sábado, 13 de agosto de 2011

Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Decio de Almeida Prado e Paulo Emílio Sales Gomes (A Personagem de Ficção) Parte III – O Problema Epistemológico (a


3) O problema epistemológico (a personagem). É porém a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza. Isto é pouco evidente na poesia lírica, em que não parece haver personagem. Todavia, expresso ou não, costuma manifestar-se no poema um “Eu lírico” que não deve ser confundido com o Eu empírico do autor. Sem dúvida, houve no decurso da história grandes variações neste campo. Não se devem aplicar os mesmos padrões e conceitos a poemas da Grécia antiga, a poemas românticos e a poemas atuais. Parece, contudo, que se pode negar em geral a opinião de que nas orações de poemas líricos se trata de juízos, de “enunciados existenciais” acerca de determinada realidade psíquica do poeta ou qualquer realidade exterior a êle. É precisamente no poema que são mobilizadas todas as virtualidades expressivas da língua e toda a energia imaginativa.

No caso de versos como estes:
A chuva de outono molha
O pêso da minha altura
E tal rosa que desfolha
Tenho pétalas na figura
(Lupe Cotrlm Garaude, Raiz Comum.)

seria absurdo falar de juízos, mesmo subjetivos, referentes, passo a passo, a estados psíquicos reais da poetisa (4). É perfeitamente possível que haja referência indireta a vivências reais; estas, porém, foram transfiguradas pela energia da imaginação e da linguagem poética que visam a uma expressão “mais verdadeira”, mais definitiva e mais absoluta do que outros textos.

O poema não é uma “foto” e nem sequer um “retrato artístico” de estados psíquicos; exprime uma visão estilizada, altamente simbólica, de certas experiências.

Mesmo em versos aparentemente confessionais como estes de Safo: “A lua se pôs e as Plêiades, pelo meio anda a noite, esvai-se a juventude, mas eu estou deitada, sozinha” — não se deve confundir o Eu lírico dentro do poema com o Eu empírico fora dele. Este último se desdobra e objetiva, através das categorias estéticas, constituindo-se na personagem universal da mulher ansiosa por amor. Até um poeta como Goethe que, na sua fase romântica, considerava a poesia a mais poderosa expressão da verdade, como “revelação” da intimidade, chegou, já aos vinte anos, à conclusão de Fernando Pessoa (o poeta finge mesmo a dor que deveras sente), porque o poema é, antes de tudo, Gestalt, forma viva, beleza. Variando concepções de Platão, declara que a beleza “não é luz e não é noite; é crepúsculo; é resultado da verdade e não-verdade. Coisa intermediária”. São quase os termos com que Sartre descreve a ficção.

Contudo, a personagem do poema lírico não se define nitidamente. Antes de tudo pelo fato de o Eu lírico manifestar-se apenas no monólogo, fundido com o mundo (“A chuva de outono molha / O pêso da minha altura”), de modo que não adquire contornos marcantes; depois, porque exprime em geral apenas estados enquanto a personagem se define com nitidez somente na distensão temporal do evento ou da ação.

Como indicadora mais manifesta da ficção é por isso bem mais marcante a função da personagem na literatura narrativa (épica). Há numerosos romances que se iniciam com a descrição de um ambiente ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta, um diário, uma obra histórica. É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.

No nosso exemplo de Mário seria possível que as orações “Mário estava de pijama. ele batia uma carta na máquina de escrever” constassem de um relato policial que prosseguisse assim: “. . . quando entrou o ladrão. . .“ Se o texto, porém, prosseguir assim: “Sem dúvida ainda iria alcançá-la. Afinal, Lúcia decerto não podia partir depois-de-amanhã”, sabemos que se trata de ficção. Notamos, talvez sem reconhecer as causas, que Mário não é urna pessoa e sim uma personagem. Certas palavras sem importância aparente nos colocam dentro da consciência de Mário, fazem-nos participar de sua intimidade: “sem dúvida”, “afinal”, “decerto”, “depois-de-amanhã”. Tais palavras indicam que se verificou uma espécie de identificação com Mário, de modo que o leitor é levado, sutilmente, a viver a experiência dele.

Mais evidentes seriam verbos definidores de processos psíquicos, como “pensava”, ‘duvidava”, “receava”, os quais, quando referidos à experiência temporalmente determinada de uma pessoa, não podem, por razões epistemológicas, surgir num escrito histórico ou psicológico. Numa obra histórica pode constar que Napoleão acreditava poder conquistar a Rússia; mas não que, naquele momento, cogitava desta possibilidade. Só com o surgir da personagem tornam-se possíveis orações categorialmente diversas de qualquer enunciado em situações reais ou em textos não-fictícios: “Bem cedo ela começava a enfeitar a árvore. Amanhã era Natal” (Alice Berend, Os Noivos de Babette Bomberling); ... and of course he was coming to her party to-night” (Virgínia Woolf, Mrs. Dallowcry); “A revolta veio acabar daí a dias” (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma); “Daí a pouco vieram chegando da direita muitas caleças. . .“ (Machado de Assis, Quincas BOrba).

