Ler é muito mais do que simplesmente decifrar o código escrito. A leitura plena e eficaz de qualquer tipo de texto, só acontece quando o que se dispõe a fazê-lo, assume-se participante do objeto da leitura no sentido de utilizar mais do que seus conhecimentos sobre o código.
É uma atividade complexa e carregada de possibilidades de criação, interação e interpretação entre indivíduos e contextos.
O leitor aplica ao ato de ler, conhecimentos linguisticos e gramaticais, que são internalizados durante sua trajetória e vivência com a linguagem escrita.
Além desses conhecimentos, ainda pode e deve contar com a imaginação, o raciocínio, a vontade, e uma flexibilidade suficiênte para deslocar-se para o ponto de vista do escritor.
Esse deslocamento acontece mesmo que seja inconsciente e provisório.
Vale lembrar também, que nem escritor, nem leitor estão neutros diante de uma produção textual, seja ela literária ou não.
Escritor e leitor são portadores de uma história e de uma bagagem cultural que acabam por determinar e porque não dizer, personalizar os modos de leitura, interpretação e aplicação do objeto lido.
Saber-se participante de uma produção textual, pode ser um bom caminho na construção da necessária flexibilidade que deve permear o ato de ler.
Por meio da leitura é possível conhecer novas e antigas idéias, rever, elaborar e reelaborar pensamentos, informações e conhecimentos.
O que é escrito em papel, numa tela de computador ou em qualquer outro portador, não traz consigo uma verdade absoluta e irrevogavel. Um texto escrito, comporta apenas parte de modos de pensar, parte de uma filosofia, parte de crenças e até parte da imaginação e fantasia de alguém.
O texto escrito, tem suas limitações. A linguagem escrita não pode contar com todos os elementos contextuais, com gestos, expressões faciais, movimentos ou expressões corporais. Apesar de seus limites, mobiliza tanto o que escreve como o que lê o que foi escrito.
Leitor e escritor fazem uma espécie de trabalho em equipe. E neste trabalho, há constante movimento.
O leitor lê, pode ler, reler, fazer anotações, pensar, comparar, parar a leitura, continuar e utilizar-se dela de várias maneiras. O escritor também conta a mobilidade de reelaborar, rever, repensar e reeditar suas produções. E em muitos casos, o faz em decorrência do retorno e interação gerados pelo público alvo de seu trabalho.
A mobilidade da qual escritor e leitor utilizam-se, promove aprendizagem mútua e aciona mais que a habilidade de reconhecer o código escrito e decifrá-lo, pois a relação que se estabelece entre esses agentes, é permeada de elementos pessoais, emocionais, sociais, intelectuais, culturais e até afetivos.
Vendo por este ângulo, pode-se afirmar que é possivel escrever e ler com a alma.
Ler com a alma é ler com a plenitude do ser. O ser é o que se é de fato, a essência. O que há de permanente na personalidade ou no caráter de cada pessoa.
É certo que há um estar sendo, uma parte de atitudes e pensamentos de cada pessoa, que é transitória. É o ser é quem decide sobre a parte transitória que há em cada um.
Pode ser que a leitura seja em alguns momentos motivada pelo ser, em outros momentos pelo estar sendo e as vezes pelos dois.
Um tema sobre o qual algum escritor decide escrever pode servir como alimento do ser ou do estar sendo.
Na perspectiva de alimentar a alma ou o intelecto por exemplo, a leitura é sempre motivada pelo desejo ou necessidade de cada pessoa, que são regidos pelo Ser.
No entanto, a necessidade por si só, nem sempre tem força para acionar o desejo. Já o desejo, atua com mais eficácia sobre o ser que o porta. Este atua mesmo não havendo necessidade.
O desejo é mais poderoso que a necessidade em muitos casos. Uma pessoa tem a necessidade de alimentar-se, mas pode não sentir fome ou vontade de comer. Neste caso, a necessidade pura e simples, não é suficiente para provocar a ação. Já o desejo, busca seus interesses, mesmo não havendo uma real necessidade.
A leitura é uma atividade que muitas vezes é tratada como mera necessidade. Como em muitos casos nos processos de ensino/aprendizagem na educação formal, em que a ação de ler é tratada unicamente objetivando a apreensão de conteúdos propostos em uma disciplina que compõe o currículo.
O desejo de ler, nem sempre apoia-se em razões bem claras e definidas. Mas também pode surgir por várias razões. Até por "razões mágicas", afirma Rubem Alves: "Ler é um ritual antropofágico. (...) A antropofagia não se fazia por razões alimentares. Fazia-se por razões mágicas. Quem come a carne do sacrificado se apropria das virtudes que moravam no seu corpo. (...) Cada leitura é um ritual mágico."
Desejo e necessidade, nem sempre andam juntos. Mas são elementos impulsionadores da alma humana.
Quando criança deleitava-me com uma professora que lia histórias em voz alta para a turma. A leitura feita por ela, continha aspectos singulares como, entonação de voz, ritmo e uma musicalidade que lhe eram próprias, fez toda diferença para minha formação como leitora.
Uma de minhas irmãs, Rute, lia para mim e para meus irmãos. Lia trechos da bíblia, histórias do livro "As mil e uma noites" e outros. Ela também me ensinou a ler. Quando entrei para a escola, já sabia ler.
Sua voz, postura e visão sobre os textos lidos nunca saíram da minha memória.
Ela despertou em mim disposição e desejos por "rituais mágicos", que são realizados através da poder proporcionado pela leitura.
Hoje assumo a ação de ler como necessidade movida pelo desejo.
Aprender a ler com a alma, é mais que uma necessidade, é ler com a plenitude do ser, tomando emprestado o desejo da alma de alguém, aliando-o ao próprio desejo. Pode ser forma mais flexível de viver e estar no mundo.
Fonte:
Texto enviado pela autora
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