar o defeito. Estava aprendendo a conviver com ela. Entretanto, a mancha não era somente algo que tapava o que estava atrás. Ela vibrava e se mexia com tal sutileza que parecia um pequeno programa dentro do outro que ele via. Surpreeendeu-se, um dia, ao perceber que a mancha estava também aparecendo à tarde, nem se lembrava há quanto tempo. Agora, quando o programa não era de seu especial interesse, ele olhava para a mancha, acompanhava as suas bordas, tentava calcular quanto ela tinha crescido e até onde ia chegar.

Bem tarde da noite, ela parecia bem maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas seguidas. Um dia, surpreeendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo mágico, depois deitou-se e custou a dormir.

Ficou algumas horas na cama, levantou-se e ligou o aparelho.

A mancha estava lá. Agora bem maior.

Quando se deu conta que a mancha já ocupava metade da imagem , percebeu que só via também os programas pela metade. A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em um sonho.

Só saia do quarto para pegar algo, um sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. Comia coisas frugais, olhando para o vídeo. Já não importava selecionar canais, procurar programas. A mancha estava ali e fixando-a com atenção revelava coisas, fisionomias que ele não identificava, mas lhe pareciam importantes. Não se esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim, havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia por quê.

Assistia aos programas até o fim. Quais programas? Não saberia descrever ou dar o título de nenhum. Ele via televisão e a mancha não existia mais. Era o próprio programa. O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.

Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes, fios, eram curvas, eram... o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso agora, mas... não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular, enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora, sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado, mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.

Fonte:
Texto enviado pelo autor em 31 jan 2001. Disponível em CARNEIRO, André. A máquina de Hyerónimus e outras histórias. São Carlos: EDUFSCar, 1997. p.21-23.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 11 – Madrigais

LAURÉIS

“Quanta razão há de te amar."
(Ct. 1.4)

Tua face é formosa,
É quente a tua mão,
Porém, muito mais
É o teu coração.

Teus lábios vermelhos
Só trazem saudade,
Porém, mais ainda
Traz tua bondade.

Teu timbre de voz,
Por si, tem alento,
Mas nada supera
Teu temperamento.

Cabelos em pluma
Qual véu de inocência,
Mas nada ao valor
Da tua consciência.

Teus olhos são virgens?
Teus seios - candura,
Mas quanto é maior
A tua alma pura.

Tua boca é preciosa
Como ouro de lavra,
E não se compara
Com tua palavra.

Teu ser é perfume
De mil manacás,
Mas é superior
O amor que me dás.

Teu ser, por inteiro,
É bela canção;
És letra de um hino,
És minha oração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERDOA-ME

"Volta, volta, ó Sulamita.”
(Ct.7.1)


Perdoa-me, Amor,
A intransigência;
Olha pra mim
Dá-me clemência;
Não vai deixar-me
Aqui sozinho;
Preciso muito
Do teu carinho!

Não me olhes mais
Com duros olhos!
- Olhos de águia
Nos meus escolhos!
No rosto lindo
Eu vi rancor,
Dilacerando
O meu amor.

Eu sou deserto
Perdido ao longe,
Que na oração
Medita o monge;
Eu sinto a brisa
Beijando a areia,
Teu doce hálito,
Linda Sereia!

Canta pra mim!
Sibila ao vento!
Ó Serenata,
És acalento!
Tens o amor
Que me inebria!
És meu manjar
- Minha ambrosia.

Oh, triste vida!
Oh, vida agreste!
Naquela escarpa
Há flor silvestre...
O sonho meu
É ter meu céu,
Quando provar
Teu doce mel...

Perdoa-me logo,
Se te feri,
Dá-me um presente:
Reza pra mim!
Fica comigo,
Se teu eu for!
Dá-me um sorriso!
- Eu quero amor.
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PERMUTA DE AMOR

"Tua voz é doce, e delicado o teu rosto”
(Ct. 2.14)


Permutarei contigo um bem precioso,
Façamos, em cartório, um bom negócio;
Que o digam a razão e o sentimento,
Porque serei de ti bem mais que sócio.

Que o poderoso cérebro, qual juiz,
Testemunhe também o nosso engenho;
Se me deres pra sempre o teu amor,
Dar-te-ei eternamente o amor que tenho.

Para não acontecer alguma dúvida,
Com tintas arteriais fiquem gravados
Os termos do contrato, ultra* "sui generis"**,
Em duas almas gêmeas registrados;

"Com ternura exclusiva visceral,
Quero que o teu amor sempre me ame;
E o véu da tua sombra bem me cubra,
Com puro pensamento, por mim, clame.

