Uma bela tarde, a minha amiga Rafaela entrou arrebatadamente na minha saleta de trabalho e deixou-se cair num tamborete, a meus pés.
— Que tens? Perguntei-lhe assustada, percebendo-lhe o terror no rosto, ordinariamente repousado.
Por única resposta ela estendeu-me a mão espaldada e nua, e arregalou para mim os seus olhos claros, cor de violeta.
— Não percebo o teu gesto... Roubaram-te o anel que ele te deu?... Não abranges a oitava no piano e desistes de o estudar? Terás reumatismo nos dedos? Bem; se não queres responder, vai-te embora, mas arranja primeiro o chapéu, que está torto, e modifica esse ar de quem foge de alguém que o persegue na rua...
— Ninguém me seguiu na rua... O anel que ele me deu está na outra mão...
E, como orvalho em violetas, borbulharam lágrimas nos olhos da pobre Rafaela.
— Se pudesses explicar-te...
— Escuta venho da casa da Noêmia Saldanha; havia lá gente de fora, uns homens de quem já não me lembro do nome e um certo rapaz que lia nas mãos das senhoras a buena dicha, ou que melhor nome tenha. Quando eu entrei, a Saldanha disse alto, com o seus guinchinhos de macaca: "Olhem quem vem aí!" e puxou-me com violência para a roda, que se abriu muito amável para me receber. O tal rapaz continuou nos seus prognósticos, que faziam rir a todos. Lia na mão da Sinhá Mendes coisas muito bonitas: que ela se haveria de casar com um moço que a adora... Que há de ir à Europa, que há de ter três filhos gordos mansos, fortes e bonitos; que herdará uma grande fortuna de um parente afastado de quem não terá saudades; que terá lindos vestidos, bons carros, assinaturas no lírico e que morrerá de velha, sem sentir, de uma síncope...
Todos riam; a Sinhá estava radiante! Com aquele exemplo, eu fui insensivelmente desabotoando a luva e estendendo também a minha mão.
O rapaz tornou-se sombrio, à proporção que a observava. Como eu instasse para que dissesse a verdade, fosse ela qual fosse, ele, muito constrangido, declarou tudo.
Disse que não me casarei, que terei bexigas, apesar vacinada duas vezes, e que ficarei marcada como um crivo; disse que a minha família me abandonará e que morrerei ainda moça, de um ataque, na rua! Vida tão feia não merece melhor desfecho!
— Um ataque na rua! Que ignomínia! Vê tu!
— E depois?
— Depois... Que sou muito nervosa — e isto é verdade! — que tenho uma grande paixão... Também é certo... Que tenho excelentes qualidades de coração, o que não me impedirá de morrer como um cão sem dono, na calçada...
— Que mais?
— Ainda querias mais?!
— Que respondeste?
— Fingi heroicidade, que é sempre o nosso costume, mas sabe Deus o que se passava cá dentro! Quando pude fugir, fugi. Os guinchos da Noêmia perseguiam-me; a alegria da Sinhá irritava-me. A felicidade dos outros agrava o nosso infortúnio.
Só hoje compreendi isto. Por mais que eu olhe para a mão, para estes caminhos que parecem traçados na palma pela ponta finíssima de um alfinete e por onde marcham os nossos instintos, os nossos segredos e até o nosso futuro se esclarece, por mais que eu observe toda esta rede complicadíssima, não consigo descobrir nada! Se ele se tivesse enganado?! Mas não; vi que falou com toda a convicção, disse a verdade.
Eu agora já sei; abandono-me, aceito o meu destino, o meu feio destino de ser medonha, não ser amada e morrer numa calçada, à vista de quem passar na ocasião!
— Não vês, minha tontinha, que te meteram num enredo? Vou apostar eu como o tal rapaz entende tanto de quiromancia como eu.
— Ah, a quiromancia é uma arte!
— E nas salas uma armadilha maliciosa à ingenuidade de certas moças...
Quando tiveres algum segredo que não queiras ver profanado, nem pela mais leve suspeita, abotoa bem as tuas luvas ao entrar em certas salas. Entretanto, fica certa de que não será nas linhas da mão que ele se mostre todo, mas no rubor das tuas faces ou no pestanejar dos teus olhos, que serão consultados à proporção que se faça a leitura fatídica. Quanto ao resto, o rapaz, se não foi absolutamente delicado, não deixou de ter uma pontinha de espírito. Sinhá é feia, tu és bonita; ela roça pelos trinta anos, tu ainda não tens vinte, ele quis igualar-vos momentaneamente, vestindo-te de desapontamento e iluminando a outra de alegria. Na tua idade os segredos são leves e fáceis de adivinhar; em todo caso guarda-os contigo, ou só para a confidencia amiga. O recato do sentimento, fortifica-o e enobrece-o. E o coração de uma donzela não se deve devassar a todas as curiosidades... Ele é, como disse o poeta Vigny: un vase sacré tout rempli de secrets.
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Nota:
un vase sacré tout rempli de secrets. = um vaso sagrado completamente cheio de segredos
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).
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