É altamente improvável que um historiador recorra jamais a tais orações. Advérbios de tempo (e em menor grau de lugar) como “amanhã”, “hoje”, “ontem”, “daí a pouco”, “daí a dias”, ‘aqui”, “ali”, têm sentido somente a partir do ponto zero do sistema de coordenadas espaço-temporal de quem está falando ou pensando. Se surgem num escrito, são possíveis somente a partir do narrador fictício, ou do foco narrativo colocado dentro da personagem, ou onisciente, ou de algum modo identificado com ela. O “amanhã” do primeiro exemplo citado põe o foco dentro da personagem, cujo pensamento é expresso através do estilo indireto livre:

No caso, os pensamentos são reproduzidos a partir da perspectiva da própria personagem, mas a manutenção da terceira pessoa e do imperfeito “finge” o relato impessoal do narrador. Seriam possíveis outros recursos:

“Ela pensava: Amanhã será Natal”; “Ela pensava que no dia seguinte seria Natal”; mas nenhum como o indicado (aliás já usado na literatura latina, na literatura francesa desde o século XII e com bem mais freqüência no romance do século XIX, desde Jane Austen e Flaubert) revela o caráter categorialmente singular do discurso fictício. Em nenhuma situação real o amanhã” poderia ser ligado ao “era”; e o historiador teria de dizer “no dia seguinte” já que não pode identificar-se com a perspectiva de uma pessoa, sob pena de transformá-la em personagem.

Embora tais formas não surjam nem na poesia lírica, nem na dramaturgia, e não necessariamente na literatura narrativa, o fenômeno como tal é extremamente revelador para todos os tipos de ficção, já que a análise deste “sintoma” da ficção indica, ao que parece, estruturas inerentes a todos os textos fictícios, mesmo nos casos em que o sintoma não se manifesta. O sintoma lingüístico evidentemente só pode surgir no gênero épico (narrativo), porque é nele que o narrador em geral finge distinguir-se das personagens, ao passo que no gênero lírico e dramático, ou está identificado com o Eu do monólogo ou, aparentemente, ausente do mundo dramático das personagens. Assim, somente no. gênero narrativo podem surgir formas de discurso ambíguas, projetadas ao mesmo tempo de duas perspectivas: a da personagem e a do narrador fictício. Mas a estrutura básica do discurso fictício parece ser a mesma também nos outros gêneros.

O “sintoma” linguístico, óbvio nos exemplos apresentados, revela, precisamente através da personagem, que o narrar épico é estruturalmente de outra ordem que o enunciar do historiador, do correspondente de um jornal ou de outros autores de enunciados reais. A diferença fundamental é que o historiador se situa, como enunciador real das orações, no ponto zero do sistema de coordenadas espaço-temporal, por exemplo, no ano de 1963 (e na cidade de São Paulo), projetando a partir deste ponto zero, através do pretérito plenamente real, o mundo do passado histórico igualmente real de que ele, naturalmente, não faz parte. Ao sujeito real (empírico) dos enunciados corresponde a realidade dos objetos projetados pelos enunciados (e só neste contexto é possível falar de mentira, fraude, erro etc.).

Na ficção narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por vezes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se onisciente etc. Nota-se também que o pretérito perde a sua função real (histórica) de pretérito, já que o leitor, junto com o narrador fictício, “presencia” os eventos. O pretérito é mantido com a função do “era uma vez”, mero substrato fictício da narração, o qual, contudo, preserva a sua função de “posição existencial”, de grande vigor individualizador, e continua “fingindo” a distância épica de quem narra coisas há muito acontecidas.

A modificação do discurso indica que na ficção (e isso se refere também à poesia e dramaturgia) não há um narrador real em face de um campo de seres autônomos. Este campo existe somente graças ao ato narrativo (ou ao enunciar lírico, dramático). O narrador fictício não é sujeito real de orações, como o historiador ou o químico; desdobra-se imaginariamente e torna-se manipulador da função narrativa (dramática, lírica), como o pintor manipula o pincel e a cor; não narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas (personagens), eventos e estados. E isso é verdade mesmo no caso de um romance histórico (5). As pessoas (históricas), ao se tornarem ponto zero de orientação, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a ser personagens; deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos, seres que sabem dizer “eu”.

“A rainha se lembrava neste momento das palavras que dissera ao rei” — tal oração não pode ocorrer no, escrito de um historiador, já que êste, nos seus juízos, sòmente pode referirr-se a objetos, apreendendo-os exclusivamente de “fora”, mesmo nos casos da mais sutil compreensão psicológica, baseada em documentos e inferências. Sòmente o “criador” de Napoleão, isto é, o romancista que o narra, em vez de narrar dêle, lhe conhece a intimidade de “dentro”.
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Notas:
(4) Tal é, contudo, a opinião de Kaethe Hamburger em Die Logik der Dichrung (A Lógica da Ficção); segundo a autora, os enunciados de um poema lírico seriam “juízos existenciais”, juízos subjetivos, mas juízos.
(5) Kaethe Hamburger, na obra citada, estuda agudamente os vários problemas envolvidos.

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continua… A personagem nos vários gêneros literários e no espetáculo teatral e cinematográfico
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Fonte:
Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Decio de Almeida Prado e Paulo Emílio Sales Gomes. A Personagem de Ficção. 2. ed. SP: Perspectiva.
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