Irei viver - viver por teu amor,
Vencerei este mundo em torvelinho;
Serei gigante à frente das procelas,
Farei do leão um mero cordeirinho.

Quão milagrosa a força deste amor,
Que vai lançar o mal na sepultura;
Fará do vingador mundo perverso
Parnaso*** colorido de aventura.

= = = = = = = = =

* Ultra: Além.
** Sui generis: Locução adjetiva latina: Aquilo que não apresenta analogia com nenhuma outra (pessoa ou coisa). Inédito.
*** Parnaso: Fig. - Lugar de delícias.

Fonte:
Enviado pelo poeta. Disponível em Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.

Monteiro Lobato (Jeca Tatu: a ressurreição)

I

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários fichinhas pálidos e tristes.

Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha ideia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.

Todos que passavam por ali murmuravam:

– Que grandíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.

– Por que não traz de uma vez um feixe grande? – perguntaram-lhe um dia.

Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:

– Não paga a pena.

Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.

Só pagava a pena beber pinga.

- Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.

- Bebo para esquecer.

- Esquecer o quê?

- Esquecer as desgraças da vida.

E os passantes murmuravam:

- Além de vadio, bêbado...

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.

Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.

Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por quê? Desânimo, preguiça...

As pessoas que viam aquilo franziam o nariz.

- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.

Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?

Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:

- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.

- Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?

- É que ele mata.

- E porque você não faz o mesmo?

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:

- Quá! Não paga a pena...

- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.

- Amigo Jeca, o que você tem é doença.

- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda.

- Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.

- Anqui... o quê?

- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.

- Essa tal maleita não é a sezão?

- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.

VI

O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: "E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?"

- Ouvi, sim, senhor!

- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta.

- Até por lá, sêo doutor!

Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras*.

Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...

VII

Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas.

- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota pra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida.

Jeca abriu a boca, maravilhado.

- Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse:

- Tire a botina e ande um pouco por aí.

Jeca obedeceu.

- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente.

Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado.

- E não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!...

- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.

- Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem pra remédio...

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca.

A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.

Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.

- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes.

- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "intaliano".

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.

- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!...

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a

- Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira...

A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo...

XI

Ele, que antigamente só trazia três pauzinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.

- Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?

- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo.

- Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!

- Quero mostrar a esta paulama (pauzada) quanto vale um homem que tomou remédio de Nhá Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça.

O italiano via aquilo e coçava a cabeça.

- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!

XII

Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.

O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim.

E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:

- Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia:

- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel...

E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:

- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...

XIII

Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente.

Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.

Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.

Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos. E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!

Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!

- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!

- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, veem isso e não se esquecem mais da história.

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!...

As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.

- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.

O seu professor dizia:

- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da "branca"...

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.

- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala.

Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.

- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos...

E ninguém duvidava de nada.

- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito...

XVI

A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame...

Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.

Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.

- Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.

E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas.

O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro..."

E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.

Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.

Nota da redação:
Este conto foi adotado como peça publicitária do Laboratório Fontoura. Adaptado em história em quadrinhos ou na forma de folheto, ou ainda fazendo parte de almanaques, teve até os anos 60 uma tiragem de cerca de 18 milhões de exemplares. Há testemunhos de que sua leitura transformou a vida de muita gente.
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* Ringideira = o mesmo que rangedeira. Porção de couro ou de cortiça, que, colocada entre a palmilha e a sola do calçado, produz rangido quando se anda.
Fonte:
Projeto Memória. Conto em domínio público.

Jaqueline Machado (A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói)

Ivan Ilitch, este é o nome do cara, quer dizer, do personagem de Liev Tolstói, um juiz do interior que não vivia e cedia total confiança às normas da sociedade. Era um verdadeiro copiador de mentiras, um agradador de quem por ele não tinha amizade.

Tinha esposa e filhos, mas pouca estima pelo lar que, longe dos olhares externos, era conturbado. Ninguém se entendia. A casa e os móveis eram feitos conforme mandava as normas da época. A forma de trocar tratamentos uns com os outros, também. As mesmas roupas, os mesmos sorrisos, os mesmos vinhos. Nada podia fugir às regras.

Ivan nunca buscou realizar sonhos, encontrar o verdadeiro amor. Era um homem acomodado e de uma vida incolor, demasiadamente simples. Provavelmente suas células nunca sentiram a vibração prazerosa, que é dar uma boa gargalhada, e nem a emoção em realizar um sonho de infância.  

Levava uma vida sem emoções.  Até que, certo dia, ainda jovem, recebeu a notícia de que estava doente. E dali em diante, a situação foi piorando. Em seu leito, seu corpo se contorcia em dores de uma doença desconhecida.  Foi só então que se deu conta de que sua vida poderia ter sido totalmente diferente. E lamentou os amores não vividos, os sorrisos que ficaram presos, a liberdade de ser quem poderia ter sido e não foi. Só que o arrependimento veio tarde demais e Ivan Ilitch morreu abandonado, suplicando por um momento de felicidade, aos quarenta e cinco anos.

Essa história não é de romance, mas de vida real, faz pensar o que leva uma pessoa... Uma só não, a maioria, a ignorar sua personalidade, suas vontades, para viver de maneira pálida, fria, e segundo a vontade da falsa realidade pregada por uma sociedade inconsequente?

Eis uma boa questão para ser refletida...

A vida sem problemas é sem graça, mas sem momentos felizes, torna–se inexistente. Por isso, lute, caia, levante, ria das próprias desgraças, mas não deixe de viver! Independente de qualquer coisa não deixe de ser você.

Fonte:
Texto e capa do livro enviados pela autora.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Silmar Böhrer (Croniquinha) 75

Tantas vezes vemos a alegria, o entusiasmo, a vibração dos outros, e ficamos contentes. Mas não há satisfação pessoal, porque o verdadeiro alimento do nosso bem-estar vem de nós mesmos - nossa visão de mundo, nossas realizações, nosso sucesso. E não enxergamos pequenos detalhes que são grandes insufladores de dias plenos de vida. Claro, gostamos de ver o que acontece na vida do próximo, mas a realização parte de nós mesmos, na convivência, no trabalho, no lazer.

Podemos fazer muito, realizamos pouco. E reclamamos. Não paramos para pensar que nada cai do céu graciosamente, a não ser chuva. Talvez devêssemos usar para nós a frase que Sócrates encontrou no templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". É simples, é profunda, é verdadeira.

Voltar-se para a intimidade, ocupando-se menos com as coisas materiais, povoando alguns vazios dentro de nós, cultivando as flores da estação e os frutos que surgem no caminho. Construir a alteridade, buscar a utopia que está no horizonte.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.


Sandoval Ferreira (O matuto e o fusca véio)

 

 
Havia recebido o livro do pernambucano de Iati, Sandoval Ferreira, “Meu Sertão em 12 Versos”, composto de vários “causos” em cordel, além de um DVD com o próprio autor declamando suas poesias. Já conhecia o trabalho deste escritor desde 2009, quando postei “Poesia da Água” com uma breve biografia. 

Sandoval (1983) mora em Guaranhuns/PE, é técnico agrícola e cursou a Faculdade de Marketing.

Transcrevo abaixo um “causo” que consta em seu livro, o primeiro que botei os olhos quando abri o seu livro.

Comprei um fusca fiado
Em catorze prestação
A primeira eu já paguei
O resto no pago não
É que o peste do fusca
Só na base do empurrão
 
Foi essa a reclamação
Do matuto que comprou
Um fusca véio usado
Que um malandro lhe passou
E ele voltou arretado
Pra matar o vendedor

Ele disse ao doutor
Dentro da delegacia
Nunca mais eu vou pagar
Por aquela porcaria
E Se eu não matá-lo hoje
Mato ele no outro dia

Grande foi a gritaria
E tamanha confusão
O matuto já nervoso
O vendedor com queixão
E o delegado no meio
Pra resolver a questão

O matuto disse então
O fusca não tem amortecedor
Arranhão na lateral
Falta um retrovisor
O banco já tá rasgado
E o pneu já estourou

O vendedor reclamou
Dessa vez bem irritado
Não vendi o fusca novo
Te vendi um fusca usado
Agora quer devolver ?
Tu não pegou emprestado

Pra o azar do delegado
O matuto retrucou
Só comprei aquela peste
Porque você me empurrou
Fui subir a ladeira
Ele bateu o motor

Tá vendo o senhor doutor
Ele quer subir ladeira
Comprou um fusca 69
Não uma égua andadeira
Mande esse cabra ir embora
Mode deixar de besteira

Acabou a brincadeira
Podem parar a zoada
Isso aqui não é um circo
Pra ficar com palhaçada
Ficam os dois no xadrez
E a coisa tá encerrada

Isso não meu camarada
Retrucou o vendedor
Devolvo o dinheiro dele
Dou um trocado ao senhor
Faço o que você quiser
Mas pra cadeia eu não vou

Tá muito bem seu doutor
Do jeitinho que eu queria
Eu sou um home direito
Não gosto de ingrizia
Ele pega o meu fusca
E se acaba a agonia

Livres da delegacia
Dessa vez mais conformado
O vendedor foi buscar
O fusca véio quebrado
E pra se livrar da bomba
Deu de graça ao delegado.


Fontes:
FERREIRA, Sandoval. Meu sertão em 12 versos: causos nordestinos.
Enviado pelo autor.